As grandes questões de Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont (máscara autoral de Isidore Ducasse)

Ana Lúcia Vasconcelos


 

      Livre docente da Faculdade de Educação da Unicamp, com formação em Filosofia e Literatura Clássica Francesa, apaixonado pelos autores gregos, latinos e franceses entre eles Lautréamont e Mallarmé, o filosofo e ensaísta Joaquim Brasil Fontes tem treze livros publicados: Fragmentos dos fragmentos da lírica de Safo. Florianópolis, Noa Noa, 1990; Eros, tecelão de mitos. São Paulo: Estação Liberdade, 1991; * (2a. edição: São Paulo: Iluminuras, 2003); Variações sobre a lírica de Safo. São Paulo: Estação Liberdade, 1992; A Musa adolescente. São Paulo: Iluminuras, 1998; As Obrigatórias metáforas. (Apontamentos sobre literatura e ensino) São Paulo: Iluminuras, 1999; O Livro dos simulacros. Florianópolis: Clavicórdio, 2000; Poética do fragmento. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2000; Safo de Lesbos. Poemas e fragmentos. Trad. de Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2003;  Os Anos de exílio do jovem Mallarmé. São Paulo: Ateliê, 2007. É tradutor para o português de Eurípides, Sêneca, Racine e Baudelaire, este ainda inédito; Cantos de Maldoror. Editora Unicamp, 2015. Recebeu o Premio Jabuti por Hipólito e Fedra. Três Tragédias. São Paulo: Iluminuras, 2007 . Vai lançar em março de 2018 Nigredo-Estudos de morte e dulia pela Cultura e Barbárie Editora de Florianópolis.

      Atualmente é coordenador do GEISH (Grupo de Estudo Interdisciplinar em Sexualidade Humana) da Unicamp, no âmbito do qual desenvolve pesquisas sobre erotismo e sexualidade, no horizonte das literaturas clássicas e modernas. Atua também nos Grupos: Poesia da Idade Imperial Romana (Unicamp) e Diversidade em Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Literatura e Ensino, e atua nas áreas de Literatura Comparada, Literaturas Clássicas (Grega e Latina) e Francesa (séculos XVII, XVIII e XIX), voltando-se particularmente para questões ligadas a narrativa, poesia e teatro, bem como ensino de literatura e leitura.

     Nesta entrevista Joaquim Brasil Fontes aborda especialmente sua tradução de Os Cantos de Maldoror do Conde de Lautréamont ( pseudônimo de Isidore Ducasse)  autor que estuda ha anos, falando de modo particular da sua “ filosofia” de edição que é diferente das outras  traduções encontráveis no mercado editorial brasileiro. Destaca ainda as quatro questões da escritura de Ducasse/ Lautréamont - difícil de ser deslindada pelos obstáculos  que ele coloca na leitura  que empaca e recomeça e quando a gente pensa que ele vai chegar em algum lugar, volta ao ponto de partida, misturando poesia e teatro na narrativa. Enfim, para dar mais luzes para o leitor entrar no universo tão particular deste escritor tão único nesses Cantos de Maldoror,  Joaquim fala da questão da autoria, a questão da reescrita, a questão do apagamento da vida pessoal dele- quando então deixa emergir a animalidade ( quando ele cola com o predador, como diz) e finalmente a mistura de gêneros. Digamos que Lautréamont não é fácil.

 

 

P.-Joaquim, sei que você gosta de Lautréamont, para dizer o mínimo já que ele foi objeto do teu mestrado e doutorado na França. Me fala sobre este seu autor de predileção, este escritor francês controvertido e genial que morreu muito jovem, aos 24 anos que na verdade se chamava Isidore Ducasse e era uruguaio nascido em Montevidéu. Por que decidiu traduzir Os Cantos de Maldoror agora?

Joaquim Brasil Fontes. – Comecei a trabalhar o texto de Lautréamont  ainda no Brasil, muito jovem. Naquele momento, Michel Foucault, que acabava de proferir em Paris sua controversa conferência O que é um autor?, anotava que parte do interesse despertado pelos Cantos provinha de eles serem “uma obra sem autor”, “um discurso sem ninguém por trás”, como lembra Raul Antelo no prefácio à minha tradução do grande poeta. Lautréamont e os Cantos de Maldoror fascinavam o aluno de Filosofia e o estudante de Letras Francesas que eu era na época, quando despontavam  no horizonte o que mais tarde se chamaria de pós-estruturalismo, com Derrida, Deleuze e Foucault.

