Maria Thereza Camargo da Mota fala sobre Hilda Hilst

Ana Lúcia Vasconcelos


Entrevista com Maria Thereza Camargo da Motta

 

Quando havia dado por terminado o livro que escrevi sobre a Hilda Hilst- pelo menos pensava isso na ocasião, depois de muitas idas e vindas, depois de ter recebido muitos nãos de editoras várias, resolvi fazer orçamentos com gráficas para publicá-lo por minha conta e risco. Isso ainda não aconteceu, quero dizer, o livro ainda está inédito por vários motivos, eu continuei mexendo nele muitíssimo, mas por vias providencias que só acontecem com a internet, onde a gente, navegando pelos links, encontra pessoas que sequer imaginaria, contatei a Leila Oli a quem contei meu projeto e que me remeteu gentilmente a poeta, tradutora e editora, autora de mais de vinte livros, criadora da editora Íbis Libris: Thereza Cristina Rocque da Motta, que , segundo ela, deveria se interessar pelo livro. Estávamos no dia 22 de dezembro de 2010.

 No dia 23 Thereza me respondeu dizendo que adoraria ver o livro por duas razões: sua mãe Maria Thereza Barros de Camargo, à época com 82 anos, (ela faleceu em outubro de 2014) arquiteta, estudara com a Hilda no colegial no Mackenzie. E que a Hilda fora uma pessoa fundamental para o seu trabalho ter prosseguido naquela época, já que a conhecera quando tinha 19 anos, e estava começando a escrever poesia. E mais: João José de Melo Franco poeta e sócio da editora Ibis Libris, na altura, também fora amigo de Hilda durante vários anos, frequentando a Casa do Sol para longos papos e bebedeiras.

  “Hilda era uma pessoa excepcional para nós, cada um por seu lado.” E daí dizia que havia interesse da parte deles em verem meu material, avaliá-lo, para estudarem uma proposta de edição. E disse que agradeceria a Leila Oli a indicação, pois ela sabia da importância de Hilda Hilst para ela. “Tenho uma divida com ela. Hilda é minha ‘madrinha’, como Olga Savary e Neide Archanjo. Um dos meus livros, Alba, é dedicado às três. Fundei com duas amigas a Sociedade Hilstiniana, para falar dela e ler poemas de Hilda. Ela é a poeta mais importante de todos os tempos junto com Cecília e Adélia, sendo única. Quando leio poemas de Hilda para outras pessoas, elas descobrem um poeta que nunca imaginaram existir. Felizes os que puderam conviver com ela. Devo isso à minha mãe, que a conheceu e me apresentou. Estive poucas vezes com ela, mas todas foram importantíssimas.”

 

O acaso não existe,

tudo é articulado pelo Alto

 

Depois de termos refletido sobre a forma como as coisas aconteceram e como eu estava feliz com este encontro aparentemente tramado pelo acaso, mas na verdade articulado pelo Alto ela me disse: “Nada é por acaso. João e eu, além de minha mãe, fomos grandes amigos de Hilda. Ela foi a primeira a ler meus poemas e a dizer que eu era poeta. Fui amiga de Massao e comecei a publicar e aprendi com ele o que faço hoje. Tenho minha editora há dez anos, publicando principalmente poesia. Sou tradutora e graças a Hilda passei a escrever em inglês e verter meus poemas, pois ela dizia para fazer isso. ‘Ninguém lê português’, declarou numa entrevista. A partir daí comecei a verter meus próprios poemas e a publicar edições bilíngües. Graças a Hilda fiz isso. Devo a ela duas vezes: ser poeta, outra publicar em inglês. Por isso tive o primeiro livro brasileiro a ser publicado no Kindle, da Amazon, justamente por ser em inglês também, antes de abrirem para a América Latina. Você pode ver no meu blog: http://marcopoloeaprincesaazul.blogspot.com.

