Lygia Fagundes Telles Crio um livro como uma colcha de retalhos

Ana Lúcia Vasconcelos


     

            Ao longo da minha carreira fiz duas entrevistas com a Lygia Fagundes Telles (19 de abril de 1923 3 de abril de 2022), escritora das mais conceituadas no cenário da literatura brasileira e mundial, com uma obra vasta que inclui contos, novelas e romances, algumas delas vertidas para o cinema, teatro e televisão e sempre bem sucedidas como seus livros que atingem muitas edições. Ao que ao longo de sua bem sucedida carreira arrebatou prêmios importantes incluindo em 2005, o cobiçadíssimo Camões: o maisimportante prêmio de literatura em lingua portuguesa, tendo algumas obras traduzidas em oito idiomas sendo, portanto, um sucesso aqui e além mar. A primeira entrevista que fiz com ela foi na casa da escritora Hilda Hilst, a Casa do Sol em Campinas, para o Jornal de Hoje, onde eu era editora de lazer e cultura, atualmente extinto, publicada em março de 1980. A segunda fiz em março de 1986para o jornal Leia Livros que virou uma revista e hoje não existe mais,que ela considerou a melhor entrevista de sua vida. E para minha surpresa e confusão disse isso em publico na Bienal Nestlé de 1986, quando justamente o dito jornal com esta matéria acabara de sair e estava sendo distribuído ao publico gratuitamente. Quando eu fui cumprimentála na fila de autógrafos ela parou tudo e disse: “Esta mulher fez a melhor entrevista da minha vida!” Fiquei inibida, tentei me esconder, mas não tinha onde e falei: “Não, Lygia é uma entrevista normal”. Ela: “Normal não, é excepcional!”

Agradeci e na primeira deixa saí à francesa. Mas depois no saguão, no intervalo das palestras, nos encontramos novamente e ela estava acompanhada da critica e ensaísta Bella Josép (professora emérita da UFRJ e especialista em literatura hispano americana especialmente Borges) que disse: “Eu também quero uma entrevista com ela.” Disse que sim que poderia ser, mas aí eu teria que ir para o Rio. Até hoje não fiz, mas ali naqueles momentos sofridos eu reajo mal a elogios descobri minha vocação para entrevistadora, ainda que a esta altura já tivesse uma vaga ideia disso, já que minhas entrevistas eram muito bem recebidas pelos próprios entrevistados e editores. Bom, com a Bella Josef ainda não fiz, mas naquela Bienal fiz uma matéria sobre prêmios literários onde entrevistei muitos escritores e críticos e que ficou inédita até hoje. Penso que vale a pena ser publicada por ser documento importante sobre o tema e ainda: numa era pré internet onde a comunicação entre os autores de diferentes partes do Brasil e o intercambio de suas obras era muito precário, os prêmios eram uma forma dos escritores obterem maior visibilidade. Hoje o panorama mudou, mas vale ver como era: as novas gerações nem imaginam o que era este continente chamado Brasil antes da internet.Relendo agora para republicálas vejo o quanto elas são gostosas de ler e principalmente dão excelentes luzes sobre sua vida e obra, suas raízes, suas ideias, seus anseios, seu processo criativo, sua visão de mundo. E como sempre faço localizo a entrevista no tempo que foi feita, mas acrescento todos os dados novos sobre o autor até esta data: seus novos livros, prêmios, enfim as novidades que ocorreram desde a data da matéria até hoje. Infelizmente o dado novo dessa republicação, sem contar todas as suas obras publicadas desde então é que a Lygia faleceu nesse ano de 2022, no mesmo mês em que nasceu: abril! ALV 

       Numa tarde chuvosa, cinzenta de março de 1986 “as águas de março fechando o verão” vou ao encontro de Lygia Fagundes Telles na União Brasileira de Escritores no centro antigo de São Paulo, próxima à Praça da República para esta entrevista. Ela chega afetiva e elegante como sempre e me mostra textos, artigos publicados em jornais brasileiros e estrangeiros sobre sua obra. “São essas coisas que me tocam sabe, são coisas que estão saindo lá no inferno velho ou novo, se quiser, são pessoas que jamais vi, jamais verei, são críticas como esta do Albert von Brunn que saiu numa revista alemã que comenta a edição dos meus dois livros: Antes do Baile Verde e o romance As Meninas que saiu com o nome A Estrutura da Bolha de Sabão.

