Em estado bruto
A Estrada de Alice, óleo sobre tela, 2006, By Tere Tavares Sinto um imenso vácuo dentro da cabeça. Como se milhares de zunidos dançassem em meus ouvidos. Uma pequena...
Revista digital de Arte e Cultura
A Estrada de Alice, óleo sobre tela, 2006, By Tere Tavares
Sinto um imenso vácuo dentro da cabeça. Como se milhares de zunidos dançassem em meus ouvidos. Uma pequena haste de Heráclito me põe nos lábios um sabor de noite e logo se vai. Porém, sou eu que não vou e me perco no intervalo de um "preciso ir" e um "quero ficar".
Como se possível fosse ocultar-me de mim, num furto dolorido, juntando os olhos e a pele untados de transgressões, mal vestindo o querer mais farta ser do que sou, digo a mim mesma: amanhã, do final para o meio, sabendo o mesmo vácuo que se desprenderá da luminosa perspectiva: o meu caminho mesmo – que de mesmo só tem o ponto que desponta nas raias do sentido – tão estranho e grandiosamente pequenino, mais quando a minha substância é consciente da própria insubstancialidade.
Recolher-se ao que é mais e é tanto
À grandeza de não ousar medir, à caça de encontrar-se, continuamente, submerso ou à tona, onde fosse possível pousar os sentidos ou brilhar ao lado de outro lado, como desesperanças que ainda esperam – lendo-as inerentes a sua forma de ver o mundo – ele prosseguia olhando o campo de margaridas ao seu redor, tentando comunicar-se com elas. Nenhuma lhe respondia. Ele fingia não perceber. Chamava-as pelo nome – cada uma tinha o seu – continuavam a não responder. Era como beber uma segunda impressão tão absurdamente vívida à sabedoria dos seus olhos, que sua intenção se abrandava numa linguagem breve e noturna.
Investigou o silêncio das margaridas. Algo acontecia enquanto ele derramava palavras sobre os seus mantos brancos. Os verdes ficavam mais verdes, como se ocupados de uma tintura especial de gotas finíssimas e de quase imperceptível distância. Demonstravam uma indisfarçável inquietação diante de seu estado próprio de mistério. Mas, ao incauto, porém não de todo distraído caminhante, apresentavam-se indubitavelmente serenas.
Um dia escondeu-se no meio delas. E pode, finalmente, ouvi-las: “Ele não veio hoje”. “Que pena”. “Ele é da menina colmeia humana, e as pessoas jamais se curam do que as deixa suficientemente grandes para crer, e crer é no mínimo a metade do caminho”. “E se quisermos não ser mais o líquen velado a guardar seus murmúrios?” “Poderíamos pedir-lhe para voltar, em uníssono”. Calaram-se sem vê-lo – pareciam uma tela de Monet. Mostrou-se. Calaram-se por vê-lo – eram aparentemente indiferentes à sua presença.
Ele estava consciente, por fim, que a existência de tudo continuaria apesar da sua, que os matizes inaudíveis das senhoras do mal-me-quer e do bem-me-quer se multiplicariam quer ele despendesse atenções ou não. Enquanto se propunha a abandonar o não essencial, as impressões, ora reais ora sonhadoras daquele pequeno lugar, reconstruía a necessidade de continuar em busca de algo intrépido, diverso do que julgava comum, mas que fosse indefinidamente repleto do prazer contido na alegria e na dor de relembrar, em cada momento vivido, o deslumbramento de uma certeza que remoçasse em outra dúvida. Prosseguia singularmente resoluto. E de cada sulco do caminho que o ignorava resplandecia um sólido assobio: “Apenas quem está em tremenda confiança tem na coragem a suficiência de não deter as lágrimas”.
Caminhada
Nas minhas horas de não fazer nada é que percebo melhor o quanto me é possível fazer. O não mister me traz um pouco do que se perdeu no tempo de não ter tido tempo, nem todos os livros para ler. Tenho a ambos, (ainda não todos de que preciso, ou gostaria). Uma história igual a outras muitas deste mundo mal-repartido-por-mãos-humanas. Geograficamente o mundo é perfeito. Não é um dito gracioso. Antes um lampejo de imutável realidade.
Assim dada a pesquisas, depuro o pedaço de reminiscências, caminhando vagarosamente sobre a sombra dos ipês. Ofereço aos ardores do astro-rei o branco da tez, a minha cara de quem procura. Um pensar traidor assalta-me o fluxo: seres degredados são armas em riste. Intuitivamente, e, antes que meu consciente me diga o que fazer, escondo – sei como – o Ray Ban e o livro na gola da blusa. Olho tudo sem conseguir (ou mal conseguindo) disfarçar a incômoda sensação de medo. Alguns atletas adotados por ONGs passam por mim. Uma pequena oportunidade de resgate se apresenta ao menos para estes que correm contra o próprio infortúnio e as consciências aliviadas dos “ongueiros”.
Folhas outonais recobrem a crueza do caminho. As nuvens retornam como se aprovassem a própria sombra. Calmamente, tento retomar a leitura. Quase obtenho sucesso não fosse este pensar: a tão atual e famigerada inclusão é por si só, excludente. Impossível não lembrar Darcy Ribeiro e a “desmemória a fazer de nós um país eternamente inaugural”. É a interminável dicotomia entre o ter e o ser.
Como se dialogasse com alguém que me ouvisse: “Sorry” o desabafo. Sorrindo – juro que estou sem bafo de nada – sou abstêmia. (ou seria besta?). Sinto-me um pouco menos. Uma vez para cada vez que a graça desfere outra graça.
Desenrolar o viço deitado no dorso e dizer-lhe sobre isso antes que escureça. O preceito que traz por dentro a fantasia sábia, o farfalhar calado num pedestal – pequenos e ingênuos vincos – seus pueris pensamentos, completar alguma coisa, tornado-a inteira, perfeita ou imperfeita, porém, tão preciosa quanto encontrar novamente o delicioso esplendor das transparências, de ser-lhe mais uma dançarina.
Tere Tavares, escritora e artista plástica vive em Cascavel, Paraná. Tem publicados três livros: Flor Essência poemas (2004), Meus Outros poemas e prosas (2007) e Entre as Águas prosas (2011). Participante de três coletâneas editadas em Portugal: A arte pela escrita III (2010) Cartas ao Desbarato (2011) e A arte pela escrita IV (2011). Teve trabalhos selecionados no Banco de Talentos FEBRABAN com o conto Sem pena de ter em 2007 e com a poesia Eu em mim; de um outro lado em 2009 – ambos editados nas antologias da FEBRABAN. Ainda em Portugal foram publicados poesias e prosas em diversas edições do Debaixo do Bulcão Poezine. Na antologia Contologia da revista Arraia PajeurBR teve a publicação do conto Ainda sobre Margaridas. Colabora com trabalhos de poesia e contos em vários portais e sites brasileiros na Internet: Cronópios, Histórias Possíveis, Blocos on line, Ver-o-Poema, Musa Rara, Revista Diversos Afins, blog Dardo. E ainda no jornal on line O liberal de Cabo Verde, e no portal lusófono litero-artístico EscrtArtes. Integra a Academia Cascavelense de Letras onde ocupa a cadeira de número 26. Edita o blog
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Mais sobre Tere Tavares:
http://www.germinaliteratura.com.br/2013/tere_tavares.htm
http://cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=5780
http://diversosafins.com.br/?p=5151
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