Mandei o texto, e ela me respondeu: “João topou fazermos uma edição do seu livro. Se possível, conseguiremos a autorização para publicar as fotos. E as fotos que são suas, têm que entrar também. Muito importante o seu trabalho, mesmo como alertou João, que não seja comercial, mas não é para ser, é para existir, pois se não formos nós a falar de Hilda, quem falará? Eu era amiga do Léo (Gilson Ribeiro), do Rofran (Fernandes) e do Caio (Fernando Abreu) por conta de Hilda. Conheci Mora Fuentes também, na década de 80, quando eu estava começando a publicar e morava em São Paulo. João conheceu Hilda também nessa época, mas nós não nos conhecíamos, só viemos a trabalhar junto desde 2006”.

Neste momento tive que pedir um minuto de silencio – eu acabara de ganhar um presente de Natal e porque as emoções positivas também podem te abalar, especialmente quando voce batalha muito alguma coisa - e este livro estava sendo escrito desde fevereiro de 2005. Precisei de um tempo para deglutir a graça e comecei a agradecer toda a corte celeste que certamente tivera a ver com isso tudo, mas a emoção foi recíproca: a Thereza também ficara muito feliz. Refeita do choque retomei o trabalho: percebi que o livro ainda não terminara. Precisava agora entrevistar sua mãe. Que tal? “Minha mãe está vivíssima e voce pode falar com ela.” E me mandou seu email. Só então percebi que elas estavam no Rio de Janeiro. Por que eu sinceramente estava nas nuvens. Registro que o livro não foi feito pela editora Ibis Libris e por nenhuma outra até o momento por motivos vários, mas comecei ali uma amizade maravilhosa.

Na sequencia a Thereza me encaminhou para sua mãe Maria Thereza e logo ao primeiro email levei outro choque: ela me chamou de irmã amiga como a Hilda costumava me chamar e a outros amigos e isso está impresso em algumas dedicatórias de livros. Pensei- será que isso era moda no Mackenzie? Ou elas têm o mesmo jeito afetivo? E então já me senti no passado lembrando a Hilda, mas voltei logo para o presente: já era dia 24 de dezembro e combinamos a entrevista para depois das festas de fim de ano. E resolvi, aprendi com os mineiros: guardar segredo. Desta vez eu contaria a boa noticia por ocasião do lançamento do livro: nada de contar com o ovo antes da galinha botar.

Passadas as festas, nada de férias, no dia 3 de janeiro já estava com a primeira bateria de perguntas para a Maria Thereza que me respondeu dias depois. O segundo encontro foi no skipe: novas perguntas por email e novas respostas. Depois de muitas idas e vindas e muita edição voce pensa que entrevista foi feita ao vivo e a cores. Além das preciosas informações que a Maria Thereza me deu sobre a Hilda Hilst aos 15 anos já que ela tem dois a mais e à altura tinha 17, me contou coisas da sua vida e de sua mãe e registrou que naquela altura se dedicava exclusivamente ao sistema de pensamento contido na obra Um Curso em Milagres e escrevia Oremas, e Minemas- poemas feitos para orar.

 

A primeira impressão é a que fica

 

 Maria Thereza me contou que conheceu a Hilda no colegial uma fazendo clássico e outra cientifico em fevereiro de 1945, um pouco antes do fim da 2ª Guerra Mundial, no Instituto Mackenzie, onde estava desde o final do primário e quando este colégio ainda se chamava Escola Americana, em 1939. Hilda viera do Colégio Santa Marcelina, que fica nas Perdizes, na Rua Cardoso de Almeida (São Paulo). Mas enquanto ela vinha de uma família grande, com muitos irmãos, tios, primos, sobrinhos, paulista dos ‘quatro costados’, sem mistura com sangue imigrante, pelo menos até sua geração, Hilda descendente de alemães, pelo pai – Hilst- tinha um único irmão: Ruy. “Nunca soube da existência de parentes dela. Eu, pelo contrário, até brincava que em São Paulo bastava dar três chutes que num deles encontraria um parente. A mãe, viúva aos 36 anos, militante política da vertente do governador Armando de Salles Oliveira, foi deputada estadual que o Estado Novo cassou em 1937. Desconheço se a mãe de Hilda tinha alguma atividade fora do lar. Constava que o pai de Hilda era doente, em tratamento de saúde mental. Internado ou não, desconheço informação correta. Hilda era muito apegada a ele.”

