Renata Pallottini , escritora, poeta, educadora
Renata Monachesi Pallottini nasceu em São Paulo em 1931). Poeta, romancista, contista, autora de literatura infantil e juvenil, dramaturga, tradutora, ensaísta, roteirista e professora....
Revista digital de Arte e Cultura
Entrevistei Maria Nilde Mascellani (1931- 1999) educadora das mais importantes no panorama da educação brasileira do século XX, criadora e coordenadora da experiencia dos Colégios Vocacionais em Americana, São Paulo e Barretos, das mais inovadoras na area, cassada pela Revolução de 1964, em duas oportunidades: a primeira para falar de sua experiencia como educadora e a segunda para uma matéria que fiz sobre Familia para a Revista Visão no ano de 1985 e que acabou sendo reproduzida depois na Seleções do Readears ´ Digest e foi para 19 paises da Europa e Estados Unidos. Aqui está a primeira entrevista desta paulistana, filha de brasileiros com ascendencia italiana e austriaca que revela um pouco da situação da educação no Brasil naqueles tempos e de como as pessoas idealistas como ela atuavam de forma decisiva e maravilhosa.Ela é considerada por especialistas da área como uma das maiores educadoras brasileiras de todos os tempos.
P. - Ha quantos anos voce trabalha com educação de crianças e adolescentes Maria Nilde?
Maria Nilde - Acho que reunindo adolescentes, crianças e adultos ha 28 anos porque hoje tenho 54 e comecei com 17. Aliás, iniciei como professora primária, depois fiz Pedagogia, prestei concurso no magistério publico secundario.
P. - Voce nasceu onde?
MN- Em São Paulo, capital, Consolação...
P. - E tua formação foi feita em São Paulo?
MN- Foi toda em São Paulo. Eu sempre estudei em escola publica, desde o primário, ginasio, normal que eu fiz no Instituto Padre Ancheita que era a antiga Escola Normal Modelo, no Brás.Depois fiz o curso de Pedagogia e na Universidade de São Paulo (USP). E ainda Especialização e Planejamento Educacional tambem na USP.Houve ainda um curso de especialização com a Missão Chilena que veio para o Brasil no final de 1950, começo de 60 e que tinha por objetivo a formação de quadros para o Governo Carvalho Pinto.
P. -E atualmente ( lembrar que estamos em 1985) voce leciona na PUCC?
MN- Na Faculdade de Psicologia e o fato de eu estar nesta faculdade não foi exatamente uma opção pelo magistério universitário, mas a resposta a um gesto de solidariedade da Igreja de São Paulo, através da Arquidiocese para que eu tivesse um espaço docente. Eu e outros companheiros haviamos montado – o escritório Renov em função da repressão que se abateu sobre o ensino vocacional em São Paulo. E dentro da Faculdade desenvolvi um programa com o pessoal de graduação que se interessa pela area de educação, que diga-se de passagem é uma minoria.
P. Afinal nós demos salto e não falamos de um periodo importante da sua vida profissional que foi exatamente aquela da criação dos colégios vocacionais.
MN-Não sei se destacaria algum periodo como mais importante.Todos os momentos são importantes dentro de uma evolutiva de vida. Quando terminei o curso Normal continuei a fazer um trabalho que desenvolvia juntamente com amigos voluntários, em alguns cortiços de bairros como Brás e Belezinho.Eu ficava sensibilizada com a condição daquelas criancinhas que moravam sem a minima condição, sem escola.E como meu pai era uma pessoa ligada aos valores humanos- ele era dentista e naquela época estava na ativa e era muito preocupado com a saúde para todos. Assim como seu consultório funcionava na casa onde moravamos, e nas horas vagas eu e pessoal nos reuniamos e invadiamos a sala de espera.La era a sede do nosso movimento de base. A seguir nós passamos a trabalhar com os pais dessas crianças e a experiencia foi tão interessante que a partir dai resolvi estudar educação de verdade.Foi então que decidi fazer o curso de Pedagogia.
