Em estado bruto
A Estrada de Alice, óleo sobre tela, 2006, By Tere Tavares Sinto um imenso vácuo dentro da cabeça. Como se milhares de zunidos dançassem em meus ouvidos. Uma pequena...
Revista digital de Arte e Cultura
Meu pai dizia que uma mulher vale nada perto de um homem. Tudo pros irmãos, nada pra mim. Nem terminava a pergunta e a resposta era não. Pior foi: ir à escola? Não, vai aprender a escrever bobagens, ler bilhetes indecorosos, trazer dever de casa pra fazer. Perda de tempo, quem vai ajudar sua mãe? A roupa pra lavar esperando, camisa faltando botão, louça suja amontoada na pia, comida queimando, todo mundo reclamando. Depois, pra que? Trabalhar fora quando crescer, nem pensar, vai se perder. Lugar de menina é em casa. Sair, só pra igreja. E mesmo assim, cuidado com padre Paulinho, muito novo, bonitinho, sonso, interessado demais em você. Resolvi ser homem, subi na cadeira e defronte ao espelho cortei as tranças. Levei uma surra de cinto, emblemática da iniciação ao mundo masculino: sem derramar uma lágrima sequer. Teimosa, aprendi a ler e a escrever sozinha, escondida. Manchetes dos jornais, capas de revistas, bulas dos remédios. Saboreava as letras como sorvete de chocolate aos domingos. Manuais, cartazes, reclames os mais diversos também faziam parte do menu. Parecia que o mundo crescia, espichava, e eu junto. Aos sete, para espanto de muitos, já fazia troco, media com a fita métrica e pesava na balança da loja de tio Carlos. Com a pressão de parentes e amigos, fui matriculada na escola. Tirei dez em todas as matérias, entrei direto na terceira série. Só na prova oral é que me pediram: pode falar mais devagar, menina? Não estamos conseguindo acompanhar a sua fala, que dirá o raciocínio! Novidade, nem eu! Tudo muito rápido se descortinava pela minha mente, como as paisagens que via passando pela janela do trem quando viajava pra cidade grande. Passava de ano com medalha de ouro, prata ou bronze. Meu pai começava a se orgulhar de mim, seus olhos o traíam, mas não dava o braço a torcer: elogios só às minhas costas. Pela frente, jogo duro. Aos dezesseis, vestibular na capital, hospedada na casa de parentes. Quando viram meu nome em primeiro lugar na lista dos aprovados todo mundo chorou, menos eu, homem não chora. Mal o ano letivo começou: você entendeu essa questão, me explica? Me dá cola? Aula particular? O professor quer que você seja monitora. E eu queria mais, muito mais. Literatura, filosofia, línguas, artes plásticas. Música: ler partitura era duplicar o mundo! O primeiro emprego: sorvete de chocolate todo dia. Tenho os joelhos cheios de marcas, vivia correndo, tropeçando e caindo. Aí era quando temia que mais me revelasse, mas não. Só pros observadores, é claro, e eles eram poucos. Meu irmão Toninho, que trocou de lugar comigo e queria porque queria ser mulher, sempre protegido por mamãe, era um deles: parece que a minha irmã quer abraçar o mundo com as mãos, como se um dos dois fosse desaparecer de repente! E ba preta, sempre silenciosa, apenas arrastando um olhar doce e profundo pela casa, exclamava um 'essa menina sabe tudo', sem sentido aparente. E eu sabia mesmo. Embora não compreendesse, sabia. Olhe por onde anda, tenha modos, comporte-se como uma mocinha, não como potro selvagem, pulando daqui prali, pinoteando, esbarrando nas coisas, tudo derrubando e a si própria. Se machucando, cheia de manchas roxas. Para com isso, com essa coisa ruim que não te dá sossego, papai dizia. Que te provoca, instiga, alucina você tem pressa de quê?
Ana Guimarães é carioca, psicanalista e publica no seu blog
http://ogozodaletra.blogspot.com.br/2011/10/o-gozo-da-letra.html
e nos seguintes sites:
http://www.gargantadaserpente.com/
http://www.germinaliteratura.com.br/ana_guimaraes.htm
http://www.blocosonline.com.br/home/index.php
http://cronopios.com.br/contosdenatal/anaguimaraes.htm