Joaquim Brasil Fontes traduzindo o mundo grego e falando de metamorfoses

Ana Lúcia Vasconcelos


Livre docente da Faculdade de Educação da Unicamp, com formação em Filosofia e Literatura Clássica Francesa, apaixonado pelos autores gregos, latinos e franceses entre eles Lautréamont e Mallarmé, o filosofo e ensaísta Joaquim Brasil Fontes tem oito livros publicados: Fragmentos dos fragmentos da lírica de Safo. Florianópolis, Noa Noa, 1990; Eros, tecelão de mitos. São Paulo: Estação Liberdade, 1991; * (2a. edição: São Paulo: Iluminuras, 2003); Variações sobre a lírica de Safo: São Paulo: Estação Liberdade, 1992; A Musa adolescente. São Paulo: Iluminuras, 1998; As Obrigatórias metáforas. (Apontamentos sobre literatura e ensino) São Paulo: Iluminuras, 1999; O Livro dos simulacros. Florianópolis: Clavicórdio, 2000; Poética do fragmento. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2000; Safo de Lesbos. Poemas e fragmentos. Trad. de Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2003. E para serem publicados agora em março de 2007: Os Anos de exílio do jovem Mallarmé. São Paulo: Ateliê, 2007; Eurípides, Sêneca, Racine. Hipólito e Fedra. Trad. introd. e notas de Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2007.

A primeira entrevista que fiz com Joaquim Brasil Fontes aconteceu na seqüência da publicação de seu livro Variações sobre a Lírica de Safa-Texto Grego e Variações Livres, lançada na II Bienal Internacional o Livro em 1992 em São Paulo e editada pela Estação Liberdade com uma tiragem limitada: 50 livros em papel couchê e mais 1.500 em papel pólen com belíssimas gravuras da artista plástica Fúlvia Gonçalves. Diga-se que este foi o segundo livro de Joaquim Brasil Fontes sobre a poeta grega Safo que segundo consta teria vivido na ilha de Lebos no século VI a.C. O primeiro foi Eros, Tecelão de Mitos e a matéria foi publicada em novembro do mesmo ano no Jornal de Domingo de Campinas,atualmente extinto, quando eu era sua orientanda de mestrado na Unicamp.
E então ele falou dos seus trabalhos, como começou a estudar a obra de Safo de Lesbos, sua forma de abordagem dos temas que tem muito da linguagem do cineasta Fellini, seu amor pela Grécia, pelo idioma grego, pela arte persa e outras preferências em matéria de arte.


Agora quando o contatei para fazermos uma nova entrevista, desta vez falando dos seus novos livros e trabalhos ocorridos neste período de mais de vinte anos, ele decidiu responder novamente as minhas perguntas da primeira de forma completamente nova ao mesmo tempo em que me contou dos seus trabalhos posteriores aos dois primeiros livros citados: A Musa Adolescente (Iluminuras, 1998, SP) seus estudos sobre Mallarmé, seus cursos, viagens e sobre a pesquisa mais recente cujo tema é a metamorfose.Dono de uma cultura e simpatias invejáveis, Joaquim Brasil Fontes tem também um humor maravilhoso que, aliás, é sua marca registrada. Apesar de se confessar um apaixonado por Campinas, Joaquim Brasil Fontes é mineiro. “Eu gosto muito de Campinas, mas minha paisagem são as montanhas. Acho que Minas deixou uma marca muito grande. 


Um escritor entre ruínas de textos, de dados...

P - Joaquim, o Benedito Nunes inicia o prefácio do seu livro Eros-Tecelão de Mitos-A Poesia de Safo de Lesbos, dizendo que ele é uma “singular e ousada abordagem; uma flânerie benjaminiana por entre os versos e os vestígios da vida de Safo. Ou uma forma episodia e fragmentada que disfarça a hermenêutica que lhe é implícita”. Para começar do começo vamos traduzir o que é isso-flânerie benjaminiana? Flânerie é um passeio, um sobrevôo, benjamiana, naturalmente é à maneira de Walter Benjamim. Explique isso, por favor.

