Amália Zeitel e José Ferro falam sobre os objetivos e método de trabalho de Nelson Rodrigues O Eterno Retorno

Ana Lúcia Vasconcelos


Juntando o mito do Eterno Retorno estudado por Mircea Eliade, a teoria dos arquétipos de Jung e quatro peças de Nelson Rodrigues: Beijo no Asfalto, Os Sete Gatinhos, Toda Nudez Será Castigada e Álbum de Família, o Grupo de Teatro Macunaíma trabalhou durante dezoito meses sob orientação de Antunes Filho para compor o espetáculo que seguramente ficará na história do teatro brasileiro como um dos mais importantes de todos os tempos.
“O extraordinário em Nelson Rodrigues”, escreve Valderez Cardoso Gomes num dos textos editado pelo grupo,“ foi sua maneira impar de retratar o Brasil, sem deixar de desvendar o Universo. A essência dos seus escritos é sempre a mesma: o enfoque obsessivo do ser humano além das máscaras sociais, até atingir suas paixões primitivas, seus impulsos genuínos, geradores de seus projetos quiméricos, seus sonhos e visões fantasmagóricas expressos em seu comportamento original.”.
Segundo Valderez a ousadia de Nelson Rodrigues foi devassar “o ultimo dos seres humanos, radiografar a sociedade de seu tempo e mostrar a vida como ela é, acima dos conceitos do bem e do mal e da moral convencional de seu tempo. Por ser dupla a dimensão contida em toda a sua obra: essencialmente carioca, suburbana, brasileira e ao mesmo tempo primitiva, universal, cosmogônica, somente o enfoque mítico justificaria a sua abordagem, pois suas peças por suas características autenticamente nacionais, humanas, e cósmicas, reproduzem em si a Comédia Humana Mítica Brasileira.”
Nesta entrevista Amália Zeitel mestra em teatro pela USP e José Ferro, ator e jornalista, falam sobre os objetivos e o método de trabalho do grupo durante a montagem do espetáculo.

P. - A montagem de Nelson Rodrigues O Eterno Retorno foi uma tentativa de lançar uma nova luz sobre a obra de Nelson Rodrigues?


Amália Zeitel - O que nos conhecemos do Antunes hoje é que ele vê o Nelson Rodrigues de uma maneira especial. Então ele quis trazer para o palco um Nelson diferente, inclusive reabilitar a imagem do Nelson - o Nelson poeta, o Nelson grande dramaturgo. Acho que a palavra é esta: a nossa proposta foi ressuscitar o Nelson Rodrigues. Porque o Nelson Rodrigues é a - histórico, a – político.

P. - Por que a opção por quatro peças e não uma como se usa convencionalmente?
Amália - Quando você faz uma peça de um autor se tem uma visão muito limitada e dentro de uma especificidade. Mesmo que você veja ali os arquétipos, mesmo que você veja o inconsciente coletivo sempre se tem um “individual”, um pequeno mundo, um “microcosmo”. Já quando se analisa a obra de um autor você tem a dimensão deste autor muito magnificada. E se passa a perceber a obra dele com outra grandeza. Podem-se extrair as estruturas fundamentais porque são obsessões que se repetem e se começa a perceber que subjacente a obra é como se houvesse um polo de imantação: o autor vai para aquilo .Você tem como que um “imã que atrai a limalha de ferro ”, aliás a frase não é minha e do Morón.

P. - A imagem é ótima...


Amália - Inclusive isso é inconsciente porque ele obedece a seus impulsos. Nelson, não tenho duvidas, é um intuitivo.

P. - Beijo no Asfalto, Os Sete Gatinhos, Toda Nudez será castigada e Álbum de Família.Qual é o fio que une estas quatro peças e que determinou a escolha para compor este espetáculo?