 Qual foi sua primeira impressão dela? Como ela era? Sua figura, sua postura enfim já era aquela pessoa afetiva e linda?  “A figura humana de Hilda era agradável, simpática, animada, engraçada. Aliás, toda pessoa inteligente é naturalmente engraçada, não cômica, mas engraçada, o que diz tem graça, disposta, alegre, bem vestida, original na seleção da roupa, elegante naturalmente. O Mackenzie não tinha e não tem uniforme ela era caprichosa no se arrumar, se bem que simples no arranjo final. Sua presença era simpática, amável, educada, finamente gozadora das bobagens usuais da humanidade, era super-requisitada pelo elemento masculino. Quando digo super , pode por ‘super’ nisso, pois considere isso em dose cavalar.”

  Para dizer a verdade Maria Thereza quando conheceu a Hilda queria mesmo era esganá-la porque onde estivesse se tornava imediatamente o centro das atenções: todos os olhares masculinos se dirigiam a ela deixando as pobres outras meninas literalmente às traças. Em pouco tempo, conta, ela se tornou das pessoas muito conhecidas por alunos de vários cursos e isso segundo ela era facilitado pela estrutura do Mackenzie onde estudantes de muitos cursos conviviam se locomoviam no mesmo espaço. Havia ainda o fato do Campus do Mackenzie não ter dimensões muito amplas o que induzia as pessoas circularem pelos mesmos lugares: biblioteca, lanchonete, refeitório, auditório, campo de esporte, ginásio de ginástica, loja de compra de material de estudo e trabalho-papelaria inclusive, copiadora, secretaria, reitoria administração da escola.

   “Assim todos se viam, se encontravam se conheciam se falavam se relacionavam. A toda hora cruzávamos com estudantes de outras séries, outros cursos, mais adiantados ou mais atrasados, pois o universo mackenzista é, sempre foi, muito grande e diversificado. Nesse mundo eclético e divertido rapidamente Hilda conquistou seu espaço e seu lugar que jamais perdeu. Essa característica tornava o Mackenzie uma escola diferente, onde a vivência interna era mais intensa do que em outras escolas ou até faculdades onde a rua seria o único lugar comum em que circulassem juntos, além da própria sala de aula. Nessa circunstância é que Hilda rapidamente se tornou conhecida, e por isso mesmo, solicitada intensamente pelo universo masculino. Hilda, charmosa como sempre, deve ter sido - e continuou sendo - o pólo de atração no relacionamento de estudantes. Ela exercia uma forma livre de atuar que já era avançada para o meio social reinante.”

 E ela como a maioria das moças da época tinha uma formação mais rígida, digamos, mais convencional. A diferença entre Hilda e o corriqueiro das mortais femininas da época em termos de desempenho segundo Maria Thereza é que a maioria recebia uma formação fechada. “Eu mesma, apesar dos meus 17 anos, não tinha licença para ir à parte nenhuma, a lugar algum, sem minha governante. A minha educação, com certeza, não representava um parâmetro da época. Fui criada à moda das princesas Elizabeth e Margaret, da Inglaterra, que não iam a lugar algum desacompanhadas.”

 

Atração enxameada

 

“No entanto, a maneira do relacionamento de Hilda com o elemento masculino devia oferecer alguma faceta original e diferente para que a resposta do grupo masculino atuasse da forma que atuava e se sentisse tão irresistivelmente atraído por ela. Esse foi um fenômeno que ao longo de toda vida de Hilda continuou ocorrendo. Hilda jamais conseguiu arrefecer ou estancar esse, que eu pessoalmente chamaria de ‘atração enxameada’, para a qual Hilda não parecia contribuir nem voluntaria nem necessariamente.”

 Mas ela fazia alguma coisa para que isso acontecesse, quero dizer provocava no sentido erótico do termo? Por que estou me lembrando dela e vejo que ela me relata alguma coisa que todos que conviveram com a Hilda lembram quando falam de sua pessoa: este seu charme natural, e que dava um toque mágico a tudo que a rodeava e que era mesmo sua marca registrada.