Joaquim Brasil Fontes - Ana, é difícil falar dos nossos próprios escritos, porque não é nada fácil focalizá-los de fora, como crítico – benévolo ou impiedoso. E é quase impossível reconstituir a vivência do ato de escrever, conectado sempre a tantas variáveis, como leituras passadas e presentes, gosto e desgosto, e – sobretudo – o corpo e o inconsciente. Mas tenho a impressão de que, durante a redação de Eros, tecelão de mitos, eu me constituí, como escritor, entre ruínas – de textos, de dados, de informações sempre parciais –; de ruínas que era preciso “colocar em movimento” na linguagem para provocar e ao mesmo tempo adiar os inevitáveis instantes em que tudo parecia desmoronar no vazio. Creio que, nesse sentido, o professor Benedito usa o termo flânerie como metáfora e descrição de um processo de escrita que pode parecer ao leitor leve o/ou erudito, mas deriva de uma da angústia provocada por uma intensa circulação no espaço de uma cultura em que os signos se anunciam perpetuamente, despontam e voltam a se apagar. É um processo que o leitor pode acompanhar...

P - Tem que aceitar a flânerie?

Joaquim – Não a minha flânerie, pois o leitor é sempre livre: circula nos textos à sua maneira, reinventa percursos e até abre outros, ignorados pelo autor.

P - E como foi que você se interessou pela poesia de Safo, desde quando, como foi a paixão, etc. Conte tudo.

Joaquim - Isso vem de longe, mas por caminhos tortos: quase criança e já adolescendo estudei as línguas e as literaturas clássicas sob a supervisão de minha avó paterna, uma erudita greco-romana. Mais tarde, “trabalhei” a língua grega com uma professora particular, enquanto completava, trabalhando ao mesmo num estabelecimento bancário, graduações em Filosofia e Literatura Francesa. Na época, líamos os pré-socráticos em grego... Optei, na vida profissional, pela literatura e acabei me doutorando na França, com tese sobre Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont (autor que reaparece no Eros..., no jogo que ali se instala entre “antigos” e “modernos”). Foi no início dos anos 1980 que voltei com seriedade à língua grega, formulando um projeto de tradução do Livro XII da Antologia Palatina, coletânea de poemas eróticos publicada durante a Idade Média bizantina, de temática pederástica (lembrando evidentemente que, no contexto da cultura grega, a palavra “pederastia” tem uma conotação positiva, significando, “o amor, a atração pelos rapazes”, e se inscreve no quadro mais amplo de uma “paidéia”). O Livro XII da Antologia Palatina é um conjunto de poemas curtos, de epigramas de diversos poetas, que viveram entre o período arcaico, antes de Cristo, e o chamado período helenístico, situado já muitos séculos depois do nascimento de Cristo.

P - De grandes poetas, famosos?

Joaquim - Famosos poetas, poetas menores, alguns anônimos, todos colecionados por outro poeta, Straton de Sardes, uma personagem fascinante que aparece episodicamente nas Memórias de Adriano, da Marguerite Yourcenar e sobre o qual quase nada sabemos, além do nome e do local em que nasceu ou viveu: Sardes, situada na Ásia Menor, a atual Turquia. Esse projeto não foi realmente concluído, mas Straton de Sardes reaparece, sob a forma de obsessão não resolvida, em outro livro meu, uma “espécie de romance”, publicado em 1998: A Musa Adolescente, título que é, exatamente, uma das traduções possíveis para Mousa Paikíke, o título grego do Livro XII da Antologia Palatina... Eu tinha me deixado fascinar por essa erótica pederástica, quando topei com uma edição bilíngüe, antiquada, dos poemas de Safo, que, de certa forma, abriu minha sensibilidade para outras figurações de Eros... 

P - A erótica feminina...

Joaquim - Exatamente. Mergulhei em Safo ao voltar de uma estadia de dois anos na Europa. Em 1984 já eu estava inteiramente tomado, estudando, recolhendo textos e fragmentos, coletando dados e críticas, totalmente obcecado pelo tema. Em 1987 comecei a esboçar meu estudo sobre a poeta, enquanto, ao mesmo tempo, traduzia, retraduzia, tentando recompor, não apenas sentidos, mas sonoridades. E imagens.

P - Você tem uma bibliografia imensa...