       Impressionado com a ficção de Lygia von Brunn escreve: “Ao lado do mexicano Carlos Fuentes (Aura, Chac Mool entre outros) e do argentino Manuel Mujica Lainez (Los ídolos, El Brazelete, El Retrato) Lygia Fagundes Telles é a melhor conhecedora dos temores, pesadelos e saudades da aristocracia crioula da América Latinauma camada alta cujo poder se fundava na aliança entre a cruz e a espada e agora devido à invasão tecnocrática vinda do Norte e aos abalos sociais dos subcontinentes, precisa temer por seus privilégios. A autora sabe jogar magistralmente com a herança de um catolicismo colonial consistindo em totem e tabu: assim é arrastado para lá e para cá entre a sensual amante Bruna e a peculiar burguesa que é Elisabeth ou o futuro suicida em As Coisas, sonha com um quadro; ou o enterro do amor que ostenta todos os traços da maquina de teatro barroco de um Calderón de La Barca.” O autor segue falando do livro de Lygia Fagundes Telles traduzido por Alfred Opitz e já com duas edições esgotadas nas duas Alemanhas (a esta altura ainda havia o Muro de Berlim) Ocidental e Oriental. Enfim parece ser este o destino da ficção de Lygia: seus livros esgotam sempre.

       Antes de começarmos a entrevista ela me dá um exemplar da 9ª. Edição de Antes do Baile Verde (Editora Nova Fronteira, 1970, 1986) com prefácio de Fábio Lucas que reúne seus contos publicados entre 1949 e 1969 (à exceção dos inéditos escritos em 1969) extraídos de quatro livros cujas edições estavam justamente esgotadas: O Cacto Vermelho (1949) Histórias do Desencontro (1958) O Jardim Selvagem (1965) e 18 Melhores Contos do Brasil, coletânea de trabalhos premiados no I Concurso Nacional de Contos realizado no Paraná em 1969.

Mistério e Magia

 

          Analisando este livro Fabio Lucas começa seu texto intitulado Mistério e Magia justamente falando o quanto o progresso da técnica não trouxe harmonia racional para a humanidade e muito menos conseguiu conciliála com a idéia da morte: ao contrário o conflito interior justamente é estimulado pelo próprio absurdo da vida e da impotência dos homens em modificarem os dados do jogo vital. E justamente porque a ciência não consegue desvendar os mistérios do cosmos, dilatase, segundo ele, a capacidade poética de aproximarse do mistério e de exprimir essa experiência em símbolos de força multivalente. E cita então exemplos das literaturas consideradas amadurecidas, admitirem e aplaudirem as obras fantásticas, sendo em sua opinião, Jorge Luis Borges um exemplo que pode ser considerado influente propagador da narrativa fantástica.

     “A fadiga de algumas formas realistas tem conduzido determinados escritores á região do fantástico e do maravilhoso. Alguns vão ter a este terreno por natural tendência do espírito. Cremos ser o caso de Lygia Fagundes Telles que nos apresenta agora em Antes do Baile Verde uma seleta de contos representativa de vinte anos de dedicação ao gênero. São dezoito trabalhos dispostos segundo uma contagem regressiva: partimos dos mais recentes e concluímos com os mais recuados no tempo. Sempre aquele trânsito entre o real e o irreal, entre a experiência e o sonho, entre a realidade e a fantasia.”

     Fabio Lucas acentua que a ficcionista explora obstinadamente o desencontro das personagens, expondo a face dramática das fraquezas humanas, vedando os caminhos da redenção. “E quando a intensidade da situação esgota a capacidade de resistência, o mundo transfundese em mistério, em produto de magia, em seara de encantamento. Vejase, por exemplo, o conto A caçada, um verdadeiro apelo para a imaginação, um mergulho no inconsciente, num passado que tanto pode alimentarse da biografia como da história da humanidade.

       Para Fabio Lucas a criação de mitos em Lygia Fagundes Telles corresponde mais do que no comum dos ficcionistas brasileiros, a uma necessidade vital, uma saída para sua afirmação como escritora. “Por mais que a uma investigação semiológica possamos encontrar nos seus contos a marca de certo desencanto com os seres humanos, de modo geral haveremos sempre de perquirir no fundo certa nostalgia de um mundo edênico, de antes da queda, ou melhor, do desencadear dos processos civilizadores. Dai o clima permanente de evocações que envolve os seus melhores trabalhos.”