 “Não fazia nada, ela era daquele jeito. Por que voce sente quando está num ambiente erotizado. Ali não, ela ficava na dela, ela era daquele jeito mesmo. Quem conviveu com Hilda ao longo de sua vida adulta e provecta sabe do que estou falando. Esta é uma colocação que faço hoje, com muito respeito e ressalva, 65 anos após ter conhecido Hilda em meus 17 anos, para relatar uma circunstância que permanentemente me intrigou e que o fato de estar relatando o ocorrido àquela época, me fez analítica e aprofundei minhas conclusões a respeito. Porque, à época, na vivência dos meus 17 anos, eu apenas fiquei muito irritada, muito danada com Hilda por sua capacidade infinita de ser e permanecer ininterruptamente o foco de atração de todos os rapazes que circulavam em nosso mundo estudantil de Colégio-científico e clássico, como se chamava então.”

 Maria Thereza sempre considerou esta atração que Hilda exercia sobre os rapazes quando jovem como algo excepcional, além da conta.” Quando Hilda chegava os rapazes passavam a rodeá-la como insetos rodeando algo que os atraísse, como se fosse um ‘enxame’ de insetos sobre um foco de grande interesse. As demais garotas ficavam como se não estivessem ali. Mas, em contrapartida, não havia da parte de Hilda nenhum gesto, atitude ou atuação que provocasse essa reação deles. Assim como em um ambiente em que a predominância da intenção erótica é grande você vê o elemento feminino até mesmo ‘provocando’ a atenção masculina. Ocorre que nunca notei por parte de Hilda nem ao menos um olhar que pudesse ser classificado como provocador, ou intencional em relação aos rapazes, com o propósito de chamar-lhes a atenção que abrissem portas e janelas para um relacionamento. E você sabe o quanto a vida de Hilda, adulta, foi ‘agitada’ exatamente por essa a que chamei ‘atração enxameada’. Entrei outro dia no Google e fui ler sobre Hilda, pois eu estou desatualizada dela. Não havia visto suas últimas fotos.Realmente está mais destroçada que eu, sendo ela mais jovem que eu dois anos. Mesmo assim. Veja o que faz a bebida. Vai ser bom abrir o tema da ‘atração enxameada’ pois ninguém fala disso. É um aspecto absolutamente dela. Vale até uma pesquisa psicológica. Haverá algum psicólogo que conviveu com ela? Que não seja uma avaliação superficial.”

 Refletindo sobre este depoimento da Maria Thereza comecei a conjecturar  que este aspecto da personalidade da Hilda talvez pudesse ser analisado por especialistas no assunto: esta atração que exercia ‘apesar dela ‘e que até pode ter trazido muitos problemas ao longo de sua vida, já que a beleza mixada com um grande charme pode ser fatal em alguns casos. Mas este fato porventura fez com que ela fosse digamos hostilizada?

Absolutamente. Maria Thereza reafirma que Hilda era benquista entre os colegas, de ambos os sexos, conhecida por todo o Mackenzie, freqüentava reuniões, grupos e festas, sempre animada e bem disposta, eventualmente acompanhada por algum rapaz, pois muitos queriam namorá-la. E as meninas, na maioria, sentiam o mesmo que ela: sabiam que onde Hilda estivesse o elemento masculino estaria todo focalizado nela.