Lautréamont é o pseudônimo de ISIDORE DUCASSE, nascido em Montevidéu, no Uruguai, em 1846, quando aquela cidade estava sendo sitiada por exércitos a serviço do ditador argentino Juan Manuel Rosas. Uma guerra longa, dura, evocada em Montevidéu ou a Nova Troia, romance publicado em 1850 e atribuído a Alexandre Dumas, escrito originalmente em francês, e no qual seu tradutor para o espanhol moderno, Alejandro Waksman, encontra un espíritu montaraz de maravillas, entre suores de centauros, exalações de sangue, barro e bosta misturados a pestilências, incenso e perfumes. Ducasse nasceu, pois, ao som das fúrias da guerra, e passou a infância e o começo da adolescência na América Austral, falando sem dúvida francês em casa e espanhol na rua. Somente aos treze anos foi enviado pelo pai, um imigrante francês, funcionário do consulado do seu país no Uruguai, para terminar seus estudos secundários em Tarbes, cidadezinha dos Altos Pirineus, na França. Se você abrir, porém, qualquer dicionário ou história da literatura francesa no verbete Lautréamont, encontrará uma observação deste tipo: LAUTRÉAMONT (Isidore Ducasse). Escritor francês (grifo meu). Montevidéu, 1846 – Paris, 1870...

P.- Você me disse que pouco se sabe sobre Isidore Ducasse . Na verdade há muito mistério sobre sua vida, aliás curta , e sua obra afinal tão controvertida, especialmente estes Cantos de Maldoror que tem uma história , me parece, muito fantástica.

JBF – Até meados dos anos 70 do século passado só tínhamos retratos imaginários de Lautréamont (ou Isidore Ducasse), entre os quais a espetacular imagem do poeta criada por Salvador Dali. Jean-Jacques Lefrère descobriu então, em Tarbes, um álbum de fotografias que continha uma que poderia ser a dele... e foi logo imediatamente incorporada pela mídia literária. Talvez seja realmente a sua foto. De qualquer forma, se você digitar o nome Isidore Ducasse no Google, a foto descoberta por Lefrère emergirá imediatamente na tela. Mas quase nada sabemos sobre Isidore Ducasse, lembrava, já às vésperas do terceiro milênio, Leyla Perrone-Moisés num artigo publicado na revista Littérature. Lendas persistentes circulavam, contudo, sobre ele antes mesmo da redescoberta dos Cantos de Maldoror pelos surrealistas. Falarei dessa “redescoberta” um pouco adiante.

Antes de tudo, lembremos os mitos que circularam e ainda circulam sobre o poeta uruguaio: loucura do poeta, a morte num quarto de hospício, a redação do seu longo poema num quartinho de hotel parisiense, ao som de um piano que incomodava vivamente os demais locatários (este último mito foi aliás retomado recentemente por Edith & Corcal em La Chambre de Lautréamont, uma história em quadrinhos sublime, publicada em Paris pela Futuropolis, e na qual o menino Rimbaud acaba conhecendo pessoalmente o moço Isidore Ducasse. (Confiram). No final do século XX, apareceria uma imensa biografia de Isidore Ducasse, escrita por Jean-Jacques Lefrère, 700 páginas... dedicadas porém, como observa Leyla Perrone no artigo que citei, aos que viveram em torno do personagem central: antigos condiscípulos na província, possíveis amigos parisienses, editores e livreiros, tantos outros. Ora, há, no centro desse texto interminável, um buraco; nele, se esconde Isidore Ducasse. O pouco que sabíamos dele já havia sido revelado por Maurice Saillet em 1963 e sobretudo por François Caradec num livro prudente e honesto, publicado em 1975 pela Gallimard. Sobre a infância, nada, a não ser testemunhos que não podem ser comprovados e dados absolutamente míticos, como esta informação contida no Canto Segundo de Maldoror:

Contam que nasci nos braços da surdez! Nos primeiros tempos da minha infância, não ouvia o que me diziam. Quando, com a maior dificuldade, conseguiram ensinar-me a falar, era somente depois de ter lido numa folha de papel o que alguém escrevia que eu podia comunicar, por minha vez, o fio de meus pensamentos.