     Assim Fabio Lucas diz que se ele fosse enumerar a matéria aparente dos contos de Lygia encontraria (encontraríamos) inúmeros desentendimentos: baixeza, casais em insuportável conflito, as ilusões e os prazeres chocandose com os compromissos como em Antes do Baile Verde, as alucinações beatificas, a presença da morte no Natal na Barca, o desajuste em Eu era mudo e só, a traição em O menino, a fantasia e o temor pairando sobre o vertiginoso conflito entre a liberdade e a interdição. “Tudo narrado numa prosa fluente, de muitos recursos aonde os diálogos com suas idas e vindas, suas elipses e suspensões atingem o limiar da oralidade e do coloquial. As situações são criadas com mão segura, que evita o patético e o melodramático. Mas, além das circunstâncias literárias vai atingir ainda um vasto território de magia, pois sua faculdade mitopéica se apoia numa imaginação cintilante.”

Imaginação cintilante

 

         Por falar em “imaginação cintilante”, esta começou a se revelar muito cedo em Lygia Fagundes Telles que publicou seu primeiro livro de contos Porão e Sobrado em 1938 e depois Praia Viva em 1944 e não parou mais havia descoberto sua verdadeira vocação. Na sequencia vieram Ciranda de Pedra (romance) em 1954, Histórias do Desencontro em (1958) (contos) Verão no Aquário (romance) em 1963, Histórias Escolhidas (contos) em 1964, Gaby (novela) em 1964, O Jardim Selvagem (contos) em 1965, Trilogia da Confissão em 18 Melhores Contos do Brasil em 1968, Antes do Baile Verde (contos) em 1970, Seleta em 1971, As Meninas (romance) em 1973, Seminário de Ratos (contos) em 1977, Filhos Pródigos (contos) em 1978, A Disciplina do Amor (fragmentos) em 1980, Mistérios (contos) em 1980, Os Melhores Contos de Lygia Fagundes Telles em 1984.  Hoje sua obra vasta reúne: dezenove livros de contos; quatro romances; sete participações em antologias; dez em coletâneas; duas crônicas na imprensa; duas adaptações para o cinema; uma para o teatro; três para a televisão e dez prêmios sendo que seus livros estão traduzidos para oito idiomas: alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, polonês, sueco e tcheco. 

     Além da sua atividade como escritora Lygia Fagundes Telles é uma batalhadora da literatura brasileira que divulga viajando sempre muito não apenas pelo Brasil, mas pelo mundo. Eleita em 24 de outubro de 1985 para Academia Brasileira de Letras para suceder a Pedro Calmon, tomou posse em 12 de maio de 1987, ocupando a cadeira número 16, justamente um ano depois da publicação desta entrevista. Foi ainda presidente da Cinemateca Brasileira em São Paulo sucedendo seu marido, fundador da entidade: Paulo Emilio Salles Gomes durante quatro anos.

       E por falar nisso Lygia lançou dia 9 de setembro de 2008 o livro Capitu, roteiro para cinema escrito em 1968 juntamente com crítico Paulo Emílio (19161977) e que é o terceiro volume da Coleção Paulo Emílio Sales Gomes, iniciada pela Editora Cosac Naify em 2007 onde reconta um dos maiores clássicos da literatura brasileira: Dom Casmurro, de Machado de Assis. A edição inclui posfácio da autora que num tom sempre apaixonado, rememora as circunstâncias da época em que foi redigida sua primeira e única parceria com Paulo Emílio, sob a ditadura militar. O apêndice, escrito especialmente para a edição por Augusto Massi, reúne um conjunto de anotações de Paulo Emílio para dois cursos de pósgraduação na USP, ambos focados num dos grandes temas do romance: os olhos.