  Mas não apenas este fato fez com que Maria Thereza resolvesse ‘cortar ’ com Hilda, tirá-lo do caderno de endereços, mas devido à ‘educação de princesa’ que recebia em que ia - onde quer que fosse era acompanhada por sua governante, o que tirava um pouco a ‘graça’ dos eventos disponíveis. Então esse convívio com outras moças, colegas ou não, ficava prejudicado. Isso significa que ela não convivia com a Hilda? Pensei que pudessem ter afinidades literárias sendo como é de família culta com vasta biblioteca e tudo o mais. “Não, não convivi com Hilda. Minha reação como jovem foi não andar com Hilda, pois onde ela estivesse os rapazes não enxergavam mais ninguém além dela. E isso era supinamente chato, ora bolas! Esse corte que dei no meu relacionamento com Hilda nessa idade me impediu de curti-la mais como jovem poeta. Mas sempre gostei muito dela, nunca conheci outra pessoa igual a ela. Mas o que se pode esperar de uma cabeça de 17 anos? Mesmo eu que- tenho certeza- não ter sido uma garota boboca, pelo contrário, lia principalmente poesia, ‘encostei’ os livros de romance chamados “para mocinhas” por achá-los tolos, repetitivos e sem mensagem, não me dispuseram a ‘conviver’ com Hilda porque ela monopolizava - mesmo que em nada contribuísse diretamente para isso- os rapazes. As ‘afinidades literárias’ poderiam ter sido muitas, pois nessa época eu só lia poesia (minha mãe era grande leitora de poesia e tinha uma imensa biblioteca), tanto em português como inglês e francês, mas tendo ‘cortado’ Hilda do meu ‘caderno’ essa curtição não houve. Eu só decretei minha independência aos 21 anos de idade quando comuniquei a minha mãe e meu irmão que não ninguém mais mandava em mim e que não queria nem mesmo o seu dinheiro. Iria me manter com o meu trabalho e com a herança do meu pai. Fiquei livre!”.

Isso significa então que não frequentavam as respectivas casas? Por que pelo que me consta a esta altura Hilda morava com uma governanta no Jardim Europa. “Não freqüentávamos nossas respectivas casas, por eu ter uma vida social muito fechada. A regra da minha mãe era chamar sempre os amigos dos filhos para nossa casa evitando que nós saíssemos. Como eu ‘cortara’ Hilda do meu ‘caderno’, não a convidava, é claro. Jamais convidei Hilda para nenhuma das festas de aniversário que dei, e todo ano eu comemorava meu aniversário em casa de mamãe. Morávamos no Jardim América. Nem estudávamos juntas, pois isso não se fazia muito ainda, nessa época. Só comecei a estudar com colegas da faculdade. Isso resultou que eu não tenho nenhum nome para citar da convivência de Hilda, por não termos ‘convivido’ entre nós nessa época. Salvo os nomes de colegas nossos como o Jorge Wilheim, arquiteto e Eugênia Brentani Deheinzelin (Gini), administradora (se não me engano, sem graduação, secretariava pessoas, pois não tenho conhecimento da faculdade que fez, apesar de ser pessoa muito inteligente e culta), são os únicos que me ocorrem agora.

 

A vida continua

cada uma na sua

 

Maria Thereza conta que na sequencia perdeu o contato com Hilda porque ao terminar o colégio: 1945- 1947 iniciou, em 1949 a faculdade de arquitetura no Mackenzie enquanto Hilda foi para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Formada em 1953, abriu seu escritório de arquitetura com um plano de trabalho: comprar terrenos, construir casas e vendê-las: ‘programão’ burguês de ganhar dinheiro conta no seu jeito bem humorado. Estava terminando sua primeira casa, fazendo projetos para terceiros e entabulando a segunda construção de casas quando conheceu o homem que a pediria em casamento: o diplomata brasileiro Benedicto Rocque da Motta. “Fiquei conhecendo o Benedicto num jantar em São Paulo, e dois meses depois casada, passaporte diplomático na mão, embarcava para Boston onde ele assumiria o posto de Cônsul do Brasil. Viajei, morei fora do Brasil sete anos, retornei ao Brasil em 1962, com dois filhos nas costas vim morar no Rio de Janeiro. Jamais fui à Casa do Sol por várias razões: Campinas fica a 600 km do Rio e tinha dois filhos pequenos. O terceiro motivo foi mais complicado: fiquei sabendo por alto o que ‘rolava’ na Casa do Sol. “Achei que eu não me sentiria à vontade naquele ambiente.”

Interessante que as pessoas tinham uma imagem também errônea da Casa do Sol. Lá havia uma grande liberdade, era a abertura total da Hilda para as pessoas, sem preconceitos. Mas la só iam seus amigos e nunca presenciei nada de terrível.Ao contrário a lembrança que tenho são apenas papos maravilhosos , muita cultura, muita literatura , muita amizade e muita afetividade.