      Note a ironia contida na passagem. São os treze anos fundamentais, da infância e da primeira adolescência, que perdemos assim. Só sabemos que em 1859, depois de uma longa travessia por mar, o mocinho uruguaio chegava a Tarbes, onde se inscreveu como interno no Liceu Imperial. Não sei se você sabe o que significava ser aluno interno num liceu francês em meados do século XIX: uma disciplina feroz, sujeira, frio e violência.

P. Sei (porque ele mesmo os cita) que os terríveis “inspetores de alunos” eram chamados  de pions!

JBF-  Sim. No Canto Primeiro, no qual há reminiscências da vida no liceu, o autor fala com horror desses inspetores encarregados de vigiar os meninos por toda parte, no estudo, em classe, no lazer. Gaston Bachelard, num livro genial publicado em 1939, explora longamente esse filão – o complexo da cultura – na obra ducassiana. Mas é importante lembrar também que o jovem recém-chegado da América Austral travaria conhecimento no liceu, em 1859, com Georges Dazet, que tinha na época cerca de 8 anos (sublinhemos a idade), era louro, lindo, olhos azuis, talvez o melhor estudante do liceu, que arrebatava todos os prêmios escolares. Guarde esse nome, ele vai ocupar um lugar importante na fábrica dos Cantos de Maldoror. Se você me permitir, vou citar aqui, desde já, uma importante referência a Dazet, feita na primeira versão do Canto Primeiro:

Não faz muito tempo que revi o mar e calquei a ponte dos navios, e minhas lembranças estão vivas como se o tivesse deixado ontem. Ficai todavia, se puderdes, tão calmos quanto eu nesta leitura que me arrependo já de vos oferecer e não coreis ao pensamento do que é o coração humano. Ah! Dazet! tu, cuja alma é inseparável da minha; tu, o mais belo dentre os filhos da mulher, embora ainda adolescente; tu, cujo nome se assemelha ao do maior amigo da juventude de Byron; tu em quem residem nobremente, como em sua morada natural, por um comum acordo, numa aliança indestrutível, a doce virtude comunicativa e as graças divinas, por que não estás comigo, teu peito contra o  meu peito, sentados os dois nalgum rochedo à beira-mar, para contemplar este espetáculo que adoro.).

Entre 1859 e 1862, Ducasse faz estudos regulares em Tarbes, dos quais temos comprovantes. No início do ano escolar de l862, perdemos novamente todos os registros da sua passagem pela terra dos homens, mas vamos reencontrá-lo em outubro de 1863 no liceu de uma cidade próxima, Pau, onde termina seu curso secundário, correspondente ao antigo colegial brasileiro. Parece que teria feito a seguir uma, ou talvez duas longas travessias marítimas para rever a América Austral Poderíamos, aliás, aproveitar essa referência para sublinhar aqui a importância do oceano na obra de Ducasse; por exemplo, esta passagem da terceira versão do Canto Primeiro:

Velho Oceano, das ondas de cristal, te assemelhas proporcionalmente àquelas marcas violáceas que se veem nas costas machucadas dos grumetes; és um imenso roxo, aplicado sobre o corpo da terra; gosto dessa comparação. Assim, ao primeiro olhar para ti, um sopro prolongado de tristeza, que se pensaria ser o murmúrio da tua brisa suave, passa deixando indeléveis marcas na alma profundamente abalada, e trazes à lembrança de teus amantes, sem que se tenha sempre consciência disso, os rudes começos do homem, quando ele trava conhecimento com a dor que não o deixa mais. Eu te saúdo, velho Oceano!)

P.- Aliás, diga-se, que ele escreve muito bem esse Ducasse não? é uma maravilha isso! Mas continuemos falando sobre sua vida.

