O Cata-Vento Maluco

Otávio Martins


Nunca perguntou ao pai porque a escolha de um tango argentino. Sua mãe, ele bem o sabia, era de fazer-lhe companhia, pelo simples hábito de permanecerem juntos em quase todos os momentos de lazer.
À tardinha, seu pai costumava colocar na eletrola sempre o mesmo disco de Gardel – “uma relíquia”, como costumava dizer – para em seguida sentar-se na sua poltrona preferida. Tudo parecia mais uma encenação da primeira vez que escutou – junto com sua mãe, supunha – a belíssima composição de Gardel, Razzano e Celedonio Flores.
Não lembrava direito desde quando os acompanhava naquele ritual - quase um culto à nostalgia. Enquanto o seu pai colocava, cuidadosamente, o vinil no prato da eletrola, sua mãe e ele tomavam acento nas outras duas poltronas e, sem qualquer palavra, aguardavam os primeiros acordes da introdução de Mano a Mano. Carlos Gardel, El Morocho, como era carinhosamente chamado pelosporteños, logo começaria a contar a história de um grande amor, numa gravação de 1923.
Quase encostada na parede do lado interno da grande varanda, a eletrola, instalada num móvel de três compartimentos, em madeira envernizada, ganhava um toque colorido por uma tela aveludada, verde-escuro, pespontada por fios dourados, que servia para cobrir o nicho onde estavam instalados os alto-falantes. Dali surgiriam os sons que impregnariam o ambiente com uma das mais lindas e conhecidas músicas do cancioneiro argentino.
A iluminação da varanda, que tinha todo um lado envidraçado, era proporcionada pelas réstias que escapavam do sol a se pôr detrás do quintal, atravessando por entre os galhos e as folhagens das enormes figueiras e um imponente abacateiro. Não se atinava para outros detalhes da imensa varanda, como se todo o ambiente fosse preenchido apenas pelo som que vinha da eletrola e aqueles tênues raios de sol, além dos três personagens que permaneciam imóveis e silentes durante toda a audição. 
Logo após a última nota do Mano a Mano, o tempo retomava o seu curso e cada qual ia para o seu canto. Enquanto seus pais encaminhavam-se, vagarosamente, para o interior da casa, ele, num gesto quase autômato, dirigia-se ao seu quarto, que também lhe servia de estúdio. Localizado do lado esquerdo da varanda, quase chegando aos fundos da casa, a porta permanecia quase sempre fechada. Nem mesmo a senhora que ainda vinha, de vez em quando, para dar um jeito na casa, entrava em seu quarto. Ele mesmo se encarregava de arrumá-lo. Não obstante, era de fazer-lhe algumas confidências.        
De sua janela ele podia estender a vista além do quintal, até alcançar os trigais que o sol – recém passada a primavera e já nos primeiros dias de calor – banhava com uma luz tão intensa, já ao tempo da colheita, que lhes davam a aparência de pequenas ondas douradas que corriam em direção ao horizonte, formadas pela suave brisa do verão. Durante o inverno, boa parte da terra ficava em descanso para outras safras, deixando um vazio, de aspecto triste, pela ausência da vegetação e de algumas flores que só voltariam na próxima primavera.

Do lado de fora, nada, ou quase nada, se ouvia depois que ele trancava-se no quarto. Espalhados pelo pequeno cômodo, enormes bonecos traziam entre as mãos, cada um, o seu instrumento: violinos, violas, celo e madeiras, postados, assim, como uma orquestra de câmara. Todos vestidos ao rigor de uma grande apresentação. Somente ele ouviria, através dos fones, a música que passaria por um amplificador de alta fidelidade, trajando o melhor de seus figurinos para a ocasião; tinha caídos sobre os ombros, os cabelos soltos e desalinhados, precocemente grisalhos. Após alguns instantes de concentrado silêncio, sussurrava, dirigindo-se aos outros componentes da pequena orquestra, a contagem para definir a divisão e o andamento dos compassos que viriam ao erguer a batuta, num gesto de extrema delicadeza e elegância, iniciava a regência de um dos mais belos quintetos de Mozart.
Depois que a mãe morreu, talvez por costume, ainda acompanhava o seu pai nas audições do tango de Gardel, que continuaram acontecendo por todas as tardinhas.
Em algumas manhãs, era de transpor os limites do quintal, para ficar próximo à plantação de trigo e dos canteiros de girassóis que a circundavam e ali permanecer, por longo tempo, imóvel, na feição de um espantalho, hipnotizado pelo espetáculo de luz e movimento.
O mesmo entusiasmo com que regia a pequena orquestra, dedicava para o restante do tempo na construção do seu cata-vento, de grandes dimensões, o qual ele chamava de circuladô de fulô, nome que aprendera numa das canções de Caetano Veloso. Acreditava que a sua engenhoca ainda o levaria, como as asas de um beija-flor, em meio a uma noite estrelada, muito além dos trigais e dos canteiros de girassóis.
No dia em que não mais precisou fazer companhia ao seu pai, para ouvirem o francês Charles Romuald Gardés – o verdadeiro nome de Carlos Gardel - numa de suas mais belas interpretações, trancou-se em seu quarto e dizem que nunca mais foi visto pela vizinhança.

 

 

Otávio Martins nasceu em Bagé - RS, divisa com o Uruguai, onde está atualmente. Mora em Pelotas e já fez de tudo um pouco na área de fotografia e cinema, produção de discos e shows. Foi repórter fotográfico e cinegrafista na antiga TV Tupi, em Fortaleza TV Ceará -em 69/70 com seu amigo- o produtor de TV e cinema Paulo Augusto Santiago, com quem aprendeu a filmar em 16 mm, preto e branco, negativo. Neste período fez muitos filmes para um programa ao vivo: Porque hoje é sábado, principalmente com o Belchior e o Fagner. Foi repórter-fotográfico nos anos de 1977 e 1978 na sucursal do Correio do Povo de Porto Alegre em São Paulo que ficava na Praça da República. De 78 a 81 produziu shows e discos independentes com Eduardo Gudin, Roberto Riberti, Adoniran Barbosa/Paulinho Nogueira, João do Vale, Zé Kéti e outros. Foi produtor assistente do Primeiro Festival Universitário da TV Cultura em que Arrigo Barnabé foi o primeiro colocado e o segundo o Grupo Premeditando do Breque. Foi ainda assistente de produção do disco do Festival, cujo produtor era Antonio Carlos Carvalho, produtor da Continental. Trabalhou na divulgação de discos entre os quais de André Barata que fazia as músicas para Fafá de Belém em parceria com o pai dele. Fora isso e, além disso, é cozinheiro profissional com ênfase em frutos do mar tendo trabalhado seis ou sete temporadas em Florianópolis - Ingleses, Canasvieiras, Barra da Lagoa e outras praias, como chefe de cozinha até 1996 e para onde voltou em 2003. E para não falar que faz só isso foi durante quase um ano contrabaixista de um grupo de música popular brasileira. Atualmente edita o digital nb Jornal que nasceu há quatro anos. Foi quando começou sua vida de cronista, contista. 
nb.jornal@yahoo.com.br

 

Ouça Leila Pinheiro cantando Cata vento e Girassol

http://www.youtube.com/watch?v=_ShiqGQp8hQ

 

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