Mas Maria Thereza registra que sempre foi adepta da ‘autodeterminação dos povos’ e não tem nada a ver com as decisões alheias “Para mim o português é quem tem razão: ”cada um desce do bonde como bem lhe apetece. O português, com direito de descer por onde queira, desce do lado contrário. É direito seu quebrar a cabeça conforme lhe apeteça. Mas jamais ‘rompi’ com Hilda. Respeitava seu arbítrio e mantinha o meu. Tanto que nesses sete anos em que estive fora do país, tendo morado dois anos e meio em Montevidéu, capital do Uruguai, ensaiei fazer alguma poesia. Numa rápida vinda ao Brasil, enquanto ainda estava em Montevidéu, estive em casa de Hilda - um apartamento na Alameda Santos - para levar-lhe as poesias que eu havia escrito para que ela as lesse e me dissesse se era poesia mesmo. Ela, amiga de fato, fez-me o favor de me dizer que não era poesia, apenas ‘emotivo desabafo de angústias da vida’, mas, realmente, não era poesia. Foi ótimo, pois assim parei com isso, pelo menos àquela época. Mas o fato de sempre morar fora de São Paulo era a colocação mais fácil para explicar porque nunca aparecia uma oportunidade legal para ir à Campinas ”.

 

Jantar em homenagem à Hilda

ela mostra os poemas da filha

 

Passado o período colegial sua ‘implicância’ por Hilda passou, me conta Maria Thereza. “Morando no Rio desde que retornei de Montevidéu, em 1962, aproveitava toda oportunidade para encontrar os colegas, de quem sempre fui muito amiga. Á esta altura sua produção literária crescia assim como o reconhecimento pela crítica. Hilda já era um nome reconhecido pelo meio literário do país. Já de volta ao Brasil, num fim de ano a nossa turma do Colégio no Mackenzie organizou um jantar para comemorar nossa convivência no colégio e Hilda veio da Casa do Sol para nosso jantar. E encontrar Hilda, então, era imperdível. Mas dessa fez eu tinha uma razão especial para falar com Hilda. Queria pedir a ela que lesse os poemas de minha filha, Thereza Christina Rocque da Motta, e me dessa sua opinião sobre eles. Foi o que fiz. Marcamos um encontro no dia seguinte ao jantar. Fui ao hotel onde se hospedara. Hilda, sentada na cama do hotel, passou horas lendo. Leu todos, com a maior atenção. E à medida que lia, ia separando-os em dois montinhos. Terminada a leitura, apontou para um dos montes, disse: “Estes são bons, mas são de formação. Ela estava se preparando.” Aí, apontou para o outro monte, disse: ‘Estes são poemas. Pode publicar.’ Sagrava-se ali o nascimento da poeta. Hilda havia reconhecido o que eu, quando minha filha tinha oito anos, ‘vi’ o que não era ainda visível. Que Titina (apelido que uso para minha filha)‘só daria para escrever, ’ expressão que usei à época, quando aos oito anos de idade me dei conta de que esse era o seu rumo na vida. Como de fato é.”

E Maria Thereza continuava acompanhando a repercussão do trabalho literário dela segundo o noticiado nos jornais. Ouviu dela, muitas vezes, queixas de que não comentavam com frequência seu trabalho: ela queria que falassem mais dela. “É claro”. Mesmo seu teatro não causou a repercussão que ela queria. Sua reclamação era tão sentida que partiu para o extremo oposto. Decide-se a escrever de forma contundente para que “falem mal, mas falem de mim...”. “Foi quando publicou a história de Lori Lamby, ’se não estou com o nome errado da obra.”

Por falar nisso o nome correto da obra é O Caderno Rosa de Lori Lamby, que causou frisson entre os amigos, mas foi sucesso e sobre o qual ela também tem uma história para contar sobre a Hilda. “A partir daí, confesso, não sei como a crítica a tratou. Sei apenas que foi muito criticada, mas, de fato, começaram a falar mais dela. Como ela queria. Esse seu livro foi lançado numa Bienal do Livro em São Paulo. Eu estava lá. Fui à Bienal, junto com Gini Brentani, em apoio a ela. Já estava de livro comprado na mão, dirigia-me à mesa onde ela autografava. Quando me viu, de longe já me avisou: ‘Não, esse livro não é para você. É péssimo. Você não vai gostar! ’ Eu não fazia parte da crítica literária. Eu só queria o autógrafo dela! Pessoalmente, em voz baixa me diz apavorada: ‘É pornografia! Isso não é do que você gosta. ’ Pouco me importava. Eu estava ali para cumprimentá-la.”