JBF- Certo. Então no final de 1867, reencontramos Isidore Ducasse instalado num hotel situado no número 23 da rua Notre-Dame-des-Victoires, em Paris. A informação nos vem de Léon Genonceaux, que reeditou, em 1890, Os Cantos de Maldoror . O pouco que sobrou da correspondência de Ducasse nos permite acompanhar sua vida e sua escrita febril nos anos seguintes a 1867: em 1868, aparece, publicado por um editor francês, numa plaquete anônima, a primeira versão do Canto Primeiro de Maldoror.  No início de 1869, esse mesmo texto reaparece, ainda anônimo (sublinhemos), mas com modificações, num coletânea impressa em Bordeaux. No verão do mesmo ano, o Canto Primeiro de Maldoror ressurge, inteiramente transformado (na forma e no fundo, que são a mesma coisa), num livro publicado na Bélgica, OS CANTOS DE MALDOROR, contendo seis cantos, desta vez atribuídos ao pseudônimo Conde de Lautréamont: Lautréamont é, pois, filho de sucessivas reescrituras dos Cantos.

P. Mas você disse que o livro não circulou, não saiu a publico.

JBF- Exatamente , o livro não circulou e permaneceu, sob forma de folhas impressas, no depósito daquela editora belga. Desapareceu. Houve apenas uma resenha. Ora, pouco depois, em 1870, foram publicadas duas plaquetes assinadas por ISIDORE DUCASSE –  Poesias I e Poesias II – como se, com o desaparecimento de Lautréamont, o jovem uruguaio se tornasse o pai de si mesmo, assumindo seu nome próprio. No dia 19 de setembro de 1870, Paris está sitiada pelo exército prussiano. Peste, fome e medo. No dia 24 de novembro do mesmo ano, Isidore Ducasse  morre às 8 horas da manhã no seu hotelzinho parisiense. Vinte e quatro anos. Seu corpo é inumado no Cemitério do Norte, hoje Montmartre, mas não poderíamos fazer, agora, uma visita ritual ao seu túmulo que, com o tempo, desapareceu: o local está atualmente recoberto por uma via pública. E assim, como num parêntese, o moço uruguaio nasce e morre em cidades sitiadas como mítica Troia do épico grego.

P. Fantástico isso, ele ter vivido em cidades em guerra. Ele  é publicado um ano antes de sua morte? Ou seja, não foi conhecido em vida como um grande escritor? Aliás , não foi conhecido simplesmente, a não ser entre poucos íntimos amigos?

JBF – Justamente. Como eu disse anteriormente, publicados em 1869 por um livreiro francês refugiado na Bélgica, Os Cantos de Maldoror não circularam imediatamente: temendo, talvez, a censura feroz do Segundo Império francês, os editores só imprimiram alguns exemplares para o autor, que foram oferecidos a amigos e críticos literários. Alguns dessas preciosidades sobreviveram. Em 1874, um tarbês naturalizado belga, compra o espólio dos editores dos Cantos e os publica com uma nova capa. Ele circula, então, entre os simbolistas belgas e os chamados decadentistas franceses. Uma circulação subterrânea, discreta, porém importante: Maldoror está presente num romance de Léon Bloy, e é citado numa carta por Huysmans, que se maravilha (cito textualmente) com a estrofe que relata “a foda do homem com a fêmea do tubarão”. A marca de Lautréamont está em Jarry.

P. Ou seja, Os Cantos de Maldoror poderiam ter ficado altamente desconhecidos se não fosse esses lances do acaso ou da providencia divina?

JBF - Os Cantos de Maldoror poderiam ter desaparecido na poeira do tempo, com a memória do jovem uruguaio, se outro jovem poeta não tivesse encontrado numa livraria parisiense, em 1917, um exemplar daquele livro incandescente. Dois dias depois, Philippe Soupault compartilhava o maravilhoso acaso com seus amigos André Breton e Louis Aragon: no curso da primeira grande e sangrenta guerra do século XX, os futuros surrealistas apoderavam-se de Lautréamont, enquanto, do outro lado da fronteira, o mercado das letras espreitava a nova presa: “Nós nos opomos, e continuaremos nos opondo a que Lautréamont entre na história, a que lhe deem um lugar entre Fulano e Sicrano”, protestam, num folheto publicado dez anos depois, Louis Aragon, André Breton e Paul Éluard que, em nota de rodapé ao fragmento que acabo de citar, registram: “por exemplo, entre Baudelaire e Rimbaud (Cinta de papel do volume das Obras Completas)”. Exatamente onde o situam, hoje, as histórias da literatura francesa.