Joaquim - Não apenas sobre os “antigos”; sobre os “modernos” também: anos de leitura, talvez. Mas o processo de escrita se fez num lance: uns oito meses.

P - Mas aí veio como um jorro, depois de tanto tempo recolhendo informações?

Joaquim - Oito meses cortados por um intervalo de dois meses de silêncio, dos quais mal me recordo. Pronto, o texto foi apresentado como tese de Livre Docência.

P - E como você chegou a este tipo de abordagem, enfim, como se definiu por este método que o Benedito Nunes fazendo uma analogia com Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis chama de “sem gravata nem suspensórios”, citando justamente um pequeno trecho da obra na epígrafe?

Joaquim - Essa epígrafe do professor Benedito Nunes lembra o universo machadiano, que lembra um pouco o de Benjamin, e faz parte do jogo de metáforas do prefácio: flânerie, perdição, o método como percurso. Quanto a mim, li Machado – que admiro muito – depois de Baudelaire e Racine, pois tive uma formação literária muito francesa.

P - O que eu entendi desta fala foi que afinal você usa um método que não é o método acadêmico?

Joaquim - Você se lembra do étimo dessa palavra: “meta – hodós”, em que “hodós” significa “caminho”. Alguém já disse que método é o caminho – depois de percorrido.

P - Se a gente estivesse falando de musica poderíamos dizer que seu texto é atonal?
Joaquim - Não sei... Na abertura de Eros, se pensarmos em termos musicais, teríamos talvez Debussy: imagens de Safo que procedem de Baudelaire e mergulham nas correntezas da belle époque, do fim do século XIX. Mas, falando francamente, não sei se metáforas musicais são capazes de “dar conta” de uma texto escrito, embora o capítulo que chamei de “Exercícios Espirituais” seja todo fundado no...

P - Loyola...

Joaquim - Em Santo Ignácio de Loyola, com fundo de música barroca. De certa forma, porém, pode-se dizer que o livro, pouco antes do fecho, assume-se atonal: é um momento de perdição, de angústia provocada pelo fragmento, no qual o sujeito, o contexto e o sentido se perdem, vacilam. É verdade que, logo em seguida vêm as “Variações sobre a Lírica de Safo”, outra metáfora musical, que vale o que vale: da ablação do sujeito à sua multiplicação.

P - Sem sair do prefácio eu leio o Benedito Nunes te chamar de scholar...

Joaquim - O professor Nunes, sempre gentil, exagera... A palavra scholar leva a pensar em Oxford, Unicamp, Nouvelle Sorbonne, lugares por onde já passei, ocasionalmente, mas me sentindo como se estivesse do “outro lado”. Sou apenas um diletante passeando entre ruínas arqueológicas.

P - Sei que você sabe latim e grego além de francês que você domina como sua segunda língua, além de outros idiomas. Você diria que ainda se fazem scholars como antigamente? Ou seja, hoje é comum em plena era da informática, pessoas saberem grego e latim? E mais, como foi que isso te aconteceu de aprender grego e latim?

Joaquim - Meu grego, meu latim vêm de minha avó, que me lia os clássicos no original. O latim e o grego me fascinam tanto quanto o francês. Paul Veyne conta que, andando certa vez pelas colinas da Provença, encontrou um pedaço de ânfora antiga: foi, para ele, como se tivesse topado com um fragmento de meteorito, caído de um mundo estranho. Assim são os antigos, e os franceses (Baudelaire, Racine, até mesmo Sartre), para mim: “estranhos porque me fazem sair de mim mesmo”. 

P - Como foi que te ocorreu estudar a obra de Safo de Lesbos a partir da literatura moderna: começando pelas Lesbianas de Baudelaire e passando pelo salto de Lêucate, descrita na Carta XV de Ovídio, para terminar na personagem dramática que mostra os sintomas clássicos da paixão. Você começou pela tradução dos poemas e então passou para a interpretação da vida e obra? Conte isso.