P. -Digamos que voce foi conferir a teoria com a sua pratica?
MN-De certa forma sim porque eu levava para a universidade desafios que via na pratica, as minhas indagações. Neste periodo foi importante o despertar das preocupações sociais e politicas, porque eu sai da escola Normal com uma visão ingenua de educação que teria se mantido se eu permanecesse apenas com a contribuição do curso de Pedagogia.É aí que a gente ve as restrições que o curso tinha e que hoje devem ser ainda maiores.Essas questões mais candentes foram colocadas por professores de outras áreas, especialmente de Ciencias Sociais. Eu estudava Sociologia com Florestan Fernandes,Antonio Candido,Egon Chaden que me despertaram para o estudo da sociedade, do processo histórico e para a discussão da relação educação –sociedade. Foi uma abertura muito grande de visão cultural e de indagações filosoficas sobre estas questões.
P. - Voce disse que estudou com os dominicanos e anglicanos. Poderia me contar a experiencia?
MN- Sim eu completei minha formação com dominicanos e anglicanos. Um pouco foi por aproximação e depois por questões geográficas.Eu fui morar no Brooklin e o Seminario Anglicano ficava la. E eles, muito antes que os católicos abriram o curso de Teologia para mulheres.Por esta altura minhas indagações filosoficas foram bater em indagações religiosas e fiquei um pouco dividida entre os católicos progressistas avançados e os anglicanos.Então, vamos dizer esta junção toda de indagações para as quais eu ia buscar respostas nestes setores todos foi muito util para que eu pudesse interpretar todos estes problemas sociais dentro dos quais a gente vivia e dentro dos quais tive que me posicionar muitas vezes de maneira muito direta, muito frontal.
P. - Voce diria que hoje a questão da criança e do adolescente é mais dificil de lidar do que digamos, ha dez, vinte anos atrás?
MN- Não poderia dizer se é mais ou menos dificil. Simplesmente este principio varia com a própria evolução cultural e com os dados novos nos quais as pessoas podem ter acesso. E ai vai tambem uma discussão: porque o acesso aos dados vai depender da classe social a que familia pertence. Claro que através dos meios de comunicação de massa muitas das informações chegam a todos. Realmente isso acelerou o processo de educação. Ou seja, a criança de sete a nove anos está recebendo uma informação que seu pai e sua mãe não receberam.O casal não tem tempo de sedimentar esta informação.Então o que ocorre é que a criança vai elaborando esta informação ao mesmo tempo que o casal tenta fazer isso.Com uma desvantagem que é lutar contra o preconceito, resistencia, conhecimentos diversos e até erroneos que os adultos possam ter em relação a um determinado fato.
P. - Voce diria que isso acrescenta um dado novo à esta questão da educação no Brasil hoje?
MN-Sim, eu diria isso.E este dado novo é exatamente a diminuição do poder autoritário da familia sobre os filhos e dos profissionais da educação sobre os educandos.
P. -Na sua opinião, como se reflete na mentalidade, no comportamento da criança e do adolescente este choque de ideologias que vivemos atualmente, não só no Brasil mas no mundo?Ou seja, como reagem crianças e adolescentes brasileiros a este capitalismo selvagem onde impera a lei do mais forte economicamente?
MN-Esta é uma questão bastante séria para a educação porque se os valores da nossa sociedade são valores de dominação, de autoritarismo, de consumo, quer dizer valores bem burgueses e valores capitalistas, isso evidentemente vai sendo interiorizado pelos jovens e vai bater num ponto filosofico que é a escolha entre o ter e o ser. Ha aqueles que se preocupam em ter e aqueles que se preocupam em ser. E este é que vai ficando pra trás em relação aquele que tem. Não acho que haja uma opção dentro desta filosofia no tocante aos extratos socio-economicos diferentes: ele perpassa as classe sociais todas. Então, mesmo nas favelas, nas escolas de periferia, crianças e adolescentes assimilam estes valores numa tentativa de perseguir os valores da classe dominante. E apareceu então os marginalizados, os trombadinhas, os menores infratores, carregados por estes valores consumistas que partem para roubar o carro, o relógio, a calça Lee, os óculos Ray ban, quer dizer tudo aquilo que está na moda. O que há é uma facilidade maior no tocante à posição. Voce não tem “trombadinha” na classe alta porque o papai tem condição de comprar o carro , a moto, etc. Voce tem trombadinha na classe de baixa renda porque as crianças estão passando fome, não tem o que comer, o que vestir e gostariam de se aproximar de um padrão altamente valorizado que aparece na televisão, está nos outdoors, quer dizer está em toda a propaganda.