Começava, com a redescoberta dos Cantos e, um pouco mais tarde, de Poesias a aventura surrealista de Maldoror; e como não encontrar a marca do Isidore Ducasse, autor de Poesias I e II no Aragon de O Camponês de Paris? Como não perceber a voz de Lautréamont atravessando os Manifestos Surrealistas? Mas é sobretudo nas artes plásticas que Maldoror-Lautréamont deita sua mais fecunda sombra: lembre-se das maravilhosas pranchas de Salvador Dalí, que devoram, transformam e reelaboram os pesadelos ducassianos. E não estou certo de que a noção de “escrita automática”, tão importante para os surrealistas, seja útil para compreender Lautréamont, sempre tão profundamente lúcido, sobretudo quando parece mais profundamente mergulhado na insanidade.

P.-Vários autores o colocam entre os surrealistas . Você o coloca em algum lugar ou isso não importa?

JB F- Quando penso em Maldoror, fecho os olhos, vejo aquele monolito negro de A Space Odyssey, e me lembro do título do livro de entrevistas de Stanley Kubrick, que li em italiano: Non ho risposte semplici.

P. Posto isso , gostaria de  pedir para você falar daquelas  quatro questões que colocou outro dia quando conversávamos sobre  a escritura de Ducasse/ Lautréamont - difícil de ser deslindada pelos obstáculos  que ele coloca na leitura  que empaca e recomeça e quando a gente pensa que ele vai chegar em algum lugar, volta ao ponto de partida, misturando poesia e teatro na narrativa. Enfim, para dar mais luzes para os leitores entrarem no universo tão particular deste escritor tão único nesses Cantos de Maldoror,  que seriam: a questão da autoria, a questão da reescrita, a questão do apagamento da vida pessoal dele- quando então deixa emergir a animalidade, quando ele cola com o predador, segundo você diz . E finalmente a mistura de gêneros. Aliás, ele tem consciência disso- que o leitor pode se desorientar lendo o livro e logo no inicio do Primeiro Canto escreve:

Praza aos céus que o leitor, encorajado e momentaneamente feroz como o que está lendo, encontre, sem se desorientar, seu caminho abrupto e selvagem através dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno ..etc.

JBF- Creio que já esbocei acima a grande questão da autoria, cujos mecanismos podemos seguir na passagem do anonimato para a pseudonímia (Lautréamont) e na recuperação do nome próprio (Isidore Ducasse) na folha de rosto de Poesias I e II, o que nos reenvia ao que Foucault chamou de função autor. E tudo se complica extraordinariamente quando vemos, nos Cantos, o narrador se confundir com seu personagem Maldoror, desaparecendo às vezes um no outro, num curto circuito, como, por exemplo, na famosa estrofe do acoplamento do herói com uma fêmea de tubarão, no coração de uma terrível tempestade. É esse, aliás, um dos mecanismos que emperram o movimento dos Cantos, produzindo a deliciosa e terrível sensação de desorientação que se apodera do leitor já na abertura do livro, cujas páginas são comparadas a um pântano venenoso, se dissolvem em seguido num voo de grous nas alturas e relampeja nas ondas do oceano, tudo isso nas duas estrofes inaugurais. Nos Cantos, a identidade dos sujeitos – autor, leitor, personagem – explode enquanto a linguagem avança, dinamitando formas, convenções, toda uma herança literária e midiática – de Homero ao jornal de ontem – , textos com  os quais Lautréamont estabelece um diálogo perpetuamente tenso e feroz.

P.- Gostaria que falasse ainda de duas questões que devem intrigar o leitor- a questão do bestiário de Lautréamont- afinal ele parece ter uma espécie de obsessão por animais pequenos ou grandes: cães, gatos, ratos, sapos, rãs, peixes, aranhas, corvos entre outros, a ponto de substituir lá pelas tantas o nome do jovem Dazet por polvo, piolho, morcego, ácaro, sapo. E a segunda seria a questão da língua. Você me disse que é difícil traduzi-lo porque ele escreve um francês com marcas do castelhano? Enfim , gostaria que falasse da  “filosofia” desta edição.