Joaquim - Comecei pela tradução, na qual já comecei a captar uma imagem de Safo que logo se desdobrou, revelando-se múltipla, dramática e ao mesmo tempo ficcional. O “salto de Lêucade”, por exemplo, é uma imagem teatral: a amorosa a pique sobre o mar, prestes a se jogar nele. Existe, evidentemente, a imagem da “lésbica”, retrabalhada em profundidade pela literatura erótica da segunda metade do século XIX. Ora os antigos a diziam bela, kalé, ora pequena, baixinha, escura. Feia, em suma. Há uma pletora de “imagens de Safo”; convivi com elas, deixei que aparecesem e se retraíssem, e voltassem de novo à tona. No fundo, todas estão presentes no livro – onipresentes. São figuras culturais, é impossível anular qualquer uma delas: a Safo perversa, a dos scholars, a dos diletantes, a dos poetas, a dos tradutores da belle époque, a Safo grotesca de Daumier; e, é claro, a Safo Kitsch saltando, por amor desenganado, no vazio. E a Safo do Luiz Mott, que procede de Jamil Almansur Haddad.

P - E esta pesquisa foi feita onde? Você já estava aqui no Brasil a esta altura, não é?


Joaquim - Ela foi feita basicamente aqui. A maior parte dos livros eu comprei porque não havia nas bibliotecas; quanto à internet, ainda pertencia ao futuro quando este livro foi escrito. Houve empréstimos feitos a bibliotecas norte-americanas e européias, e houve amigos devotados que copiavam livros e artigos para mim, “no estrangeiro”. O texto de um autor antigo, fundamental para o meu livro – Máximo de Tiro – só existia em edição do século XVIII e chegou a mim, xerocado, por intermédio de uma amiga que trabalhava na biblioteca do Congresso, em Wasghinton.

P - Ou seja, a duras penas. As pessoas de fora nem imaginam, o trabalho...

Joaquim – Não, não imaginam o trabalho que era fazer este tipo de pesquisa no Brasil, há vinte anos atrás. Deve-se levar em conta, também, que muito da dificuldade do trabalho provém do fato de eu ter trabalhado longe dos grandes universidades, não como scholar, mas como simples diletante.

P - Voltando então a Safo: você diz a certa altura que a paixão amorosa no contexto mítico é uma doença, fatalidade provocadora de sintomas no corpo enfermo. E cita Safo dizendo que o amor é doce amargo e que na lírica arcaica era comum apresentar o amor em contexto de oposições, quente, frio, bom, mau. E que Safo de Lesbos conseguiu reunir os contrários e mantê-los suspensos no mesmo ato. “Eros, aquilo contra o que nada podem as máquinas, a techné construtora de armas”, como você diz. Você também acredita que o amor seja uma doença, uma fatalidade, doce amargo, doador de sofrimentos?

Joaquim - Este conceito de amor como doença é uma constante na literatura grega e latina, sobretudo no período helenístico. Num famoso poema de Safo, o amoroso é alguém que desfalece, desmorona literalmente diante da pessoa amada, perdendo, voz e visão, todas as suas forças. Trabalhei muito esta imagem, tentando mostrar que em Safo não existe uma interioridade passional que se expresse por meio de sintomas, no corpo; nela, não há interior e exterior, mas um todo – quando o amoroso se desagrega, é o mundo que se desfaz. Ora, essa imagem vai se transformar num topos, num lugar-comum da poesia greco-latina, que insiste, entretanto, na dualidade, falando sempre de “sintomas”. O contexto se torna, pois, nosológico: o amor é uma doença. Mas eu tentei também enfocar o Eros moderno, e o fiz principalmente por intermédio do Barthes de Fragmentos de um Discurso Amoroso, e de poetas como Baudelaire, Rimbaud, Apollinaire, Eliot, Ungaretti, Lorca.

P - Você diria como Píndaro que você cita: “Eros, monstro que rasteja e não cai na armadilha dos homens”?

Joaquim - Se for feliz, não é amor.

P – Você diz que o universo de Safo ignora os símbolos e cita a poeta: “uma luz espalha-se sobre as águas e os prados. Será a claridade da lua? Ou será o brilho da beleza da amiga?” Uma outra: “Agora! Vinde a mim, Khárites delicadas e vós Musas de lindos cabelos... Khárites sagradas de braços de rosas vinde, ó filhas de Zeus”. Foi isso que te atraiu na obra de Safo, o fato de seus versos serem: “semelhantes a bordados oferecidos pelas mulheres à Afrodite, peças de mil cores brilhantes, dons preciosos vindos de longe, de um país oriental...” poema sendo uma “fita cintilante”, como você constata?

