O buscador de pássaros

Tere Tavares


  

É, segundo, ou seguindo, as suas escolhas – livres, porém nem sempre ouvidas. Ouvia-se ao perguntar-se o que seria da lucidez sem o lúdico. Sem ilusões?

Um sim inegável, contundente e necessário à reformulação da personalidade, de um personagem que, sem dúvida, passava pelas estações como se guardasse músicas na pele, a fluir constantemente, sem interferências de quaisquer atmosferas que não fossem o seu rebanho – orvalhos que até hoje o seguem, porque lhe são gratos e fiéis. “A alegria da vida só não é maior que a minha vontade de estendê-la”.

Há uma defesa inofensiva quando se agitam dentro de si os ninhários, entende que nem tudo é vão, e que, vá lá, alguma coisa passa despercebida quando a motivação é a ternura de um pastor, mesmo arredio. Irremediavelmente só. O registro, entretanto, não lhe escapou o suficiente para ser esquecido. Caminhava no ininterrupto percurso do pensamento, livre dos enfados da memória.

Entre vida e morte há a arte que sobrevive desdenhando do tempo: “Ao descer pelas correntes das águas, encontro o fio, rarefeito por vezes, mas ainda com apegos à meada, tramada, quiçá, por tantos destinos quantos lhes dou. Uma gota de paz ou uma frase quase sempre triste, carregada por essa alma de céu que, a mim mesmo, é estranha”.

Nada lhe parecia mais abandonado que sua orfandade repleta de humílimas frequências – as mais surdas e absurdas. Ousava com a evidência de acertar. O acaso entrava no rol inapelável de reconstruir-se como se gostasse mais da sua fala antes de torná-la conhecida, de querê-la asa.

Estará na manhã, ainda que invisível, porque é lei nascer infinitamente. Sem equações a determinar, no subjetivo inóspito e inesquecível que lhe retrata o organismo dançante. Prelúdios diáfanos afagam-no feito um tilintar de marfim. Seria sem término o amor que é. Perfeito. Como não enamorar-se do silêncio, do seu murmúrio e não buscar no rosto o alento do nó anterior ao sal, ao mel retido nas indecisões, e tecer o imaginário leve e verdadeiro sem mitigar o cordão do conjunto? "A beleza de uma paisagem reside na tristeza", diz-lhe Ahmet Rasim.

Retornou diferente do que viera. Mas, ainda com a mesma fogueira que aludiu de refúgio – vagava consumindo-se pela arte de merecê-la. Salvou-se porque sonhava – e nunca estivera tão próximo da distância. E a distância eram rotas em forma de papel e incêndio. A perda não diminui o amor que existe, nem deprime a supressão da saudade. Defronte a isso, respondia de forma inevitável, entremeado nas ânforas do sentir, no limite de haver conformidade na afável emboscada das alegrias ainda vivas. 

Por outro viés, conhecera Dona Mimosa. O nome não lhe tinha sido dado por acaso. Depois do seu galho de arruda aspergido sobre o corpo, sentia-se ausente de cinzas, feito miríades de estrelas diante das sâmaras voláteis das cabriúvas. Frutos indeiscentes, um Universo inexprimível, acessível apenas à beleza fraterna existente em tudo o que o rodeava, e o rodearia. Nada é desperdiçado ou preterido para um ser iluminado – a importância de haver ecos por perto, mesmo que erradamente certeiros.

O canto da ave símbolo do Brasil é quase uma composição de Villa-Lobos a despertá-lo – durante toda a primavera e parte do verão canta à sua janela, incitando-o a reger as próprias circunstâncias a partir do que é dado, do que é oculto ou simulado, ao perceber e distinguir o inteligível, o sensível, e então agigantar-se no desejo de partir. Quiçá voar.

Das impressões colhidas, ficou-lhe evidente – se é que se pode nominar algo de evidente dentro da subjetividade – que a acha mediadora entre o fogo e o céu, é o intervalo entre um acontecimento e outro, entre um ser e outro, entre uma e outra sociedade.