JBF-  Em primeiro lugar, voltemos a falar da dicção de Isidore Ducasse; e neste ponto volto àquela pergunta inicial: Isidore Ducasse, escritor francês? A língua de Isidore Ducasse coloca problemas até mesmo para o leitor francês e trabalho com todos os registros do nobre ao vulgar. Um pesquisador canadense chegou a levantar essa hipótese audaciosa: Ducasse criou uma língua nova, uma língua românica da qual os Cantos seriam o único exemplo remanescente. Contudo, não tentarei delimitar ou distinguir meu lugar no conjunto das poucas porém boas traduções de Maldoror que temos no Brasil: mais, talvez, do que a tradução, é a própria “filosofia” desta edição que traz alguma novidade em relação a algumas que circulam entre nós.

Isso significa retomar o problema das sucessivas correções do Canto Primeiro e a questão crucial do DEVIR-MONSTRO, que lateja nos Cantos de Maldoror: uma resenha da edição de 1868 do Canto Primeiro, bastante elogiosa, aliás, não deixou de assinalar, entretanto, os “numerosos defeitos” do texto e a “confusão” dos seus quadros, referindo-se, talvez, às estrofes 11, 12 e 13, que destoavam, com efeito – do ponto de vista da mais tradicional retórica dos gêneros – daquele conjunto, que é fundamentalmente narrativo: estavam redigidas sob a forma de cenas dramáticas, com suas disdacálias e todo o aparato da escrita teatral.

Se ignoramos no fundo porque o autor retomou, duas vezes, esse primeiro canto, retrabalhando-o obsessivamente, o certo é que um curioso fenômeno linguístico ocorre na passagem de uma versão para outra: um nome próprio, Dazet, é substituído, na segunda versão do Canto primeiro, pela inicial D... e explode, na terceira (integrada ao conjunto dos seis cantos), num elenco de animais, pequenos e grandes, repugnantes, ferozes ou repulsivos: polvo, piolho, morcego, ácaro. Sapo. Esse bestiário substitui Dazet, aquele anjinho louro de olhos azuis que eu citei acima:

 Dazet >>>> D... >>>> polvo, piolho, morcego, ácaro, sapo.

Ao mesmo tempo, as cenas teatrais das estrofes 11, 12 e 13 são “corrigidas”, ganhando uma tonalidade narrativa e reintegrando-se, assim, aparentemente, ao conjunto do Canto Primeiro e à retórica dos gêneros literários. Assinalemos, também, a “correção” de alguns sinais de pontuação, ao longo das três versões do Canto Primeiro.

Ora, como demonstrou Jean Peytard (que orientou meu mestrado e meu doutorado sobre os Cantos) num importante livro publicado nos anos 70 do século passado, a modificação às vezes de um único elemento daquelas poucas páginas provocava imediatamente verdadeiras revulsões em cadeia na continuidade da obra: pulverizado em grandes e pequenos monstros, um retalho da vida do autor (Dazet), ganha o anonimato e depois se dissolve num bestiário, doravante ponto de partida e constituinte da animalidade jubilosa e da crueldade que serão marcas decisivas dos Cantos de Maldoror, para as quais Gaston Bachelard foi dos primeiros a chamar a atenção, num estudo datado de 1939: a conquista, no trabalho de reescritura do texto, de uma nova temporalidade, na urgência das metamorfoses. DEVIR-MONSTRO de George Dazet contraponto exato do DEVIR-MONSTRO do anônimo autor do Canto Primeiro, que agora assume, com o nome de Lautréamont, não apenas o centro da escrita da crueldade, como, por intermédio de Maldoror, com o qual se confunde frequentemente, a ação má: estupro, assassinato, violação e violência. 

Temos, assim:

Uma 1ª. versão anônima ... Uma 2ª. versão anônima ... Uma 3ª. versão atribuída a um pseudônimo, o Conde de Lautréamont.

P.-  Você disse que Os Cantos de Maldoror depende em grande parte do devir-monstro de Dazet, ou seja, da transformação por Lautrèamont/Ducasse/Maldoror deste garoto louro e lindo de olhos azuis num monstro? O Ducasse ja nem é apenas Lautréamont mas é também o Maldoror, ou melhor, o sujeito da narrativa assume várias personas, podemos dizer isso?