 

Para estudar a obra

 

         Quem quiser se aprofundar na sua obra aconselhase a leitura dos seus livros naturalmente e uma pesquisa para começar na Seleta que reúne textos de diversas fases da escritora e um estudo crítico de Nelly Novaes Coelho, entre outros estudos e teses sobre sua obra que evidente valem ser estudadas. “A obra de ficção de Lygia Fagundes Telles incluise na linhagem das que fixam a angústia contemporânea, o desencontro dos seres” diz Nelly Novaes Coelho. “Povoado de seres aparentemente normais, comuns, mas no fundo desajustados, frustrados ou fracassados, seu denso mundo de ficção desvenda e oculta a angustia individual provocada pela barreira que se levanta entre o eu e a aventura coletiva, num mundo absurdo e caótico , sem causa nem finalidade.Manejando com mão de mestre a arte do suspense, Lygia criou um estilo narrativo ou melhor, criou um mundo de ficção em que  a atmosfera que emana joga um papel decisivo.É a atmosfera que emana dos seres ou objetos que os submergem, o elemento chave que domina o leitor e mantém em suspense até o final do relato.

         Há ainda, entre outros, um estudo da professora Josefina Delgado que escreveu sobre sua obra e mais três escritoras brasileiras: Clarice Lispector, Sonia Coutinho e Nélida Piñon: Literatura Feminina ou Mulheres que escrevem. “Estas quatro escritoras brasileiras que vou comentar optaram por serem mulheres que escrevem. Fazem literatura feminina, demonstram que no mundo feminino sua ótica não é menos interessante ou carente de conflitos, de autêntica projeção como se poderia supor. Sua posição frente à literatura ainda que esteja predeterminada por sua condição feminina não está, no entanto, limitada por ela.” Josefina acredita que a literatura pode,” apesar de ser algo marginalizado, colocarse acima do sectarismo, dos preconceitos e propor finalmente uma nova visão em que homem e mulher mudem, para serem mais livres e mais verdadeiros.”   

A entrevista 

P Sei que você está preparando um novo livro. Será que poderia adiantar alguma coisa em primeiríssima mão?

Lygia Fagundes Telles Olha Ana, quando eu escrevo, quando estou apaixonada por um livro, prefiro não falar nada. É quando você está apaixonada por um homem, eu fico emocionada com o meu amor. Eu falo neste amor, seja um homem, seja um livro depois que passa. (Risadas) Quando eu estava apaixonada, eu me apaixonei tão poucas vezes, mas enfim, as vezes que eu me apaixonei, paixão humana eu não conseguia falar, nem siquer com o objeto amado. (Mais risadas).

P Mas ele sabia pelo menos?

Lygia Sabia só que era uma coisa mais de silencio... A linguagem do silencio é mais expressiva, mais profunda. Então Ana Lúcia assim se passa com a criação literária. Eu não consigo falar sobre este romance que estou terminando. 

P Mas você diria que este romance tem alguma novidade em relação aos seus livros anteriores? 

Lygia Ah sim exatamente. Meus romances anteriores: Ciranda de Pedra, Verão no Aquário e As Meninas são romances que tratam de personagens jovens. E este que estou escrevendo agora trata de uma mulher em plena maturidade, alta maturidade como ela diz. Têm jovens também, mas a personagem principal é uma mulher madura ela está se aproximando dos setenta. Ela chama de maturidade, mas a amiga diz: não, é velhice. Mas ela mesma não diz, ela escamoteia. 

PE no mais...

Lygia No mais tem também a linguagem. Neste romance eu crio uma forma diferente. Eu adaptei uma linguagem de acordo com a trama e as personagens.

P. Daí então o segredo que você quer guardar? 

Lygia Sim e também porque estou enredada com as personagens, com a trama, enfim estou muito enrolada em mim mesma.

P Lygia gostaria que você falasse do seu processo criativo. Como é que surge a idéia do livro, do conto, do romance para você, desde o embrião até a coisa acabada?

Lygia É muito complicado, eu não estou fazendo mistério excessivo não, mas é muito misterioso. Comigo, não sei se com outros escritores...

P. Parece que a Clarice Lispector escrevia em papéis pequenos e depois montava o quebracabeça. Você como faz?

Lygia É eu também tenho muito este processo. Escrevo em páginas, tomo notas. Às vezes estou num taxi e minha personagem diz uma coisa que eu acho que deve ser gravada e eu tiro o caderninho e tomo nota. É uma espécie de colcha de retalhos, onde vou juntando mas por um mistério que eu não explico. As partes vão se buscando, estas personagens, essas frases, essas idéias vem como que buscando e se montam, olha é tão estranho. São as coincidências na criação literária . Eu dou muito valor ao grão de acaso , ao grão da loucura e ao grão da coincidência.As peças coincidentes se buscam como na nossa própria vida, umas buscam os outros. Eu sou amiga  de pessoas que eu amo e que vou amar até a morte porque eu busquei essas pessoas e elas me buscaram. 

