A escrita como representação: é disso que trata O Livro dos Simulacros de Joaquim Brasil Fontes

Ana Lúcia Vasconcelos


      

     Filósofo, professor, pesquisador e tradutor, Joaquim Brasil Fontes é atualmente titular da disciplina Leitura e Produção de Textos na Universidade Estadual de Campinas (SP) e coordenador do GEISH-Grupo de Estudo Interdisciplinar em Sexualidade Humana da Unicamp, onde desenvolve pesquisas sobre erotismo e sexualidade, no horizonte das literaturas clássicas e modernas. Atua ainda nos Grupos: Poesia da Idade Imperial Romana e Diversidade em Educação e na área de Educação, com ênfase em Literatura e Ensino, Literatura Comparada, Literaturas Clássicas- grega, latina e francesa (séculos XVII, XVIII e XIX) particularmente nas questões ligadas à narrativa, poesia e teatro, e ensino de literatura e leitura. Este ano vai dar um curso na pós graduação sobre: “ A mulher no mito e na literatura do Ocidente”.

     Apaixonado pelos autores gregos, latinos e franceses entre eles Lautréamont e Mallarmé,  Joaquim Brasil Fontes tem treze livros publicados: Fragmentos dos fragmentos da lírica de Safo. Florianópolis, Noa Noa, 1990; Eros, tecelão de mitos. São Paulo: Estação Liberdade, 1991, indicado para o prêmio Jabuti na categoria ensaio; * (2a. edição: São Paulo: Iluminuras, 2003); Variações sobre a lírica de Safo. São Paulo: Estação Liberdade, 1992; A Musa adolescente. São Paulo: Iluminuras, 1998; As Obrigatórias metáforas. (Apontamentos sobre literatura e ensino) São Paulo: Iluminuras, 1999; O Livro dos simulacros. Florianópolis: Clavicórdio, 2000; Poética do fragmento. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2000; Safo de Lesbos. Poemas e fragmentos. Trad. de Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2003;  Os Anos de exílio do jovem Mallarmé. São Paulo: Ateliê, 2007.

     É tradutor para o português de Eurípides, Sêneca, Racine e Baudelaire, este ainda inédito; Cantos de Maldoror. Editora Unicamp, 2015. Recebeu o Premio Jabuti por Hipólito e Fedra. Três Tragédias. São Paulo: Iluminuras, 2007. Lançou em abril de 2018 Nigredo- Estudos de morte e dulia pela Cultura e Barbárie, Editora de Florianópolis, indicado para o prêmio Jabuti na categoria romance.

     Ainda em 2018 publicou O Livro dos Simulacros que nasceu de anotações sobre a oralidade e a escrita -  reflexões suas sobre a escrita como representação, e o leitor como imagem especular do autor. Depois de duas edições que estão nas mãos de amigos e alunos devotos de Mallarmé, autor que estudava à altura, sai agora pela Iluminuras em nova edição, linda, ilustrada pelo próprio autor. Nesta entrevista Joaquim Brasil  Fontes conta as peripécias do livro desde o inicio até aqui e comenta cada capitulo,  desvendando seu processo criativo. O Livro dos Simulacros é , para quem gosta de ler, gostar mais e para quem não gosta, começar a gostar: digamos que é uma apologia à arte da escrita e da leitura.

P.- Joaquim você me contou sobre as várias versões que este livro teve: a primeira que foram doze copias encadernadas, a segunda com edição limitada publicada por uma editora de Santa Catarina e a terceira, esta que saiu em 2018 pela Iluminuras. Você gostaria de me contar sobre isso? E ainda: o que elas tem de diferente?

Joaquim. – Em 1998, ano do centenário da morte de Mallarmé, eu estava estudando a sua poética, que, como a de Fernando Pessoa e a de Nerval, estava ligada a uma tradição órfica. Foi nesse momento que produzi doze exemplares artesanais de O Livro dos Simulacros, digitados, ilustrados e encadernados por mim mesmo. Aquarelei os desenhos dos doze volumes, um por um.  Essa edição desapareceu nas mãos de amigos e sei apenas que um dos exemplares está hoje na biblioteca do Pedro Meira Monteiro, em Princeton. Mallarmé foi, sem dúvida, o primeiro impulso.  Dois anos depois, uma ONG de Florianópolis imprimiu para mim 500 exemplares desse livro, em lugar de pecúnia para pagamento de  um curso sobre Mallarmé para devotos do poeta na Ilha de Santa Catarina. Para essa publicação, foi inventada uma editora, a Clavicórdio, que nunca existiu.  Agora, Samuel Leon, dono da Iluminuras, uma editora “de verdade”, lança uma linda edição do livro, inteiramente refeito, com novos desenhos e textos que dialogam constantemente uns com os outros e compõem uma temática que ajuda o leitor a avançar na linguagem: borboletas boas e más (a “Acherontia atropos”, por exemplo, ameaça o “leitor” de Chardin), grilos, pequenos demônios, dedicatórias manuscritas, o deus Thot. Vale dizer que os desenhos não são ilustrações, mas pontos nevrálgicos do livro, onde o discurso se dispersa e ou repercute. Assim, não sei dizer se essa é a primeira ou a terceira edição do livro. 