Lê-se com o eufórico sabor da flora, das idiossincrasias da verdade – há que prestar atenção à capacidade de dar vazão ao zelo. Doa-se a outros mundos, com e sem espera, sempre com observação. Míssil sem destino. Salvar-se sem pretender: eis a porção de ar necessária. É preciso ser herói da própria respiração. O ar, em sua singeleza, ensina-o a estar junto dele, como se também fosse eterno e imperceptível. 

Nas facetas que se travestem de heteronomias, calcorreiam performances rumorejantes ao que transita de mais profundo e imperecível em seu ser: o outro onde se enxerga porque existe e nunca se extingue – a ânsia por céus e mares nunca navegados, mas reconhecidos pelo gosto. O mar não se nega ao mundo, nem ao náufrago. Ele sabe das amarras, dos naufrágios que sobrevivem, para beber as redes finas, fugidio sem ser esquivo. Ele é crivo de sendas no recrudescer sem fim dos verbos, entre beber estrelas filtradas em cada palavra e ousar não profanar as cores do mundo. Ele é a limpidez a tanger os crepúsculos, onipresença intocável de algo que abre espaços na sã virtude que reina perto do sol, enquanto letra é adição, voz silenciosamente audível. 

No fim do dia brilha num prenúncio. Simplesmente reluz. Como se fosse o hálito das amoras e uma lama perfumada tivesse lhe banhado os olhos com fontes bebidas das chamas: “eu perfuro os caminhos das labaredas como se adentrasse nas orlas das águas, desconheço o recinto, sinto a palpitação que adormece sobre os membros junto à lareira, o patamar que se aquece aos primeiros sinais do fumo, que fará morada no horizonte das queimas, como se desse oxigênio aos pássaros que aproximam as asas às cúpulas da névoa ribeirinha, no despertar”.

A porção que satisfaz não é a mesma para todos, embora possa ser comum a alguns. E para ele, a veste da vida é espessa de luz, a luz ligeira que se perfila nas tramas aladas. E como transcende ao que o molda, sendo somente um de vários: “o tempo não se perde nunca na mesma proporção em que nele me perco. Não lembro em que brisa me deixo carregar, se na mancha cromática, na comissura dos elementos, na curvatura da praia ou no mar alteroso. Cá estou, neutrino”.

As obras de arte abreviam toda uma história, são como um testamento de emoções que não se esgota nos sentidos. Arte e pensamento – sentimentos revestidos das mais sublimes manifestações, compreensões e incompreensões humanas.

Uma cena onde definham alma e dignidade, num lugar de templo, onde nunca se poderia supor esperar pelo espírito diverso da edificação – a engenharia complexa, mesmo para si, o pensamento exíguo dela, quando, de pertencimento, considera apenas o efêmero, as oscilações desfolhadas na ilusão de ter-se à navalha sem fio dos segundos – losango, dêixis.

Só o que se ousa enxergar se torna visão. O que da outra parte pende em reflexo, não é senão o próprio rosto visto do exterior, a recolher a imagem que, por desconhecimento, aludiu única. Ele fica declarando mais palavras, dando-se à praia, ao cosmo inteiro, a não pertencer-se de preenchimento, como lei áurea, depondo-se conforme o requer a luz, ainda e novamente o bando liberto, a luz, a asa.

Amanhece. E uma nova demora abraça o calor de um sol que jamais deixa de evidenciar. O amor, que por vezes é flor, por outras é a terra sob a flor, e por outras ainda é o perfume alado das sementes. Única arma que dispõem sem ultraje. E era, e é, somente agora, liame de céu, pássaro posto à superfície da água – samadi.

 

Tere Tavares é autora de sete livros publicados: "Flor Essência" (2004), "Meus Outros" (2007), "Entre as Águas" (2011), “A linguagem dos Pássaros” (Editora Patuá 2014), “Vozes & Recortes” (Editora Penalux 2015), “A licitude dos olhos” (Editora Penalux 2016), “Na ternura das horas” (Editora Assoeste 2017). Boa parte de suas obras literárias é ilustrada com suas obras de pintura. Conta com diversas publicações em antologias, jornais e sites literários no Brasil e Exterior. Reside em Cascavel, PR.
Edita o blog: http://m-eusoutros.blogspot.com.br.

 

 

 

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