Em estado bruto
A Estrada de Alice, óleo sobre tela, 2006, By Tere Tavares Sinto um imenso vácuo dentro da cabeça. Como se milhares de zunidos dançassem em meus ouvidos. Uma pequena...
Revista digital de Arte e Cultura
Viajar é como ler, sempre nos acena com promessas de mudança de ponto de vista. Sobre o outro, sobre nós mesmos. Aumenta a tolerância com o diferente. Demove estratificações de mitos. Derruba preconceitos tão tenazes quanto ocultos. Restabelece a pluralidade do ser. Porém, mal começo a organizar as recordações de Paris em forma de narrativa hesito diante da questão que me acossa: você tem coragem? Será que o fato de tê-la visitado em duas ocasiões apenas a autoriza a escrever sobre uma cidade desse porte, dessa importância?
Sim, não tardo em responder, porque ela é como a escrita de Joyce: ninguém pode dizer que a conhece, no máximo consegue-se captar alguns traços característicos e se deixar impregnar, enfeitiçar, surpreender. No máximo, posso falar da ‘minha’ Cidade Luz (assim chamada por sua efervescência durante o Iluminismo). Mesmo amparada em depoimentos de viajantes que me antecederam, em fotos, filmes, livros que poderiam passar uma ilusão de verdade, de exatidão fiz a castração do saber e aceito que o desejo de total conhecimento está condenado ao fracasso. Uno cree conocer París, pero no hay tal; hay rincones, calles que uno podría explorar el día entero, y más aún de noche (Julio Cortazar, em Rayuela).
Às vésperas da primeira ida à charmosa capital, refletia: o estudo de mais de sete anos de francês, nunca mais exercitado, serviria para alguma coisa? Sempre que estou em lugares cuja língua não domino, logo que surge uma dúvida pergunto se o interlocutor fala inglês (um pouco menos enferrujado), mas disseram-me que isso seria considerado ofensivo pelos parisienses, cuja fama já é de antipáticos e impacientes com estrangeiros. Não foi o que vivi, ao contrário, quando o tatibitate me traía esforços não pareciam ser poupados para que eu fosse bem compreendida e atendida.
Tanto vindo de trem de Londres por debaixo do canal da Mancha, o Eurostar, quanto pousando no Aeroporto Charles de Gaulle, num vôo de Bruxelas, confusa, rodopio como um pião, contudo ambos os locais mantém pequenos escritórios de informação que auxiliam os turistas. Entre janeiro (pleno inverno) e início de julho (quase verão) uma grande diferença, com vantagem para a temporada com termômetros em torno dos cinco graus. Como diz o alemão, nunca está frio demais, você é que não está bem agasalhado. Temos que nos embalsamar como múmias, mas o investimento compensa: menos filas, atendimento qualificado, ambientes devidamente climatizados.
Em 2000 hospedei-me na Place de la Republique, o que resultou em deliciosos jantares ali no Leon de Bruxelas. Em 2005, na Place de la Madeleine, da igreja com o mesmo nome e da Fauchon. À porta dessa outra perdição gastronômica, na manhã da chegada, cruzo com ilustre escritor carioca. Un encuentro casual es lo menos casual en nuestras vida (Cortazar).
Vendo nossos calçados imundos pela chuva que caía, lembro-me de fragmentos de um texto seu, O suor e a lágrima: “... Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão”. Sem pensar, o interpelo como se nos conhecêssemos: Cony, você por aqui? E ele, mesmo surpreso, responde afetuoso, apertando-me a mão, sinalizando o guarda-chuva: oui, en Paris, sous le parapluie! A epifania de um breve instante. Instantâneo que não empalidece com o tempo. Cada um pro seu lado, mas colhi a flor daquele encontro fortuito como bom agouro da minha estadia. No mapa oferecido na recepção do hotel, o layout da cidade mostra arrondissements (bairros) marcados de 1 a 20, no formato de uma espiral, começando pelo centro velho em torno do Louvre.
É pra lá que eu sigo. A entrada, uma enorme pirâmide de vidro de design arrojado (desenhada pelo arquiteto chinês I. M. Pey, projeto aprovado pelo então presidente Miterrand e realizado em 1989) não se choca com as clássicas linhas de sua arquitetura. Quer você privilegie trabalhos, autores ou períodos quer apenas aja como flanêur, passeando nas galerias, o esplendor é o mesmo (a Mona Lisa, a Vênus de Milo e as antiguidades do Egito acenaram-me, nas duas vezes em que lá estive, para conferi-las). Fique o tempo que puder. Volte, se assim desejar, nunca é demais (diz-se que se a gente permanecer cinco minutos apreciando cada obra desde o momento da abertura até o horário do fechamento precisará de dez anos para ver tudo). Saindo, encontra-se o Jardin des Tuileries, assim denominado pela terra argilosa usada para fabricar telhas, tuiles.
O entardecer aí é extraordinário, o olhar quase não suporta o impacto dessa visão.