P.- Porque ele se chama O Livro dos Simulacros? Seria alusão à fala de Fedro  de Platão , que você cita logo de inicio, justamente o trecho em que o rei Thamuz  do Egito, se refere à arte da escrita, inventada, segundo a lenda, pelo deus Thot, que tornaria os homens em simulações de sábios em lugar de sábios , já que teriam acesso ao conhecimento? Ou mais que isso? Conte. 

Joaquim. – Um amigo filósofo me perguntou se esse título tinha algo a ver com um texto de Deleuze sobre “Platão e o simulacro”, publicado em Lógica do Sentido. Respondi que frequentei muito pouco a obra de Deleuze. Aliás, não sei se compreendi a sua lógica. No fundo, a escolha do termo “simulacro” foi provocada (como sempre acontece com os meus títulos) pelo significante, isto é, pela sedução dos sons. Você sabe que simulacro vem do latim simulacrum e significa “imagem, representação”. Representação pela pintura, pela escritura, num espelho. Nosso rosto no espelho é um simulacro. Mas aos poucos fui descobrindo que o significante tinha tudo a ver com o significado, pois na época em que estava rabiscando esse livro, minhas preocupações se voltavam para a escrita como representação, para o leitor visto como imagem especular do autor e para o livro como objeto material e imaterial. Aí, me dei conta de que, em latim, simulacrum pode significar “fantasma” e fiquei ainda mais contente, pois talvez tenhamos aqui um Livro dos Espectros

P.- O Livro dos Simulacros trata da arte da escrita, do livro, do leitor, do corpo do livro, da introdução, da dedicatória, da epígrafe, enfim tudo o que contem o objeto com este nome. Aliás , você inicia com um plano de aula manuscrito , sobre a oralidade e a escrita onde  conjectura , citando Roland Barthes, se a escrita já teria sido inventada antes de ser posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada. Por favor fale sobre isso.

Joaquim. – Ana, você deve ter notado que aquelas páginas manuscritas se apresentam como “anotações para uma aula sobre oralidade e escrita”. Ora, seria impossível desenvolver essa reflexão no espaço de uma aula. Eu precisaria de todo um curso, com umas 15 aulas. Esse manuscrito é, portanto, um simulacro, naquele sentido deleuziano de não ter um modelo do qual ele seria a cópia. Um amigo meu, linguista, me pediu para fazer uma palestra sobre esse manuscrito num dos seus cursos, pois encontrava nele, segundo suas próprias palavras, “boas intuições sobre a relação oralidade-escrita”, que eu “poderia desenvolver no espaço de uma aula na universidade”. Embora me sentindo honradíssimo com ele, não aceitei o convite: qualquer explicação suplementar poderia destruir esse texto, pois ele deixaria de ser, assim, um simples simulacro.

P.- É muito interessante te seguir nessas “anotações para uma aula sobre a oralidade e escrita” onde você começa a falar da pré- escrita com as (posso falar assim?) linguagens pictográfica, ideográfica e a fonética, com os ideogramas, os pictogramas e a escrita fonética para concluir que a escrita é uma estrutura que progressivamente se fonetizou . De  figuras nas pedras, nos pergaminhos, portanto uma escrita que tinha mais a ver com a arte- pintura, escultura, arquitetura, hoje está reduzida, descarnada. Confesso que viajei nessas anotações- vi um mundo ali que, aliás, você desenvolve depois neste texto, nesse Livro dos Simulacros abordando cada parte das anotações . Enfim  aquele plano não é apenas de uma aula  mas um pequeno tratado sobre a oralidade e a escrita, sobre como o homem evoluiu das imagens para a fonética , sobre o ato de escrever, sobre o leitor . Acho que também vi o que teu amigo viu nesses manuscritos.

Joaquim. – É isso mesmo, Ana: esse texto é o simulacro de um tratado sobre oralidade e escrita.