P. - Que mudanças voce vê no comportamento da criança e do adolescente brasileiros hoje no plano social e afetivo?
MN- Vejo sensiveis mudanças. A gente pode observar que as crianças se relacionam mais naturalmente tanto no ambito familiar quanto na escola ou no parque infantil ou na creche, onde elas convivem. Isso porque se derrubou uma barreira que havia na escola e que era a separação de sexos-fato que ocorria aliás, mais na escola publica que na particular. Então hoje temos classes mistas, desde a pré-escola, o parque infantil até a universidade. E até décadas passadas as classes eram em geral só de meninos ou só de meninas, com o objetivo tácito, não explicito de impedir o convivio, de manter o bom comportamento moral das meninas , para que os meninos não “ abusassem” das meninas. Então tudo aquilo que era mantido dentro deste controle pela familia, era igualmente mantido pela escola. Interessante é que as mesmas meninas que faziam educação fisica com calças compridas usavam meias e saias nos tornozelos eram as mesmas que usavam biquinis nos fins de semana nas piscinas e nas praias. Ou seja, ja vinha ocorrendo uma quebra de valores e se concretizando novas formas de comportamento afetivo como o abraço e o beijo .Por exemplo, antigamente se dançava mais próximo, mas com algumas regras de aproximação. E hoje a gente ve um negócio tao doido com as discotecas e tal que eu digo que hoje as pessoas podem dançar até pelo telefone. E no entanto o relacionamento sexual e afetivo de um garoto com uma garota no plano fisico, sexual se dá com toda a naturalidade. E isso a gente nota que está ocorrendo em faixas etárias cada vez mais baixas. Entre a meninada do primário hoje todos se declaram namorados, todos se beijam e se abraçam. Muitos pais estão vendo isso como um comportamento normal, enquanto outros colocam restrições. E estas restrições a meu ver estão ocorrendo mais em camadas de baixa renda, em escolas de periferia. São recados das mães para os professores para que não deixem suas filhas se misturar com os meninos. E as vezes os professores são mais avançados do que as mães. No tocante a uma relação sexual mais avançada está havendo uma quebra de padrão sexual das meninas muito cedo. Agora, isso não é acompanhado de um processo só educativo para que as coisas se coloquem nos devidos termos.
P. - O que voce entende por devidos termos?
MN- Ter as informações corretas sobre o significado dos atos, sobre o significado de uma relação, sobre as consequencias de se colocar por exemplo uma criança no mundo. E do ponto afetivo, o que precisa haver em nivel mais profundo?Eu pelo menos parto do seguinte principio: uma relação sexual sem conteudo de afeto não é diferente de uma relação entre um gato e um cachorro. Então fica no plano organico, fisiológico. E mesmo em relação à mulher. Há uma marca social muito forte ainda. Dai que uma menina que aborta ou engravida antes do casamento sofre uma pressão muito grande. E isso tambem no tocante à sensibilidade- quando não ha correspondencia afetiva no relacionamento sexual acho que as marcas ficam bem no nivel superficial.A verdade é que quando se tem uma personalidade em jogo se deve trabalhar com todas as variáveis: afetivo, cognitivo. Parece que estamos vivendo um momento deste desiquilibrio de pratos-ha toda uma curtição em cima do afetivo e menor preocupação com o conhecimento. O que se ve hoje é: pais preocupados com a sequencia escolar, com diplomas, mas não interessados se seus filhos vão saber muito ou pouco. Ou seja, não estão preocupados com a qualidade do conhecimento.
P.- O Jorge de Andrade, dramaturgo infelizmente falecido foi um dos conferencistas do curso que voce e sua equipe deram aqui em São Paulo. Sei que a escolha do seu nome se deve em parte por ele ter sido autor da novela Os Adolescentes, realizada pela TV Bandeirantes em 1981 e para qual seu escritório deu assessoria pedagógica. É a primeira vez que voces atuam nesta área ou é uma constante no seu trabalho?