P.São as afinidades...

Lygia São as afinidades, são as coincidências. São pessoas que gostam de mim, como eu gosto delas. Eu as descobri e elas me descobriram. Assim também na trama de um livro, de um texto literário. 

PVoce diria que vem primeiro: a idéia ou a personagem? 

Lygia Em geral as personagens vêm em primeiro lugar. Elas não têm vida propria ainda, não tem caráter, fisionomia própria, mas ela já vem se introduzindo, se instalando e umas puxam as outras. Aí vem as coincidências, com o grão de acaso de loucura. Fernando Pessoa tem um verso que eu gosto muito: “Não procures nada que tudo é oculto.” Tudo é oculto.

P. Você escreve direto à máquina? (naquele tempo não havia computadores) 

Lygia Não eu escrevo muitas vezes em blocos, em folhas avulsas, à caneta, uso canetas de várias cores. Às vezes eu ponho uma tinta vermelha para uma personagem. É uma forma de eu visualizar a papelada dentro das pastas. (Risadas)

P.Quer dizer, é uma medida prática. E você corrige muito?

Lygia Demais, demais. Eu gostaria de me corrigir como eu corrijo meus textos. Não consigo me corrigir, já estou montada, armada. Eu gostaria de ser muito melhor, muito mais caridosa mais generosa. Gostaria de ser muitas coisas mais. Mas já estou estruturada, inacessível. 

P.Será?

Lygia Gostei deste será, isso é muito bonito. Este será me deu esperança de repente. Eu sei que posso mudar. É isso mesmo. Só os idiotas não mudam. Somos mutantes, para o bem ou para o mal. 

P.Sei que você gosta de andar muito, inclusive a Hilda (Hilst) já falou disso. Ela te acha elétrica, super dinâmica e a admiração é maior porque ela se julga exatamente o oposto disso. 

Lygia Olha, eu até tenho uma preocupação com relação a isso. Eu estive lendo que várias pessoas que enlouqueceram (risadas) incluindo a mulher do Scott Fitzgerald...

P. A Zelda...

Lygia A Zelda Fitzgerald andava, fazia um bem enorme para ela, até que ela começou a andar dia e noite. (Risadas) 

P. Aí começou a ficar grave.

Lygia Mas eu ando muito...

P. E por onde você gosta de andar em São Paulo? 

Lygia Eu ando por aí pelo Jardim América onde tem poucas pessoas na rua, as casas é como se não tivessem janelas, você não vê ninguém, jardins fechados, você só vê cachorro, gente você não vê. E como eu gosto de bicho eu vejo cachorro a beça, ando a beça, e volto para minha casa renovada como a Bíblia manda. Estou nascendo outra vez. Porque eu moro ali perto, eu moro no último quarteirão da Consolação entre a Oscar Freire e a Estados Unidos. Então eu vou por ali tem um clube que eu freqüento que é o Harmonia ali na Rua Canadá.

P. E por falar em São Paulo você gosta da cidade? Imaginaria viver em outro lugar? 

Lygia Agora é tarde. Moro aqui desde que nasci. Nasci e passei minha infância em pequenas cidades do interior de São Paulo: Sertãozinho, Itatinga, Assis, Descalvado. Minha infância, meus anos verdes passei nessas cidades e desde a infância eu guardo lembranças tão importantes. Olha eu tenho viajado tanto, fui parar na China, na Pérsia, eu digo Pérsia na maneira antiga, não Irã, a Pérsia, Sherazade...

P.Que maravilha... 

Lygia Viajei demais, fui para todos os lugares possíveis, mas devo dizer o seguinte: talvez nos momentos meus de insegurança e eu tenho muitos momentos de insegurança, de angústia, nesta hora não me lembro da Pérsia, do caviar persa, da China, dos templos lindos de ouro e jade, não me lembro dessas viagens, eu me lembro do quintal da minha infância. Eu menina, os cachorros as mangueiras, minha força eu digo minhas reservas florestais. E a estas reservas eu recorro muitas vezes.

P.Mas você gosta de São Paulo? 