P.- Na sequência você fala da descoberta de 1800 rolos de papiros em 1997 na Villa dei Papiri soterrada em 79 a. C. por uma erupção do Vesúvio. Que tesouro  temos ali não? E você conjectura se de repente não estariam ali também  os nove rolos de papiro contendo os nove livros de poemas atribuídas a Safo de Lesbos. Podemos dizer que você também viaja nas descobertas e alimenta seus sonhos com seus autores prediletos numa viagem sem fim?

Joaquim. – Esse texto sobre a Villa dei Papiri é quase um apólogo, que tematiza minhas obsessões em torno do fragmento e da totalidade escripturais. O que eu conto ali é, digamos “verdade”, e faz alusão ao fato de que quase toda a literatura grega antiga chegou até nós sob a forma de fragmentos, de pedacinhos de papiros cheios de frases às vezes quase ininteligíveis. Assim, o conceito de fragmento se cruza, nesse apólogo, com o de significação, de codificação/decodificação. Tenho rodado muito em torno das teorias do fragmento, mas a dos românticos alemães me fascina, e por isso, quando estava traduzindo Safo, eu pensava nos fragmentos de Novalis; um deles diz: “o porco-espinho – um ideal”.  O fragmento deve ser como um porco-espinho. 

P.- Cada capitulo deste livro parece ter autonomia- quero dizer não é linear no sentido de ser uma continuação do anterior. E dai que você passa para o chamado A Torre de Papel onde fala de um escritor,  Michel de Montaigne que decide se colocar a serviço das Musas e celebra um novo começo de vida, um segundo nascimento. Ele tem 38 anos e recita a sagração do escritor. Pensa que como é preciso semear os terrenos para que sejam úteis, da mesma forma os espíritos sem disciplina e método ficam perambulando como borboletas tontas. Você naturalmente concorda com isso? O escritor para escrever tem que ter disciplina, método, enfim cercar-se de livros que ele lê, anota e até decora para desempenhar seu papel, digamos , a contento ou de forma condizente?

Joaquim. – Michel de Montaigne é o criador do que hoje chamamos de ensaio. Ao contrário do “tratado”, o “ensaio” é uma forma textual na qual o autor procura, perde-se às vezes e aceita perder-se, não impõe uma tese, descobre outras vezes coisas surpreendentes. Digamos que, se o fragmento sobre a Villa dei Papiri é um apólogo, o fragmento sobre Montaigne é uma alegoria. Uma alegoria do escritor. E o grande mestre francês mostra nesta passagem que a ironia faz parte da sua panóplia: no momento em  que fala em método e disciplina, Montaigne se entrega a todos os demônios da indisciplina e com eles cultiva – digamos metodicamente – um jardim de ervas daninhas. Há um tipo de ornamento mural que ficou conhecido, nas artes plásticas, como grotesco (imagens no Google): são plantas, arabescos envolvendo painéis centrais às vezes com figuras fantásticas. “Floresceu”, digamos, do final do século XIV ao XVIII, e hoje é reconhecido também como uma forma privilegiada de escritura. O próprio Montaigne, falando da sua escrita, a compara a uma parede coberta de “grotescos”, isto é, de desenhos fantasiosos e elaborados.

No mais, sempre achei difícil compreender o momento de tomada decisão pela escritura: Michel de Montaigne deixando o mundo dos homens para passar a viver numa torre de papel, entre vozes veneráveis e o coro das Musas, é um alegoria espetacular desse momento. É como se o livro fosse uma “totalidade explodida”, isto é, uma explosão imóvel, se é que eu compreendi bem o sentido do gênero ensaístico em Montaigne. 

P.- Uma totalidade explodida ou uma explosão imóvel é uma ótima imagem!! Mas vamos em frente. No capitulo intitulado O Livro você inicia falando do leitor, este ente em vias de extinção nesse mundo que vive nas telas, nas redes, em tempo real, e coloca a  imagem de um filosofo ocupado a ler que envergou sua melhor roupa de cerimonia pois a leitura é um ato de cortesia com o autor e as palavras. Interessante essa imagem- um ato de cortesia!

Joaquim - Falando da leitura, pensei primeiro em Steiner, que propõe uma imagem clássica do leitor antigo, cerimonioso, cheio de cuidados, culto por definição, todo entregue à tarefa de encontrar os sentidos do texto, certo de que esses sentidos existem ou até preexistem ao ato de leitura. De outro lado, me ocorreu a imagem do leitor deleuziano, uma imagem que se contrapõe à de Steiner: um leitor distraído, indisciplinado, atento/desatento. Um leitor moderno. Não procurei uma solução para essa contradição: acho que diversas formas de leitura são possíveis, todas válidas. Aliás, Jane A. Allison, da Riverkootenay University, assinala, na orelha do livro, que as “boas maneiras” de ler são inumeráveis, tomando ironicamente a expressão “boas maneiras” no sentido que ela tem nos tratados de cortesia. Digamos que, em termos de retórica tradicional, o capítulo intitulado O Livro talvez seja um emblema.