Joaquim - Essa observação é de um estudioso francês, André Bonnard, que não é exatamente um scholar, embora muito erudito. Não sei se esta Safo é uma invenção dele, se é minha: uma poeta que usa a palavra num horizonte no qual ainda não se deu a cisão entre mundo e verbo; um universo no qual a palavra poética instaura o mundo. A poesia é como a fita de mil cores que Afrodite entrega a Hera no momento em que essa se dispõe a seduzir Zeus...

P - Onde está esta fita?

Joaquim - No seio de Afrodite, que está sempre fechado para quem não acredita nela. A poesia é um pouco esta fita. 

P - Fale um pouco mais sobre este segundo livro Variações sobre a Lírica de Safo, que, aliás, tem belíssimas ilustrações de Fúlvia Gonçalves. Qual seria a grande novidade dele?

Joaquim - Variações sobre a Lírica de Safo é uma retomada dos fragmentos de Safo que aparecem em Eros, com algumas experiências adicionais: inclusão de expressões gregas transliteradas, algo como uma tentativa de fazer um “ready-made” gráfico.

P - Você coloca o grego em caracteres latinos e apesar de eu não entender grego- infelizmente, porque acho o idioma deslumbrante, o som é maravilhoso.

Joaquim - Exatamente. Phainomai significa em grego “brilhar”. Phainóles é um manto de cor brilhante, branco ou púrpura. Phainindia, por sua vez, é um jogo em que alguém, fingindo lançar a bola para uma pessoa, joga-a para outra. Não é essa uma boa metáfora para a tradução, se você admitir que você é a pessoa que recebe – ou não – a bola que outra lhe atira? O que importa é o jogo, a astúcia do ato de lançar-não-lançando, o gesto de receber ou de aceitar as mãos vazias, a delicadeza...

P - Os poemas são de uma delicadeza...

Joaquim - Exatamente; essa delicadeza eu tentei trazer para o português, perdendo evidentemente outras coisas. Seria possível, por exemplo, eriçar o texto de palavras novas, e eu conhecemos algumas traduções assim muito boas. O que eu quis trazer para o português foi a cândida pureza deste universo onde a palavra perversão não tem trânsito. A voz de Safo é a voz de uma grande amorosa, para além das divisões, o que inclui a divisão dos sexos. Ela canta sob o império de Eros, que domina deuses, homens e animais – indistintamente. 


A entrevista continua... em outro tempo

P - Joaquim é incrível que  quando minha filha morou no Cambuí muitas vezes quando ia a sua casa, te encontrava no Café des Arts, na Rua Sampaio Ferraz.E a coisa é mais interessante porque a gente se encontra aparentemente ao acaso. Está certo que ela morava do lado do Café e em frente ao teu prédio, mas mesmo assim você não acha quase que chocante porque afinal Campinas já é uma cidade grande? Seria aquela sincronicidade de que Jung fala?E para completar-eu estava querendo te ligar para acertarmos a continuação desta entrevista e te encontro sábado –(dia 27 de janeiro de 2007) no Café onde entrei para comprar pão veja você. O nosso destino é nos encontramos nos cafés da vida? O que, aliás, diga-se eu adoro, viu. Sempre que te encontro fico super feliz. Eu sempre fico besta, como diria Hilda Hilst e penso: nossa como este cara é culto... Aliás, é interessante dizer que justamente neste Café que agora está mais incrementado-eu parava sempre que ia para a tua casa para nossos encontros sobre a tese. 

Joaquim - É no Café des Arts que costumo receber meus orientandos, amigos, pessoas interessadas em discutir um projeto novo comigo, a turma do jornal... 

P – Bem, queria continuar aquela nossa entrevista publicada no jornal de Domingo em novembro de 1992 e te perguntaria então: o teu livro A Musa Adolescente (Iluminuras, 1998, SP) foi o primeiro livro publicado na seqüência? Enfim, sei que o Benedito Nunes o considera um romance, mas você não diria isso. Em que gênero você o coloca?