MN- Sabe, a questão do nosso entrosamento com o Jorge de Andrade é muito de cunho pessoal, de amizade. A gente se conhece ha muitos anos e o Jorge fez um trabalho pioneiro no Colégio Vocacional. E interessante porque ele nem foi desconberto por nós mas pelos meninos do Colégio Vocacional de Barretos que foram entrevistá-lo como parte do levantamento que fizeram com pessoas ligadas à cultura da cidade. E encontraram o Jorge la entocado em Barretos,escrevendo peças. Foi muito interessante porque um grupo de alunos redigiu uma carta consultando sobre a possibilidade dele ser professor-porque ele dizia que não era professor e tal. E um dia, ele veio para São Paulo para conversar comigo. E a minha primeira impressão foi de uma pessoa demasiadamente nobre e ainda fumando piteira que eu considerava esnobismo, mas que depois ele explicou que era mais para evitar o mal do fumo , etc. E por sua vez ele que esperava me encontrar uma senhora gorda e alta, me tomou pela secretaria da Maria Nilde. Mas este encontro foi decisivo. Ele ficou trabalhando como professor de teatro no Colégio Vocacional de Barretos durante dois anos e meio e depois quando foi instalado o colegial no Vocacional do Brooklin de São Paulo, ele assumiu a area de teatro. Havia uma area de Comunicações no Colegial e o teatro tinha que assumir outra dimensão. E ele acabou vindo para São Paulo por causa do Vocacional. E ele tem uma peça muito interessante que a gente pôs em debate que é o dilema do adolescente. É Rasto Atrás que é a vida dele, a problematica da vida dele. Então eu diria que o Jorge de Andrade deu dois tipos de contribuição: uma com os alunos, com quem fazia teatro. E a outra era aproveitá-lo para debater com profissionais, aproveitar o trabalho de dramaturgia dele e as coisas que ele julgava ter descoberto desta experiencia educativa.
P.- Sei que ele foi preso tambem na época em que o Vocacional foi fechado. Por favor , fale sobre isso.
MN- Quando terminou o Vocacional ele teve uma experiencia muito dramatica quando foi chamado para depor no II Exército.Isso porque muitos alunos foram presos e tambem foram apreendidos textos de peças que os alunos escreviam.E o II Exército queria que ele denunciasse os alunos.Ele deu um depoimento tão desafiador que não sei como ele não saiu preso- defendeu as peças e alertou os militares para o fato de ser impossivel prender todos os brasileiros. Não haveria quartel para tanta gente. E uma coisa que o abalou muito foi o meu julgamento que ele assistiu na Segunda Auditoria e que perto dos outros foi um trivial simples. Além disso eu mostrei a ele meu relatório de prisão que eu havia entregue ao Cardel.E em cima deste relatório ele me fez perguntas sobre fatos que não estavam registrados e que de fato não estavam a pedido do Cardeal Evaristo Arns.
P. -E foi a partir desta sua experiencia dramatica que ele escreveu O Milagre da Cela?
MN-Bem, pode-se dizer que ele se inspirou nos meus relatos e evidentemente inseriu outras situações que sairam de outras experiencias de presos politicos e com as quais eu até concordo. Então esta coisa de assessorar novela, discutir peças, ja vinha do tempo do vocacional que simplesmente se transportou para o escritório Renov. Não porque ele tenha esta função, nem muito menos porque ele nos remunera por isso. Simplesmente porque a gente tem este hábito: sentar junto para conversar. De qualquer forma ele pegou a novela no meio-a Ivany (Ribeiro) ia deixá-la e foram necessárias muitas mudanças. E estas mudanças correram, digamos assim muito em função dessa assessoria, muito em cima das nossas conversas.
P. - Voce ja disse que teve uma infancia muito ligada à arte, que seus pais davam muita importancia ao teatro, à musica.Voce diria que essa sua paixão pela arte foi o motivo de se ter desenvolvido tanto a area de teatro e de Caomunicações no Vocacional, onde havia uma integração de todas as matérias através do teatro , por exemplo?
MN- Sim isso é verdade. Isso tem uma relação com uma veia artistica que eu carrego e até o pessoal do Vocacional dizia que eu privilegiava o pessoal do teatro. Mas é verdade: eu tenho veneração pelos artistas.Tentei fazer um curso de Artes Plásticas na época do normal mas não deu certo.Mas eu gostaria de mexer mais com isso. Piano eu estudei nove anos mas tive que vender para comprar cortisona quando tive crises de artrite.Mas pintar mesmo consegui na prisão porque o pessoal não me deixava ler nem escrever.
Para saber mais sobre Maria Nilde:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Nilde_Mascelani
http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/169/vocacional-nas-telas-234944-1.asp
http://revistaeducacao.com.br/textos/109/artigo233889-1.asp
http://www.pucsp.br/cedic/memoria_educacao/root/galeria_videos.html
Para saber mais sobre Jorge de Andrade:
http://teatropedia.com/wiki/Jorge_Andrade
https://www.youtube.com/watch?v=T7IoLPpFyTA
Sobre o autor:
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