P.- Como estamos num ensaio posso de repente voltar atrás no livro e te pedir para  me explicar porque cita a Estringe ou Gárgula que do alto da Catedral de Notre Dame , queixo apoiado na mão, lança um olhar demorado sobre Paris e pensa: esta cidade é um texto, um livro feito de confusas vozes de pedra. Um livro à espera de um cataclisma. Ou de vários, pensa o escritor que igualmente observa a cidade. Qual a relação tua com Paris? Por que Paris é um livro?

Joaquim. – Que bom! Você inventou sua maneira de ler este livro! A estrige ou gárgula é um pequeno demônio de pedra encarapitado no alto de Notre-Dame, desenhado por Méryon, um maravilhoso aquafortista francês. Walter Benjamin o colheu em Baudelaire, para transformá-lo numa espécie de alegoria das Flores do Mal. Como toda cidade, Paris é um texto. Um texto feito de ruas e bulevares,  igrejas, construções e monumentos como o arco do Triunfo. Um texto no qual se depositam camadas e camadas de memórias: poesia, guerra, amores. Trata-se, portanto de um palimpsesto mais do que de um simples texto. A estrige se transforma, assim, numa alegoria da leitura. Agora, você precisa me imaginar, a mim, situado do lado de fora do livro, olhando a imagem da estrige que figura também a melancolia. Você sabe que eu escrevi um livro sobre a melancolia. Um dia, um vento mais forte vai nos soprar do texto e da vida, levando com ele Paris e a Estrige. Mas como só a ironia nos permite sobreviver neste universo perpetuamente ameaçado, me lembrei de colar um grilo no parapeito de Notre-Dame, para nos lembrar de que devemos encarar tudo isso com certa leveza.

                        La vie est brève.

                        Un peu de rêve,

                        Un peu d’espoir;

                        Et puis, bonsoir!  

P.- Bonsoir.  Gostei do poema . Por isso meu site se chama vitabreve: porque a vida é curta. E no mais, sei que você escreveu um livro sobre a melancolia e acho até que este Livro dos Simulacros tem alguma influencia dele. E vamos em frente com o livro: como os artistas plásticos, escultores, os escritores também precisavam (precisam) de seus mecenas, para editar seus livros, seu protetores, seus editores.  Você, no  capitulo dedicado à Dedicatória, faz um belo panorama de como  ela evoluiu através do tempo, desde o período clássico  até a Revolução Francesa e depois até os nossos dias. Se os clássicos usavam cartas como dedicatórias aos seus patronos, os autores pertencentes a burguesia nascente se revelam logo de inicio: os poetas românticos,  e aqui você cita Charles Baudelaire como emblemático desta nova era, dedicando seu As Flores do Mal à Théophile Gautier, seu grande amigo e mestre, a quem ele chama de mago das artes. Finalmente temos a dedicatória, já como prática corrente na era do livro agora um objeto na economia de mercado  conservando seu lugar especial. O livro é  dom ao patrono literário do autor, ao pai, à mãe, ao amigo, filhos ou amantes. Enfim a dedicatória é como você diz, um índice do valor da obra .

Joaquim. – Você interpretou muito bem o que eu quis passar. Você deve ter notado, aliás, que O Livro dos Simulacros não tem dedicatário, embora eu tenha brincado muito com as dedicatórias, no interior do livro, como, por exemplo, o “a George Dazet” e o “a M. Histin”, que foram recortados Cantos de Maldoror e de Poesias, de Lautréamont. Mas... quem, em sã consciência, ousaria dedicar um livro  Mallarmé?! 

P.- Justamente! Em seguida temos a epígrafe que significa ‘ato de escrever sobre’-  como você diz: “o umbral que desvela ao leitor a inquietante fundura dos corredores que se abrem diante dele”.  O capitulo é tão sucinto como uma epígrafe mas profundo como  ela.

Joaquim. – Obrigado, Ana! Você já respondeu por mim: a epígrafe é isso mesmo. 

P. -Na sequência vemos a Introdução que tem como tarefa lançar o leitor no texto do livro contando para ele o que é o texto. Lógico que você se expressa de outra forma, mas afinal conclui que a introdução tem a finalidade de construir o caminho para o leitor, o caminho do saber. No caso o caminho do saber sobre aquele tema de que trata o livro certo? 