Joaquim - Você deve ter notado que já interferi loucamente naquela entrevista de 1992, e assim ela ganhou um toque de acronia... ou de transcronia? Ficou muito bagunçado? Agora, sobre A Musa Adolescente: o professor Nunes, que escreveu o prefácio ao livro, o chama de romance, o que me deixa bem vaidoso, pois desde menino eu quis escrever um romance. Mas esse livro tem muito de teatro também, e alguns leitores chamaram minha atenção para isso. Outros perceberam um movimento cinematográfico nos deslocamentos do narrador e houve aqueles que me perguntaram: mas o teu Straton de Sardes não é “inspirado” numa tela de Arcimboldo? Eu detesto, aliás, esse conceito de “inspiração”. Há poesia no livro; não minha é, claro, que não sou poeta: o ponto de partida da Musa... está na tradução daqueles epigramas gregos de que lhe falei na velha entrevista de 1992: a erótica pederástica da Antologia Palatina. Straton de Sardes, o poeta que organizou aquela recolha de versos como que se destacou inesperadamente do seu contexto, e um dia eu o vi, numa tarde de maio, escrevendo diante de um espelho: ele envergava, na ocasião, uma máscara de teatro, extraordinariamente móvel e brilhante: o nariz e as orelhas eram fragmentos de aço ligados às maçãs do rosto feitas de pederneira – pedra que provoca faíscas quando ferida por certos metais; e quando Straton levantava o rosto pensativo do papel, tinha-se a impressão de que uma rápida centelha estava prestes a atear fogo ao maço de torcidas que figurava os bigodes da máscara; e que eles, inflamados, acenderiam o queixo lamparina e as velas de cera enroladas no alto, à maneira de fronte enrugada e convexa. Calor, calor e brilho... O livro todo se fez assim, com imagens que, se você me permitir, eu chamarei de fulgurantes, no sentido latino da palavra: elas me atingiam como relâmpagos. Muitas delas talvez tenham brotado do inconsciente. Williald, que joue le rôle, desculpe... que faz o papel de amante da mãe do narrador na primeira parte do livro, deriva do compositor setecentista Glück, mas tal como foi descrito pelo poeta romântico Hoffman num dos seus livros sobre música. Não que eu tenha pretendido fazer no livro joguinhos intertextuais, de pura forma: muitas dessas figuras me surgiram mesmo assim, de memórias textuais e pictóricas, de um passado de leituras e contemplação de imagens, e foram se misturando a memórias “verdadeiras” do meu passado. Pois minha intenção inicial era recuperar o meu passado “real” e compreendê-lo por intermédio da linguagem, tá? Ora, essa intenção foi inteiramente atropelada por aquelas imagens que caíam do alto, às vezes como estrelas, às vezes como sementinhas venenosas que estragavam as águas límpidas onde batiam, ricocheteando: águas da memória... Sem que eu me desse conta, me vi crescendo em Esmirna, Turquia, na belle époque, à sombra de uma avó que não me lia os clássicos, mas tentava transcrever os sermões que seu genro pronunciava numa igreja evangélica daquela estranha cidade asiática que se encontrava, sem saber, na iminência de uma catástrofe. A avó transcrevia os sermões e os fechava numa caixinha de cristal verde, que retinia ritmando o tempo que passávamos (que as personagens passavam) em nosso (deles) jardim. Um jardim que é uma síntese de vários outros: o jardim de A Porta Estreita, de Gide, o jardim de um romance de Durrell, todos os jardins, menos o do Éden. Ah, e menos o jardim da casa da minha infância, em Minas. O segundo capítulo do livro deveria, em princípio, conter os textos guardados pela avó do narrador naquela caixinha, mas o que o leitor encontra são recordações, totalmente retrabalhadas na pauta da loucura, dos meus tempos de estudante universitário na PUC de Campinas, além de fragmentos da vida de Straton de Sardes, lembranças de Florianópolis, recortes de jornais, falsas novelas fantásticas... e o que mais?

P - Queria falar sobre ele: você me deu o livro, eu li, mas achei como posso dizer muito cifrado, muito parece para um grupo iniciado, porque afinal segundo me disse, ele pretendia ser um diário seu, uma narrativa da sua infância, e vida, mas ele parece tão hermético. Quer dizer ali o leitor vê toda uma narrativa delirante, o diário não tem datas, ou melhor, a data são moedas para Caronte. Afinal qual a chave que abre este livro?