Amália - Bem, antes de qualquer coisa eu quero dizer que foram lidas as dezessete peças do Nelson Rodrigues que afinal parece que são dezenove sendo que ele mesmo fala em vinte. De inicio se pesquisou as que tinham preferência do elenco, mas em função também de alguns pressupostos que seriam necessários: a funcionalidade do espetáculo, aqueles que expressassem melhor o mundo do Nelson Rodrigues. Apesar de se ter partido já de algumas coisas conhecidas, se foi descobrindo no decorrer do trabalho. Havia dois princípios básicos: do arquétipo ou inconsciente coletivo do Jung e o Mito do Eterno Retorno do Mircea Eliade. Porque o Mircea Eliade descreve um tipo de comportamento do homem arcaico, do homem primitivo, que vivia em contato mais direto com a natureza e cujo sistema de vida era cíclico. Quer dizer, eles não estavam fazendo uma história que se renovava, mas estavam repetindo padrões, modelos. Repetiam o mesmo gesto primeiro do herói ou do seu deus: o casamento, a colheita, a erogamia, ou seja, união do Céu com a Terra, as orgias que precediam as colheitas. E neste aspecto a gente percebe uma coerência muito grande no Nelson porque ele é um repetitivo. É como se tivessem inventado para estudar no Nelson Rodrigues. E a partir disso a gente pode dizer que o homem do Nelson Rodrigues é a histórico. Você não vê nos personagens do Nelson uma atuação histórica, social e política. Você vê o arquétipo, o comportamento mítico. Embora se veja uma pobreza social, por exemplo: um funcionário com um misero salário que prostitui as filhas na peça Os Sete Gatinhos, peça que na verdade não quer dizer nada disso-é uma metáfora.A prostituição é uma maneira de vender o corpo.Eu me pergunto qual é o ser humano que em nome de um ideal não vende a alma todos os dias? A gente vive fazendo barganhas.

P. - E quais seriam digamos as grandes obsessões que se repetem na obra de Nelson Rodrigues. Você falou a pouco do papel desempenhado pelas orgias, pelo caos que leva a mudanças na vida dos personagens. Fale sobre isso.


Amália - Eu diria que em geral seus personagens não têm a casca da civilização, ou melhor, quando eles tem é o extremo neurótico, é o contraponto do homem paixão, o contraponto do trágico. O Nelson mostra um homem incapaz de fazer uma síntese, incapaz de ter bom senso, incapaz de ter equilíbrio. Em suma: seus personagens estão sempre na turbulência de suas paixões, ou no extremo oposto quando então é um homem castrado, impotente que afinal é um comportamento de defesa na medida em que ele tem pavor do seu lado obscuro, sombrio. Uma outra constante na obra do Nelson: acaba acontecendo sempre um caos, uma orgia, que termina por transformar tudo. Veja o papel do canalha na obra do Nelson Rodrigues. Ele tem uma galeria de pulhas, de canalhas. O que o canalha faz? Ele manobra. Em Toda Nudez Será Castigada, o canalha faz o irmão casar com uma prostituta para se vingar dela através das tias carolas que a tratam mal. Há ainda uma morte ou mortes nas peças do Nelson, que são o preço da renovação. Da morte vem a vida. O castigo para ele é a própria vida: o purgatório da vida. Isso porque o Nelson acredita na ressurreição. Se observarmos bem a obra do Nelson há sempre uma mulher grávida que ia fazer um aborto e acaba não fazendo porque alguém morreu. Veja oBeijo no Asfalto: quem se lembra que a mulher ia fazer um aborto? E no Álbum de Família?Senhorinha vai embora com o filho enquanto o pai morre. É o ciclo da vida que tem que continuar. E nos Sete Gatinhos? O pai de Silene morre e o Bibelot que é o pai da criança morre também. O Nelson mata sistematicamente os pais. Ele realiza o Édipo na sua obra. Na peçaToda Nudez Será Castigada o filho vai embora com o ladrão boliviano. E o ladrão boliviano tem 33 anos e é lindo. Agora interessante que seja homossexual e ai temos um filão maravilhoso na obra do Nelson.

P. - O incesto parece ser outra constante na obra do Nelson não?O que vocês estudaram sobre isso?


Amália-Me parece que o Nelson é ele próprio um demiurgo. Porque ele faz homem com homem, mulher com mulher, pai com filho, filho com mãe. Acredito que há coisas intuitivas de incesto nele, mas é quase como fusões hermafroditas ou homofroditas. Ele coloca várias configurações que o ser humano poderia ter na sua aspiração de absoluto. Eu sendo meio homem, meio mulher como serei?É o Edmundo querendo entrar no útero da Senhorinha, ou as duas meninas que querem ser enterradas juntas no Álbum de Família. Elas se propondo amar até a morte. A psicanálise diz que isso é patologia, mas a gente sabe que não é. Sob este prisma pode-se abolir toda a visão superficial que em geral se tem sobre a obra do Nelson Rodrigues.

P. - Talvez por isso ele tenha sido tão odiado não?Por ter sido tão cru, tão violento?


Amália - Acredito inclusive que o ódio que as pessoas tinham pelo Nelson se deva ao fato de ele ter tocado na ferida. Porque afinal vendo deste prisma não se pode falar de moralismo, nem de pornografia na sua obra. É por isso que se fala em arquétipos. E outra chave para se entender o Nelson Rodrigues é o fato de ele ser um cristão, dele acreditar na ressurreição, na vida eterna. Enfim, o Nelson Rodrigues dá ao homem a prerrogativa de ser como ele é: torto. O auto-regular-se é para ele uma sabedoria que o homem ainda não tem. Não obstante ele dá aos seus personagens o privilégio de fazer isso. Através do caos, as mudanças se processam.