JBF- Os Cantos de Maldoror, tal como o lemos hoje, depende em grande parte, como texto, do devir-monstro de Dazet, da rasura dos signos de teatralidade, de todo um exercício metódico de correção, o que inclui a repontuação – depende, em suma, das sucessivas reescrituras do Canto Primeiro, que parece ter provocado, no ato de sua reintegração à totalidade do livro, uma sequência de pequenos e amplos fenômenos linguísticos e, antes de tudo, a tomada de consciência, pelo autor, de um amálgama, fusão ou mistura entre o Eu-narrador (que às vezes coincide com Lautréamont) e Maldoror-personagem, que é, paradoxalmente, objeto e sujeito do canto.

Esse verdadeiro exercício de correção textual parece ser também responsável, em grande parte, por uma espécie de revulsão dos registros poéticos, que se transfundem – no momento mesmo em que o escritor apagava os índices de teatralidade, talvez para “normalizar” seu texto – uns nos outros, dando origem à mistura impura de gêneros que é uma das mais espetaculares marcas dos Cantos, cuja dicção situa-se nas fronteiras porosas do épico, do lírico e do dramático, um desequilíbrio formal apenas aparente.

Eis porque, seguindo sob este aspecto a edição Pléiade de Maldoror, apresento separadamente o Canto Primeiro, um texto anônimo, e só a seguir o conjunto os seis cantos, atribuídos ao pseudônimo Conde de Lautréamont. Trata-se, evidentemente, de uma “filosofia da edição”, diferente daquela que rege uma conhecida publicação feita pelos surrealistas, que “colavam” a versão de 1868 ao conjunto dos Cantos, fazendo emergir nas suas margens o texto reescrito da versão de 1869, visto como uma “variante” da 1ª.

P.-E agora quais são seus projetos referentes à Lautréamont? Vai continuar estudando este autor complexo, intrincado mas fascinante? Por falar nisso quanto tempo demorou nesta tradução?

JBF. - Ana, estou preparando um ensaio sobre Lautréamont, que já estava redigindo enquanto trabalhava os Cantos, uma tradução que foi um processo demorado, feito entre consultas a tradutores franceses e brasileiros, pesquisas, desistência e retomadas do trabalho. E confesso que tenho um plano secreto, não conte para ninguém: publicar uma edição bilíngue e ilustrada do Terceiro Canto de Maldoror. Já lancei as primeiras imagens no papel.

P.-Adorei esse plano secreto. Mas agora mudando de assunto, sei que já publicou novo livro e este foi escrito em tempo recorde: quatro meses- Nigredo- Estudos da morte e  dulia que saiu pela Cultura e Barbárie Editora, de Florianópolis,  e que vai ser lançado agora em março de 2018. Me fale sobre este titulo para começar: nigredo, em latim, é aquele termo usado pelos alquimistas para designar o primeiro estágio na purificação do ouro, mas que é também a morte espiritual, decomposição ou putrefação. Morte é morte, mas também é passagem para a vida eterna para quem acredita  e dulia é veneração em grego ? Você poderia me traduzir este titulo, ou mais: me contar sobre este Nigredo?

JBF. – Ana, Nigredo já está circulando, digamos, secretamente, antes do lançamento oficial. É um texto crivado de desenhos meus, e esta é a primeira vez que tenho coragem de mostrar meus desenhos aos meus amigos e leitores. Estou tomando o pulso das leituras feitas. Espero que possamos voltar um dia a falar, e longamente, desse livro que reflete sobre a relação entre literatura, melancolia e depressão.

Para saber mais sobre este livro e sobre Lautréamont:

https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/05/09/um-tradutor-no-coracao-da-escrita-da-crueldade

https://www.youtube.com/watch?v=yBOyVwaKc9s

https://www.youtube.com/watch?v=Qet7UnTF2OE

http://www.editoraunicamp.com.br/produto_detalhe.asp?id=1034

Para saber mais sobre Joaquim Brasil Fontes

http://www.cronopios.com.br/content.php?artigo=8327&portal=cronopios

http://www.germinaliteratura.com.br/2009/pcruzadas_analuciavasconcelos_jun2009.htm

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  • Compartilhe:
  •    
  •    
  •    

Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

Veja outras matérias de Ana Lúcia Vasconcelos