Joaquim - Não há cifras em A Musa Adolescente, só imagens. Na primeira parte, há um momento em que uma personagem explica à avó do narrador, que está tentando desesperadamente transcrever (isto é, fixá-los na escrita) os sermões pronunciados pelo genro na igreja de Esmirna: “Não corrija as imagens dos sermões de Gérard; deixa-as em liberdade!” Engraçado: estou reabrindo esse livro pela primeira vez, desde o dia do seu lançamento: tenho agora a impressão de que cada uma de suas partes... Não, não vou tentar explicar este livro: ou você assume que é um livro de imagens, ou ele não acontece. E, sobretudo, não pense pelo amor de Deus, que é uma “roman à clé”: as personagens dos assim chamados romances com chave são como os nomes-capa da alquimia: na maioria dos casos é impossível destrinçar seu verdadeiro significado. Quando a operação que se descreve é reconhecível, as substâncias usadas podem ser deduzidas; mas como raramente eram utilizadas puras, a identificação torna-se espinhosa. Além disso, há uma dificuldade suplementar: muitos nomes eram usados pelos alquimistas para se referirem a um mesmo sólido ou líquido: o mercúrio é o “orvalho celeste”, mas é também o “azoto”, que é o au-zaüq, nome árabe do mercúrio. Não é?

P - E depois dele, sei que trabalhou sobre Mallarmé, deu cursos, escreveu artigos orientou, está orientando teses sobre o autor e escreveu um livro que vai ser publicado logo mais pela Ateliê, editora de São Paulo.Gostaria que falasse desse período, desta pesquisa..

Joaquim - Mallarmé foi um presente que ganhei de uma de minhas orientandas, Eveline Borges, uma cenógrafa. Ela defendeu na Unicamp um doutorado muito interessante sobre A Tarde de um Fauno, que culminou com o grande Antônio Nóbrega representando o papel-título. O Nóbrega criou um fauno diferente do de Nijinsky, violento, nordestino, maravilhoso. Ariano Suassuna fez parte da banca. Por causa dessa pesquisa, voltei a Mallarmé, que eu já havia estudado longamente, é claro. Mas desta vez procurei a correspondência do poeta, que li com paixão, descobrindo a figura de um jovem poeta franzino, neurótico e tristíssimo que mergulha, com a mulher, na província francesa, trabalha como professor de liceu em Tournon, Besançon e Avignon, antes de ganhar Paris. Aquilo foi uma espécie de descida aos infernos, não em estilo épico – homérico ou virgiliano –, mas melancólico e cinzento: ao contrário de Enéias, que desce ao mundo dos mortos protegido por um talismã, o ramo de ouro, Mallarmé faz a sua catábase, a sua descida, com as mãos vazias. E, ao contrário de Orfeu, ele desce sem saber o que está procurando. Mas volta do mundo subterrâneo, do Inferno, talvez também sem saber disso, com um ramo de ouro: a sua poética. Reli todo Mallarmé, traduzi muitos de seus poemas. Promovi alguns ciclos de conferências sobre ele em Belém do Pará (Instituto de Artes do Pará) e na Universidade Federal de Florianópolis. Passei três, quatro anos mergulhado numa “poética do vazio”, do não-sentido – o contrário, por assim dizer, de Safo de Lesbos. O resultado final é uma livrinho que deve sair em março pela Ateliê, Os Anos de Exílio do Jovem Mallarmé, com prefácio de Pedro Meira Monteiro, da Universidade de Princeton. Ah... Outro resultado do meu encontro com Mallarmé foram as maravilhosas imagens que a artista plástica Fúlvia Gonçalves produziu a partir das minhas traduções do poeta. Parece que serão expostas, em breve, na Galeria de Artes do IA da Unicamp.

P - Você me disse que tem um aluno que está trabalhando na tradução do único livro de Mallarmé que ainda não foi traduzido para o português: Divagations? Poderia falar sobre isso?