P. - As peças evidentemente não estão integradas. Que critérios vocês usaram para os cortes?


Amália - Depois do vasto estudo que nós fizemos, escolhidas as peças elas foram montadas integralmente de inicio. Foram marcadas, estudadas, decoradas, representadas, vividas integralmente. Avaliou-se um problema de tédio dramático ou um momento sem grande importância, uma informação redundante, ou seja, houve saltos no sentido de espicaçar o espectador. Fazê-lo ficar atento porque não se repete duas vezes a mesma coisa. Enfim, ficou a linguagem dele, mas enxuta.

P. - E a música. Como se chegou a esta trilha sonora?
Amália - A música surgiu. O Antunes logo no começo já sabia que a peça teria tango, e valsa. Mas houve também uma musica composta especialmente que é o Panis Angelicus que entra na cena da primeira comunhão da menina. A musica numa série de momentos é um comentário kitch. O kitch desperta emoções antigas. Ele mexe com o inconsciente coletivo, ele mexe com o arquétipo.

P. - Sei que o Antunes testou cerca de dois mil atores. Afinal como se chegou a este grupo? Que critérios determinaram a seleção?


Amália-A seleção foi feita em função do trabalho da pessoa no palco e também da adaptação ao trabalho de cooperativa. Porque você vê este tipo de trabalho exige uma convivência mutua que se prolonga e onde não se pode ter muitas veleidades, muita brejeirice para não interferir nos objetivos que a gente quer atingir.Enfim, o objetivo primordial é o trabalho.Passou muita gente talentosa por aqui e não ficou.

P. - Sei que vocês trabalharam arduamente no período da montagem. Como era o processo de trabalho de vocês, a rotina diária, tudo isso?
Amália - Todos os dias quando o Antunes chegava não se partia direto para o trabalho. Formava-se um grupo e se discutiam coisas. E ele sempre tinha uma coisa para propor: coisas novas ou coisas vistas nos dias anteriores. Era sempre um trabalho de resposta, de motivação em função do que havia sido feito. Caminhávamos por etapas. Antunes nunca jogou tudo de uma vez. E acima de tudo ele fez um trabalho de artesão com os atores. Nunca foi autômato, mecânico. Tudo era elaborado, pensado. É a postura do jogo de Diderot, postura de você estar atuando com o controle do personagem. Foi só na ultima semana que o Antunes propôs que os atores trabalhassem com a emoção. E nos últimos dias, mais exatamente ele pediu que se jogasse a totalidade das emoções. Em geral de manhã tínhamos aula de yoga, tai chi, de fonoaudiologia, de preparo de voz, de canto, de dança. Mas as aulas de canto e dança, por exemplo, não eram em função do que se devia cantar no palco. Era um preparo muito grande mesmo. Porque você só viu tango e valsa, mas todos os atores estudaram instrumentos: os homens trombone e violino e as mulheres flauta, porque na peça A Falecida que não entrou,tinha um Exército da Salvação que tocava e cantava. Então, de manhã tínhamos aulas com diversos professores e a tarde era do Antunes. Ele foi o grande professor.

José Ferro-Tudo o que fizemos foi uma tentativa de chegar ao universo da coisa para se criar de dentro, com conhecimento. Em geral a gente trabalhou assim de uma maneira dinâmica. Porque neste processo que é de aprendizado, que é um processo de troca de experiência não tem muita coisa demarcada. Acho que é este o elo que liga a gente, “esta força jovem” que existe e que é uma espécie de idealismo para se conseguir concretizar um trabalho que saia fora dos moldes da convenção teatral.

P.- Esta seria então a grande diferença entre os trabalhos que se fazem convencionalmente em teatro quando se montam peças em dois meses? Aqui vocês têm um trabalho de formação, de embasamento, uma escola de teatro?


José Ferro - Com a única diferença: numa escola convencional de teatro em geral se procura encontrar determinados caracteres de algum exercício que seja mais ou menos modelo para a coisa. Então por exemplo, se a pessoa vai dar uma aula de voz ela ensina uma entonação. E com a gente a coisa é diferente. As aulas não são resultado de um modelo pré-estabelecido. Eles são resultado de uma noção geral que as pessoas têm e este modelo é procurado por cada um, sob orientação de pessoas mais experientes. Então nesta medida é possível que cada um descubra como organicizar todo este conhecimento,como tornar este conhecimento seu de tal forma que possa fluir.Elimina-se o mecanicismo na medida em que tudo aquilo passa a fazer parte de cada um.