Joaquim. – O Livro dos Simulacros avança mesmo assim: no fundo, como dizia Hegel, “toda introdução é uma primeira parte” (ou terceira, ou, como neste livro, a décima segunda), isto é, já aconteceu.

P.  No capitulo intitulado O Corpo do Livro você diz que o homem soube ler antes de escrever- ou o ato de escrever tem origem no ato de ler já que aprender  a escrita, em sua etimologia originária que é gravar, fazer a marca, é idêntica em todas as línguas- europeias, semíticas, orientais e até nos povos sem escrita . Isso porque segundo você diz, as primeiras marcas, as primeiras inscrições que os homens vêm foram os rastros dos animais sobre a neve. Me fale sobre isso. 

Joaquim. – Quem diz isso é Roland Barthes, que eu cito nesta página, e cujos cursos eu segui na França, no século passado. Barthes foi, com Benedito Nunes e Jean Peytard, um dos meus mestres. Para compreender melhor o que Barthes pretende dizer nesse fragmento, basta recorrer às páginas anteriores do meu livro, nas quais cito e resumo uma passagem de um conto de Voltaire, Zadig. O mundo é uma página onde aprendemos muito cedo a reconhecer as “marcas”; marcas de passadas, de ramos secos estalando, até da sombra de um pássaro no alto. Depois, nos sentamos junto a uma mesa e transcrevemos. 

P.- Você escreve: “Ler em latim significa colher olivas, nozes, pequenos frutos indicando a mão que recolhe, no sentido de ajuntar. Mas legere também é escolher pois o homem ao colher, recolhe e escolhe. Na acepção moderna ler é uma metáfora cujas raízes conhecemos apenas de modo aproximado. A  palavra pode derivar de expressões como legere oculis, reunir as (letras) com os olhos. Enfim , como você diz há na palavra ler a presença do olho que anda ao longo da página, colhe signos e recolhe sentidos que vão sendo ajuntados  uns aos outros. Você conclui: ler é uma verbo corporal.”  Verbo corporal? O que é isso? 

Joaquim. – Quando lemos, tudo se move conosco, nossos olhos de carne e os do espírito, as mãos que folheiam, e, se realmente existe uma alma no homem, a alma também se move. Você viu, nas páginas 89 e 90 deste livro, o que a leitura fez com Paolo e Francesca de Rimini? 

P.- Sim, vi! E agora temos o capitulo A leitura  que tem  como subtítulo: Illustratio ou hipotipose.   Me fale sobre este subtítulo? 

Joaquim. – Illustratio ou hipotipose é uma categoria, digamos, estilística: “a ação de descrever uma cena ou circunstância, utilizando cores intensas, de maneira a fazer com que o ouvinte/o leitor tenha a sensação de que as percebe pessoalmente”. Eu poderia ter encerrado o livro falando das tópicas do fecho ou das formas codificadas de terminar um livro. Barthes dizia que não sabemos nunca onde um discurso termina. Por isso, as culturas codificaram fechos. A Canção de Roland, joia da literatura medieval francesa, termina assim: “Aqui acaba a gesta que Turold (o suposto autor) declinou”, isto é, escreveu. Outro fecho codificado na Idade Média: “Termino aqui, pois a noite está caindo e é difícil escrever na escuridão”. Outro, no conto de fadas: “ E viveram felizes para sempre”. Em lugar de fechar meu livro com um estudo das tópicas de conclusão, preferi expor, ali, a potência da leitura: é o próprio livro que fala, pela boca de Sartre, Dante, Machado, de novo Sartre mediado por SB, Proust e, enfim, maravilha das maravilhas, o mistério de Mallarmé, o céu da escrita, o lance de dados.

P.- Justamente são  trechos de vários livros que falam de livros: Les Mots de Jean Paul Sartre; O Canto V do Inferno de Dante; Dom Casmurro de Machado de Assis; O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde (tradução de Jeanette Marillier); La Force des choses de Simone de Beauvoir (tradução de JBF); Sur la lectur, de Marcel Proust, (tradução de JBF ); Le Mystère  dans les Lettres de Mallarmé in Divagations (tradução de Fernando Scheibe). As personagens estão lendo ou  falando de livros que compraram  ou que queriam muito ler. Essa foi a tua intenção evidente- falar sobre livros, a maravilha que é a leitura, para encerrar teu livro?

Joaquim. – Sim: permitir, no fecho do livro, a eclosão da potência a leitura.

 

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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