 

A louca experiência dos gravadores

 

Maria Thereza soube ainda de outra das loucas experiências da Hilda: desta vez com gravadores onde registrava vozes de pessoas mortas que estavam em outros planos tentando se comunicar com os humanos cá da Terra, que, aliás, segui de perto, mas da qual ela desacreditou totalmente. “Foi em São Paulo. Eu ficara sabendo que ela estava dedicando um tempo enorme com o rádio ligado onde não havia estação alguma, ouvindo vozes que diziam estar no éter e que essas comunicações visavam se comunicar com humanos. Hilda até relatou ter ouvido uma voz dizer o seu nome, com pronuncia alemã: ‘Hilddddaaaaa com H bem puxado, repetido duas ou três vezes’. Eu lhe disse que aquilo não tinha o menor valor. Ela argumentou comigo que havia muita gente fazendo isso no mundo todo. Mas repeti a ela: isso não significa nada. Ela não me deu crédito e prosseguiu procurando e gravando, não sei até quando, nessa escuta obsessiva. Os sons não se sabiam de onde vinham, e os que estavam fazendo essas gravações é que imaginavam tratar-se de vozes de pessoas falecidas. Nunca entrei nessa. Não acreditei naquela época e não acredito hoje.”

Quanto á obra da Hilda Maria Thereza não se considerava uma entendida mesmo porque a única obra fazia questão de conhecer, pelo menos proporção maior que as demais, era justamente Um Curso em Milagres e os livros relacionados ao sistema de pensamento que estudou desde 1993 até sua morte em 2014, sobre o qual escreveu, ministrou aulas e palestras.

“A obra de Hilda eu aprecio, leio com interesse e atenção. Não posso nem dizer que tenho livros prediletos na obra dela. Poesia, isso sim, gosto muito, mas muito mesmo. Já desde garota já havia escolhido como leitura preferida a poesia, em lugar da prosa. Texto leio para estudar. Mas romance, novela, não chega a me cativar. Há quem perca a noite lendo romance. Jamais fiz tal coisa. Leio quase sempre prosa na intenção de considerar que ‘preciso’ ler tal obra, como encargo. Prazer mesmo é só poesia. Há tanta coisa boa em termos de poesia que para citar alguns estaria deixando tantos outros de lado. Mas para não deixar de citar algum eu diria Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes, para não dizer que não citei nenhum. Considero-me a leitora número um da minha filha. Desse lugar não abro mão. Em resumo resumorum: minha ligação com Hilda era feita por meio da leitura de seu trabalho.Quando publicava algo, não me comunicava. Ficava sabendo pelo noticiário, quando havia. Não posso dizer que foi uma amizade pessoal. Eu gostava muito dela. E ponto final. Nem sei o que pensava de mim. Aliás, não tomaria nem conhecimento de sua opinião. Hilda era um ícone que eu amava. Isso é tudo. Não tive com Hilda a mesma ligação que tenho com Olga Savary, por exemplo, que mora aqui no Rio, sua casa é perto da minha, vou até lá de quando em vez, que me presenteia, quando tem vontade, com quem converso, ouço e me ouve. Infelizmente não foi assim nosso relacionamento. Mas cada coisa é o que e, nem sempre o que gostaríamos que tivesse sido.”