Amália- Este tipo de trabalho buscou de cada um a sua substância. Foi realmente produtivo no sentido de não ter havido nunca um padrão geral para as coisas. Embora houvesse métodos, ideias, filosofias, estudos de autores e toda a experiência de vida do Antunes como diretor, como criador que ele é, na verdade houve isso: todo mundo trouxe aquilo que tinha dentro de si. O trabalho foi orgânico, não foi mecânico. Havia uma proposta geral, mas cada um trazia substância, sua colaboração. Inclusive um das características do trabalho foi justamente o habito das reuniões diárias. Cada um tinha que falar. A colaboração de cada um era levada em conta e era importante. Através deste método de trabalho as pessoas foram aprendendo a desenvolver um sentido critico. Cada cena era analisada e criticada pelo grupo. Formou-se então um consenso de analise, de reflexão estética, de avaliação de um trabalho de teatro, tanto na teoria, como na prática. Porque é preciso que se diga, tudo era realizado no palco. O palco era subsidio para o teórico e vice-versa. Então o que houve foi um trabalho nuclear, sempre entrosado e integrado. E outra diferença da escola padrão: todo este trabalho foi canalizado numa montagem. Então na medida em que ele se canalizou numa montagem. Então na medida em que ele se canalizou numa montagem ele teve muita abertura e muita especificidade.

José Ferro-Além de ter sido um trabalho objetivado numa montagem teve uma preocupação fundamental que foi a formação do artista. Apesar de ter sido canalizado nesta montagem, permitiu que as pessoas ficassem aptas para realizar outros trabalhos que o grupo quisesse criar. Ou seja, foi um trabalho nos dois níveis.

Amália-O Antunes procurou atores basicamente. Mas na medida em que o trabalho é cooperativado, as pessoas atuam também em outras áreas de acordo com seus talentos. Nunca um ator é só ator. O José Ferro, por exemplo, é jornalista. Ele escreveu grande parte das apostilas que eram usadas internamente. Mas algumas foram publicadas por serem bem representativas do trabalho quer era realizado de filosofia, etc. A Valderez Cardoso Gomes que assina grande parte dos estudos que foram feitos sobre este espetáculo Nelson Rodrigues O Eterno Retorno é outra moça que acompanhou o trabalho desde o inicio e coordenou as pesquisas, estudou Jung, Mircea, e colaborou muito, fez seminários. Embora as leituras fossem feitas por todos, a centralização, a coordenação e redação das apostilas ficou por conta da Valderez que é professora de Línguas. E assim ocorreu com outras pessoas. Alguns revelaram maior talento na sonoplastia além de serem atores. E acabaram ficando nesta ou naquela área. Inclusive porque quando o elenco viajar não vai se poder levar pessoas extras. Os atores fazem tudo. Até a contra regragem é feita pelos atores. No momento existe um diretor de palco, um diretor de cena. Possivelmente ele viaja porque Macunaíma tem uma contra regragem enorme e não dá realmente tempo para o ator fazer todo o trabalho dentro e fora. Ele não tem capacidade de ubiquidade, quer dizer não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Então existe sim uma coisa econômica: alem do trabalho no palco todos fazem um trabalho fora do palco. A cooperativa é administrada por elementos do elenco, tem uma diretoria que se reúne que toma decisões, talvez para uma coisa mais técnica de contabilidade se chame uma pessoa de fora, mas todo o trabalho de produção, de divulgação é tudo feito aqui mesmo, por nós.

P. - E você como chegou ao grupo? Sei que foi presidente da Comissão Estadual de Teatro em varias gestões. Conte.


Amália - Bem, eu fui presidente da Comissão Estadual de Teatro na administração do Max Feffer, segunda metade e um período da administração Cunha Bueno. Mas eu não só gosto de cargos administrativos, sabe, eu preciso trabalhar de outro jeito também. Eu fiz teatro na ECA e defendi uma tese de mestrado sobre o Beckett: foi uma psicanálise de uma obra do Beckett. Aqui no grupo foi o seguinte: eu me ofereci para ser assistente de direção do Antunes, cargo afinal que virou adjunto de direção, porque alem de assistência eu participava de todas as coisas. Li tudo o que o pessoal leu, ainda que um pouco atrasada porque só cheguei em agosto, escrevi apostilas.Só não subi no palco.De resto fiz de tudo um pouco.

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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