Lygia Estou gostando porque está ficando uma cidade que estou quase não reconhecendo. A cidade mudou tanto. Adolescente eu ia ao bairro da Liberdade onde meu avô morava na Rua Fagundes. Então é assim as coisas mudam, as coisas estavam arrumadas, estruturadas. Eu confesso que tenho certa nostalgia daquele tempo, da casa do meu avô Benevenuto de Azevedo Fagundes, coronel da Guarda Nacional do Imperador e justamente o nome da rua em sua homenagem.

P. De onde vem Fagundes? Portugal? 

Lygia O meu antepassado Fagundes era um grande descobridor, fidalgo português de Viana do Castelo Portugal sim, o João Álvares Fagundes descobridor e navegador do século XVI. Aliás, estou contanto isso a você porque estou tentando explicar uma coisa que tento explicar para mim mesma que é esta minha vontade de estrada, do mar, do horizonte que talvez venha deste meu antepassado. Ele não sossegava, só sossegou para morrer. Então talvez toda esta minha vontade de viagem, de ir além do que estou vendo, tudo isso talvez esteja ligado a este meu antepassado que descobriu tanta coisa, mas morreu pobre e doente e muito triste, muito desiludido com os homens, mas reconciliado com Deus. 

P. Sei que você viaja muito também para fora do Brasil para participar de palestras, seminários de escritores. Onde esteve nos últimos anos?

Lygia Ano passado estive na Alemanha num seminário em companhia do Ignácio de Loyola Brandão, Márcio de Souza, João Ubaldo Ribeiro, estivemos em sete cidades falando da literatura brasileira. Todos nós temos livros publicados na Alemanha. Em 1984 estive com o Ivan Ângelo, Haroldo de Campos, Loyola nos Estados UnidosNova York, Washington. Estivemos também na Universidade de Georgetown.

P.O que foi isso? Um Congresso de escritores latinoamericanos? 

Lygia Não, havia lá também portugueses. Era um Congresso de Escritores de Expressão Portuguesa. E agora em setembro vou para a Alemanha para a Universidade de Hamburgo para um Seminário com a participação de cinquenta escritores de todo o mundo. Vão ainda o João Ubaldo Ribeiro, João Cabral de Mello Neto, Ivan Ângelo e Ariano Suassuna. E recentemente também estive em Portugal quando a Cremilda Medina foi lançar o livro A Posse da Terra que é da maior importância porque são perfis de mais de cinqüenta escritores brasileiros. E ela fez o mesmo com escritores portugueses. E agora este ano vai haver outro Congresso de Escritores de Expressão Portuguesa em Portugal que quero muito que a Hilda vá. 

P. E se você tivesse que escolher uma cidade no exterior para morar, qual delas escolheria? Que cidades te encantaram particularmente lá fora?

Lygia Eu tenho paixão por Barcelona, Lisboa ah eu amo Lisboa, pois pois. E fiquei apaixonado na Alemanha por uma cidade chamada Heidelberg....e depois tem Paris... 

P. E quem não fica apaixonado por Paris?

Lygia Ah agora me lembro, veja como citar é perigoso. Eu ia me esquecendo de uma cidade pela qual fiquei apaixonada ardentemente e onde fui correspondida, porque meu livro saiu lá e a edição esgotou: Praga. E quando saiu meu livro eu disse: agora Kafka vai poder me ler...

P.Onde ele estiver...

Lygia Onde ele estiver. Eu gostei muito também de Xangai, ambiciosa, a corrompida Xangai. Quando fui para a China logo depois da Revolução de Mao Tse Tung e então Pequim era um quartel, mas Xangai com seu charme eu adorei. E gostei muito de uma cidade da Pérsia onde estive com Paulo Emilio (Salles Gomes com quem foi casada como todos sabem) aliás, eu estive com ele em quase todos esses lugares, uma pequena cidade pela qual me apaixonei muito e onde está a tumba de Ciro e que se chama Pazárgada.

P.Quer dizer que Pasárgada existe?

Lygia Existe e eu descobri viajando porque é só pisando o chão que você descobre as cidades. Mapa não adianta nada. Então eu estive em Pazárgada que se diz pesado, arrastando o erre. E comecei a chorar porque eu disse: a Pasárgada do Bandeira existe.

P. Você chegou a conviver com o Manoel Bandeira?

Lygia Sim foi um grande e querido amigo e veja só: nós nascemos no mesmo dia 19 de abril. Agora (em relação àquela data, 1986) em 19 de abril é o centenário de Bandeira. 