Mais três museus devem ser incluídos em qualquer itinerário: o d’Orsay (situado numa antiga estação ferroviária, contém uma extraordinária coleção de arte da segunda metade do século XIX), o Picasso (numa belíssima mansão que abriga o maior acervo do artista) e o Rodin (além de O Pensador, várias obras-primas do mestre e de Camille Claudel, sua discípula nas artes e no amor; o jardim das esculturas é lindo e propicia boas fotos).
Seus principais ícones são: Torre Eiffel, construída para a Feira Mundial de 1889, acabou tornando-se o símbolo de Paris. Arco do Triunfo, monumento dedicado a Napoleão. Catedral de Notre-Dame, imponência gótica erguida numa época em que a maioria da população era analfabeta, conta histórias bíblicas através de seus portais, pinturas e vitrais. Sainte Chapelle, não perca a chapelle haute (capela superior): cenas do Velho e do Novo Testamento são retratadas em quinze janelas de vitrais. Basílica de Sacre-Coeur, no topo de uma escadaria ou, se preferir, vá de funiculaire, a vista é soberba; no em torno há exposições de pintores e caricaturistas. Centre Pompidou, de linhas arrojadas: o exterior coberto de um emaranhado de tubos coloridos e escadas rolantes que levam de um andar a outro. O rio Sena, por onde se pode navegar de bateaux mouche ou descansar em suas margens.
Outras atrações: o Cemitério de Père-Lachaise (Chopin, Oscar Wilde e Isadora Duncan, embora aqui não tenham nascido foram enterrados ao lado de Molière, Proust e Edith Piaf). O Panthéon (encomendado por Luis XV após recuperar-se de grave doença, em tributo à Santa Genoveva, padroeira de Paris) também abriga os túmulos de Voltaire, Rousseau e Zola. Conciergerie (uma prisão durante a Revolução Francesa; Maria Antonieta esteve aí detida). Hotel des Invalides (hospital e residência para os feridos de guerra, hoje comporta vários escritórios e um museu que expõe toda a parafernália militar). Les Egouts de Paris (os esgotos: há quem goste de apreciar essa maravilhosa obra de engenharia).
Vagabunda andarilha, caminho sem cessar por ruas, passeios cobertos, praças, parques e bairros e, incrível, são eles que me deixam suas pegadas.
Parodiando Mario de Andrade, adoçam-me que nem verso de Rilke. Place de la Concorde. Champs-Elysées. Boulevard Saint-Germain. Place de Vosges (a mais antiga e a mais bonita, com a singela casa número seis, onde morou Victor-Hugo). Parque Bois de Bologne (no passado, floresta e reserva de caça da realeza). Quartier Latin. Marais. St-Germain-des-Près. Montmartre. Jardin du Luxemburg (o preferido das crianças). Place Vendome (um dos endereços mais sofisticados, com o hotel Ritz e lojas de grife). Se quiser compras mais econômicas procure Galeries Lafayette, La Samaritaine, Printemps ou ainda visite o Marché aux Puces (mercado de pulgas). Os aficionados por literatura tem de marcar ponto na Livraria Shakespeare&Company, outrora freqüentada por Hemingway, Fitzgerald, Gertrude Stein e outros eruditos; no comando de Sylvia Beach foi responsável pela primeira edição do Ulysses, de James Joyce. Na Comédie Française clássicos são encenados. Se gostar de ópera: Bastille é seu principal palco. Um tanto decadentes, cujos dias de glória lá se vão, mas ainda há quem não perca seus espetáculos: Lido, Folies Bergère e Moulin Rouge.
Nos arredores, a 23 quilômetros de Paris encontra-se o Château Versailles, palácio edificado por Luís XIV, o Rei-Sol, patrimônio mundial da Unesco, com seu famoso Hall dos Espelhos, local em que foi assinado o acordo para o fim da segunda guerra mundial. Prepare-se para um dia inteiro de visita, guiada, de preferência.
Cidade-sedução. Histórica. Romântica. Sua graça, beleza e mistério penetram nos catres mais escuros do meu ser, iluminando-os. É “voltar aos dezessete anos, depois de viver um século”, como cantava Mercedes Sosa a composição de Violeta Parra. Razão e sensibilidade juntos muito podem: transpassa-me a ilusão de paz e completude. Canto, desde então.
Sem a melancolia dos instantes perfeitos
sem os rios de luz colorindo os cristais,
sem a agonia luminosa do fugaz
é impossível cantar
(Bruno Tolentino)
Ana Guimarães é carioca, psicanalista e publica no seu blog
http://ogozodaletra.blogspot.com.br/2011/10/o-gozo-da-letra.html
e nos seguintes sites:
http://www.gargantadaserpente.com/
http://www.germinaliteratura.com.br/ana_guimaraes.htm
http://www.blocosonline.com.br/home/index.php
http://www.jornaldepoesia.jor.br/anaguimaraes.html
http://cronopios.com.br/contosdenatal/anaguimaraes.htm