Joaquim - Divagations é um livro complexo, que contém textos de gêneros diferentes e inclui passagens “rabiscadas no teatro”, poemas em prosa, reflexões sobre a escrita, reflexões sobre contemporâneos, prefácios... Esses textos abarcam praticamente toda a carreira de Mallarmé, da juventude à maturidade – o estilo varia, transforma-se e se metamorfoseia de forma fantástica. Às vezes, o tradutor roda dois, três dias em torno de uma frase que se recusa à significação. É um texto hermético, difícil – esse, sim, enigmático pra valer. Acho que nossa bibliografia sobre Mallarmé será enriquecida por essa tradução, que está sendo feita por um jovem especialista em língua francesa, Fernando Scheibe, de Florianópolis.

P - Nos últimos anos, segundo me contou está trabalhando sobre o tema da metamorfose a partir de dois pontos: Ovídio, poeta latino que viveu entre o 1º. século a.C. ao 1º. a.C. e que escreveu quinze livros (quinze capítulos na verdade que são chamados livros) sobre as transformações que o universo teria passado desde o inicio até aquele momento e o escritor francês Lautréamont, passando por outros autores que trataram do assunto como Sartre, Kafka, entre outros. Gostaria que falasse sobre isso e por que optou por este tema.

Joaquim -. Antes de falar sobre Ovídio, quero lembrar que estarei publicando, também em março, minhas traduções de três versões do mito de Fedra: a de Eurípides, a de Sêneca, a de Jean Racine. Na verdade são três versões de um mito que gira em torno da paixão de Fedra por seu enteado Hipólito. Hipólito é o nome da tragédia de Eurípides, representada pela primeira vez no século V antes de Cristo, e que conta essa louca paixão. Fedra é o título da tragédia de Sêneca, com o mesmo tema, escrita sob o reinado de Nero. E Fedra é também o título da tragédia francesa de Jean Racine, escrita no século XVII, com o mesmo tema. Os três textos dialogam uns com os outros, na medida em que Sêneca se inspira em Eurípides e Racine parte, na sua versão, de Eurípides e Sêneca.

O livro que vou publicar proximamente pela Iluminuras contém as três tragédias (Hipólito, de Eurípides; Fedra, de Sêneca, Fedra, de Racine). É uma edição com os textos originais (grego, latim, francês) e minha tradução. Contém também, na abertura, um ensaio meu, relativamente longo (100 páginas), em que discuto o tema, suas variações, etc. - um livrão de umas 500 páginas, resultado de uma pesquisa que iniciei há anos e foi financiada pelo CNPq.

Para simplificar, eu e meu editor decidimos colocar na capa, em primeiro lugar, o nome dos autores das tragédias (Eurípides, Sêneca, Racine) e em seguida um título (HIPÓLITO E FEDRA) que englobasse as três tragédias. Em baixo, a indicação de que a Introdução, a tradução e as notas são de Joaquim Brasil Fontes.

Quanto a Ovídio, me lembro, de repente, de que ele está presente na abertura de A Musa Adolescente... Ele está comigo, portanto, há muito tempo, sem que eu me desse conta disso. Agora, retomando a ponta deixada por meus antigos estudos sobre Lautréamont, um mestre das metamorfoses, estou tentando articular meus delírios antigos com os de Ovídio, um poeta latino, deslumbrante, irônico, às vezes cruel nas suas descrições da violência amorosa, pelo menos 

P - E finalmente você falou ainda que está mudando completamente, como assim? Está passando por uma metamorfose e modificando até a sua história?Você estaria porventura delirando? Aliás, disse uma frase outro dia que adorei: “o delírio é que nos salva da realidade, é que nos permite sobreviver ao sistema que ai está”. Também acho isso, precisamos de uma boa dose de loucura para irmos vem frente. Mas aquela loucura saudável, se é que isso existe?

Joaquim - O delírio ajuda bastante. Ah, antes que me esqueça: vou te mandar um exemplar de O Livro dos Simulacros, que está esgotado.

 

Mais sobre ele:

http://www.bv.fapesp.br/pt/pesquisador/92272/joaquim-brasil-fontes-junior/

http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=33013422015

http://www.germinaliteratura.com.br/2009/pcruzadas_analuciavasconcelos_jun2009.htm

http://poesiadiversidade.blogspot.com.br/2009/11/entrevista-com-o-professor-joaquim.html

 

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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