P. Você o conheceu quando?

Lygia Ah em plena juventude desvairada, eu estava na Faculdade de Direito... 

P. Lindíssima... 

Lygia Eu era bonitinha com aquela boina. Meu primeiro chá com Bandeira foi naquela confeitaria Colombo e outro naquela outra que fica na Cinelândia muito elegante. E tomamos chá com waffles e geléia de abricot e ele muito galante me fez uns versinhos: “Salve o dia 19/em que nascemos os dois? Eu no século passado/Lygia um século depois.”

P.Agora mudando completamente de assunto: o que você achou do pacote econômico do governo? Do tal choque heterodoxo? 

Lygia Eu estou ainda em estado de profunda perplexidade, estou obnubilada (risos). Estou deixando assentar a poeira fora e dentro de mim mesma. Agora que estou com muita esperança, porque sou visceralmente otimista. Às vezes eu caio em profunda depressão, mas depois me levanto e ressurjo das cinzas. Eu quero acreditar. Eu sou uma jogadora, eu jogo com as palavras, eu arrisco. E agora estou arriscando minha esperança nesta revolução.

P. Você acredita que seremos mais felizes com o Cruzado e companhia? 

Lygia Podemos ser mais felizes. Eu vi uma coisa extraordinária. Eu vi o meu povo que eu amo e que todos dizem que era apático que era morno, eu vi meu povo vibrando. Só vi este povo vibrar assim na dor, quando morreu o Tancredo Neves e nas Diretas Já. 

P. Há uma coisa sobre a qual todos que gostam de ler têm curiosidade incrível. É o dia a dia do escritor. Como é o teu? Você se levanta a que horas. Escreve pela manhã, à tarde? Conte com detalhes.

Lygia Eu há pouco tempo resolvi fazer o que o Rubem Braga faz: ele se levanta de madrugada para escrever. Eu comecei a levantar de madrugada e estou deslumbrada. Isso porque o cotidiano é uma coisa medonha: o imposto de renda, a empregada que fica doente, o gato, eu amo dois gatos que estão comigo há trezentos anos. Então é o gato que fica doente, a torneira, a pia, aquelas coisas que te consomem. O cotidiano te arranca completamente daquele estado contemplativo. Eu sou uma contemplativa, eu queria ir pro convento. Aliás, hoje os conventos estão muito agitados (risos) já não dá mais. Mas nos tempos dos conventos da Idade Média quando eles eram tranqüilos. Mas sou obrigada a sair da minha contemplação para poder dar conta deste cotidiano. Então agora descobri na madrugada eu produzo muito mais. Baixinho eu ponho meu toca discos, meu Bach, meu Beethoven, Mozart, eu tenho paixão por Mozart, os noturnos de Chopin, então baixinho eu fico ouvindo aquela musica, só eu acordada, só eu no mundo, eu tenho vontade de chorar. Mas também tem que se deitar cedo. Não me façam propostas desonestas para horas tardias, acabou a boemia. Nove horas estou indo para a cama.

P.E você acorda que horas?

Lygia Cinco e meia. Escrevo até as oito que é quando a empregada levanta e faz o café. Acendo meu cigarro e tal e não mexo mais em nada. As oito tomo meu café, vou andar, fazer minha ginástica que faço todos os dias. E aí começa tudo de novo. Estou pensando em montar um estúdio, sem telefone, sem ninguém para poder trabalhar mais tranqüila, para escrever que é a coisa que eu sei fazer.

P. Lygia o que você está lendo atualmente? Aliás, que tipo de literatura você prefere? Ficção, ensaios? 

Lygia Eu quando escrevo ficção não gosto de ler ficção. Gosto de ler ensaios. Estou lendo um ensaio de Koestler e estou relendo o BeckerA Negação da Morte. Gosto muito de biografias, de história. Há um livro da minha juventude La Cité Antique do Fustel de Coulanges, que gosto muito e sempre releio para ver os costumes da antiguidade, o sentimento do tempo transcorrido, o sentimento das gerações que passaram e que virão. De repente eu me sinto como um grão de areia, sem a mínima importância e isso é lindo. O que é importante o que pode ser importante é a minha palavra. Então este sentimento da transitoriedade, de quanto somos provisórios, este sentimento do tempo vem muito agudo quando eu leio história: os crimes, os amores, as políticas, as corrupções, enfim a condição humana. Ao mesmo tempo eu tenho o sentimento de que o homem é igual sempre e que ele é diferente sempre e que ele vai passar. E que outros virão. Este oito infinito é a expressão da nossa finitude e da nossa eternidade. Até que venha alguém e aperte o botão. Mas eu creio, eu também leio a Bíblia, eu sou uma espiritualista, eu creio que o homem vai pairar sobre todas as coisas, ele vai sobreviver 