 

A religião do amor

 

Mas afinal ela que também era uma pessoa uma pessoa religiosa no sentido da palavra religare é estar ligada em Deus. Assim, como ela explicaria o fato da Hilda ter falado de Deus o tempo inteiro na sua obra, apesar de ter escrito aqueles livros pornográficos que afinal também são geniais e ter sido tão confundida em sua vida? Maria Thereza diz que mais que uma pessoa ‘religiosa’, é uma pessoa de fé. Religiosa para ela é a pessoa que segue uma religião. “Religião para mim é ‘clubinho’ local onde as pessoas se encontram socialmente. É algo mais de convivência do que algo que una as pessoas pela mente. Eu sou uma pessoa crente, ou seja, alguém que ACREDITA em suas convicções, idéias, conceitos, conclusões, pensamentos, princípios, fundamentos. Considero que tudo que fazemos todos nossos pensamentos, projetos, propósitos, intenções, inspirações, palavras, atos e até omissões são dirigidos a Deus. Isso porque só há o Pai e o Filho. Não há nada mais que Pai e Filho. Só há Pai e Filho, pois Pai é só Ele, o Pai. E Filho são todos eles que juntos também são um só. Isso é tudo o que há. Portanto o que escrevo é para Deus, a respeito de Deus, relativo a Deus, sobre Deus, pois só existe, de fato, Ele e eu. Então, Hilda naquela sua ‘dança’ pelo que poderíamos chamar de ‘ tema não santo’, ela continuou falando de Deus, pois falou de Seu Filho esquecido que era Seu Filho. Nas como não há condição do Filho efetivamente esquecer-se do Que é, senão em ilusão, então ele em verdade continua Filho, mesmo que, naquele instante preciso, ache que não seja. Mas isso, só parece. Só parece. E é por isso que é genial, pois não deixou de falar do Pai perfeito e de Seu Filho Santo.

Por fim quis registrar minha surpresa quando recebi seu primeiro email e ela me chamou de irmãamiga que era justamente o modo como a Hilda me chamava e a outras pessoas. Aliás, tenho dedicatórias dela com esta expressão. Falei também como ela era afetiva e chamava todo mundo de meu amor, benzinho, meu bem, e como eu não faço isso, como tenho, apesar de ser afetiva, dificuldade em expressar meu afeto desta forma. E ela ao contrário já foi logo no primeiro email dizendo: eu te amo. Maria Thereza me disse que nos nossos papos longos falamos sobre externar amor, e porque fazer isso.

“Amor é imprescindível. Na história de Hilda - da qual agora até já estou apaixonada como você - houve uma carência de amor que causou vários desastres a ela. Que o Instituto Hilda Hilst (até isso criaram) se embriague de amor para cumprir bem o seu papel. Você pode cuidar disso Ana Lúcia, irmã amiga. É de amor que a vida é feita, e nada mais. Vida e amor são sinônimos de Deus. Amo você, porque sem amor eu morro. Para ter amor tenho de amar. E porque fora do amor nada é real.”

Sobre as ultimas sugestões feitas por ela, relativas ao Instituto Hilda Hilst não posso fazer nada. Mas posso dizer que ter conhecido Maria Thereza foi uma graça, porque pude perceber o quanto preciso evoluir no caminho do amor.
 

 

       Maria Thereza Camargo da Motta, (1928-2014), arquiteta e poeta, nasceu em Limeira, SP. Formou-se na Faculdade de Arquitetura Mackenzie onde estudou desde o curso primário. Fundou uma empresa de arquitetura onde atuou até seu casamento com o diplomata brasileiro Benedicto Rocque da Motta que foi cônsul em Boston (EUA) e em alguns países da América Latina. De volta ao Brasil foi contratada pela COHAB-GB, no Rio de Janeiro, 1964, onde exerceu vários cargos. Contribuiu para o plano habitacional brasileiro iniciado em 1963 no Rio de Janeiro pelo Governador Carlos Lacerda, que se expandiu para o Governo Federal, coma criação do BNH (Banco Nacional de Habitação). Em 1993 começou estudar o sistema de pensamento contido em Um Curso em Milagres e iniciou nova fase de vida, agora como professora deste sistema de pensamento, atividade que exerceu até sua morte em 2014. Para ensinar o sistema de pensamento de Um Curso em Milagres (onde se aprende a ser feliz e estar em paz pelo perdão e amor incondicional a Deus e ao próximo como a si mesmo) escreveu o que chamou de OREMAS, publicado em 2007- livro de orações em forma de poemas e com este titulo publicou seis livros: oremas II, III, IV, V, VI VII. Tem ainda para publicar os MINEMAS, que são oremas mínimos.

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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