 

OBRAS DA AUTORA

Individuais

Contos:

Porão e Sobrado, 1938

Romances:

Ciranda de pedra, 1954
Verão no aquário, 1963
As meninas, 1973
As horas nuas, 1989

Antologias:

Seleta, 1971 (organização, estudos e notas de Nelly Novaes Coelho)

Lygia Fagundes Telles, 1980 (organização de Leonardo Monteiro)

Os melhores contos de Lygia F. Telles, 1984 (seleção de Eduardo Portella)

Venha ver o pôrdosol, 1988 (seleção dos editores Ática)

A confissão de Leontina e fragmentos, 1996 (seleção de Maura Sardinha)

Oito contos de amor, 1997 (seleção de Pedro Paulo de Sena Madureira)

Pomba enamorada, 1999 (seleção de Léa Masima).

Participações em coletâneas:

Gaby, 1964 (novela in Os sete pecados capitais Civilização Brasileira)

Trilogia da confissão, 1968 (Verde lagarto amarelo, Apenas um saxofone e Helga in Os 18 melhores contos do Brasil Bloch Editores)

Missa do galo, 1977 (in Missa do galo: variações sobre o mesmo tema Summus)

O muro, 1978 (in Lições de casa exercícios de imaginação Cultura)

As formigas, 1978 (in O conto da mulher brasileira Vertente)

Pomba enamorada, 1979 (in O papel do amor Cultura)

Negra jogada amarela, 1979 (conto infantojuvenil in Criança brinca, não brinca? Cultura)

As cerejas, 1993 (in As cerejas Atual)

A caçada, 1994 (in Contos brasileiros contemporâneos Moderna)

A estrutura da bolha de sabão e As cerejas, s.d. (in O conto brasileiro contemporâneo Cultrix)

Crônicas publicadas na imprensa:

Não vou ceder. Até quando? O Estado de São Paulo 060192; Pindura com um anjo. Jornal da Tarde 110896

Traduções:

Para o alemão:

Filhos pródigos, 1983
As horas nuas, 1994
Missa do galo, 1994

Para o espanhol:

As meninas, 1973
As horas nuas, 1991

Para o francês:

Filhos pródigos, 1986
Antes do baile verde, 1989
As horas nuas, 1996
W. M., 1991
Invenção e Memória, 2003

Para o inglês:
As meninas, 1982
Seminário dos ratos, 1986
Ciranda de pedra, 1986

Para o italiano:
As pérolas, 1961
As horas nuas, 1993

Para o polonês:
A chave, 1977
Ciranda de pedra, 1990 (traduzido também para o chinês e espanhol).

Para o sueco:

As horas nuas, 1991

Para o tcheco:

Antes do baile verde, s.d. (traduzido também para russo)

Edições em Portugal:

Antes do baile verde, 1971
A disciplina do amor, 1980
A noite escura e mais eu, 1996
As meninas, s.d.

Para o cinema:

Capitu (roteiro); parceria com Paulo Emílio Salles Gomes, 1993 (Siciliano).

As meninas (adaptação), 1996

Para o teatro:

As meninas, 1988 e 1998

Para a televisão:

O jardim selvagem, 1978 (Caso especial TV Globo)
Ciranda de pedra, 1981 (Novela TV Globo)
Era uma vez Valdete, 1993 (Retratos de mulher TV Globo)

PRÊMIOS:

Prêmio do Instituto Nacional do Livro (1958)
Prêmio Guimarães Rosa (1972)
Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras (1973)
Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (1980)
Prêmio Pedro Nava, de Melhor Livro do Ano (1989)
Melhor Livro de Contos, Biblioteca Nacional
Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro
Prêmio APLUB de Literatura
Prêmio Jabuti (Ficção) (2001)
Prêmio Camões (2005)

Para saber mais sobre ela

https://www.youtube.com/watch?v=tgaX90Fo3YU

 

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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