Nelly Novaes Coelho analisa a poesia de Hilda Hilst (1)

Ana Lúcia Vasconcelos


Nelly Novaes Coelho, crítica literária, professora e literatura brasileira em varias universidades do país, no prefácio do livro editado por ela, Poesia (1959-1979)- Edições Quíron Limitada, convênio com o Instituto Nacional do Livro - Ministério de Educação e Cultura/SP/Brasília, 1980, intitulado A Poesia Obscura/ Luminosa de Hilda Hilst e a “Metamorfose” da Nossa Época, diz que “como toda grande poesia-aquela que se faz de uma voz interior autentica e atenta ao exterior-a de Hilda Hilst expressa em seu suceder as transformações do seu tempo. Ou melhor, algumas das transformações mais decisivas da contemporaneidade”.
A primeira, de essência religiosa que ocorre no âmbito das relações Homem/ Divindade e tenta redescobrir a condição humana, as forças terrestres e a própria Morte, como elementos essenciais e justificativos da própria Divindade (Deus Principio Primeiro, Absoluto, Mistério Cósmico, Vida...). A outra, de caráter humano-psíquico-sociológico que corresponde à busca empreendida pela mulher na procura de sua própria imagem e de seu novo lugar no mundo. 
E na poesia de Hilda Hilst ela considera que essas interrogações vitais para o ser humano estão fundidas-o ser humano e a mulher se fundem numa terceira entidade - o poeta, que vai assumir a responsabilidade da tarefa nomeadora atribuída à poesia.

O caminho de dentro
É um grande espaço tempo
...........................................
Mensageiro de ilhas,
Teus pés de pássaro, a mim é que procuram se caminhas.
........................................................................................
Áspero é o teu dia. E o meu também.
Inauguro ares e ilhas
Para que o teu corpo se conheça
Sobre mim, mas áspera
Minha boca móvel de poesia.
Áspera minha noite.

Trajetória Poética do Ser (I) (1963-1966)- pág. 163 do livro citado

Poesia e amor
atraem e fecundam a palavra da poeta

Para Nelly Novaes Coelho a poesia e o amor foram desde os primeiros momentos os ‘polos imantados que atraíram e fecundaram a invenção da palavra em Hilda Hilst’. A intenção renovadora vai se ampliando em círculos cada vez mais largos à medida que ela verticaliza e aprofunda a sondagem da palavra”. Do interrogar atento e lírico voltado para os seres e coisas que tocam o eu-poético, seus poemas vão revelando uma progressiva radicalidade na interrogação. Há uma diferença essencial entre o primeiro e o ultimo interrogar – diferença que vai do eu que se vê em distância, como que de fora, e a de um eu que se assume por dentro-força ou luz que existe e irrompe fulgurante.”
Assim em 1959, pressionada pelo tumulto interior do amor e da poesia que a impeliam e a fazia sentir-se dividida ou dúplice, como diz no poema do Sonetos que não São de Roteiro do Silencio , pág. 258 do livro citado:

É meu este poema ou é de outra
Sou eu esta mulher que anda comigo
E renova a minha fala e ao meu ouvido
Se não fala de amor, logo se cala?

Sou eu que a mim mesma me persigo
Ou é a mulher e rosa que escondidas
(Para que seja eterno o meu castigo)
Lançam vozes na noite tão ouvidas?

Já em 1979 assumindo-se na plenitude de ser Mulher/Poeta, (aquela que está no principio, sempre e sempre) encara com segurança e desassombro a última grande aventura da vida que virá com a morte e diante dela, confirma sua verdade descoberta:

Me cobrirão de estopa
Junco, palha,
Farão de minhas canções
Um oco, anônima mortalha
E eu continuarei buscando
O frêmito da palavra.
E continuarei
Ainda que os teus passos
De cobalto
Estrôncio
Patas hirtas
Devam me preceder.

Em alguma parte
Monte, serrado, vastidão
E Nada,
Eu estarei ali
Com minha canção de sal.

(Da morte. Odes mínimas XXVII, pág 20 do livro citado)

Na sequencia Nelly vai tentar compreender (e levar o leitor a fazer o mesmo) a busca e descoberta deste eu “obscuro/luminoso” que a poeta Hilda Hilst vai vislumbrando ao longo de sua obra: Mulher- Poeta que sente que as respostas aos enigmas que a vida lhe propõe virão da resposta que este “eu radical” lhe der. Daí, segundo a critica literária e editora, “a crescente segurança que sua palavra poética vai conquistando através dos anos”.

Poesia brasileira
nos anos 50

 

Nelly diz que o silêncio era a presença mais forte que se impunha aos poetas na década de 1950 o que não significa que os poetas calaram. Falaram de mil modos. Hilda:

Não há silencio bastante
Para o meu silencio
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silencio bastante
Para o meu silencio (pág. 277 do livro citado)

Carlos Drummond de Andrade:

Tua medida o silencio a cinge e quase a esculpe,
braços do não -saber. Ó fabuloso,
mudo paralítico surdo nato incógnito
na raiz da manhã que tarda
/...../
Integra-nos Orfeu, noutra mais densa
atmosfera do verso antes do canto,
do verso universo, latejante
no primeiro silêncio
promessas de homem , contorno ainda improvável
de deuses a nascer.

Canto Órfico, 1953- pág. (27 do livro citado)

Mesmo sem ter nada de drummoniana, Hilda Hilst, sofre a pressão das mesmas forças e vai ao encalço deste verso-desta chama da qual sua poesia está iluminada especialmente a partir de Roteiro do Silêncio (de 1959) que anos depois, ela mesma vai escolher como o verdadeiro inicio da sua caminhada em poesia.
Foi a própria Hilda, que, em 1967 ao fazer a primeira coletânea de suas obras vai escolhê-lo como o ponto de partida - excluindo Presságio ( 50) Balada de Alzira ( 51) e Balada do Festival ( 55) , livros que na opinião da editora, se já deixam entrever a essencialidade criadora de sua palavra poética, por outro ainda flutuam na indecisão de um canto que, de um lado procurava as alturas aristocráticas e impessoais da poesia como valor absoluto , segundo a regra que regia a geração de 45, e de outro era atraída pela verdade personalíssima de um eu que não encontrava comunicação com o outro, produzindo um lirismo que já não tinha lugar na época.
“Época difícil para a poesia - para a literatura e arte em geral foi a dos anos 50, no imediato pós-guerra, quando surgiu a geração-45 a quem se exigiu o esforço de cantar ou pensar o novo, quanto este estava ainda encoberto no horizonte de um mundo em caos, que lutava para se reorganizar. As conquistas de 22 se deterioravam em repetições estéreis. Portanto sem mestres, sem lideranças válidas, o que se abria para a nova geração era o da Arte vista como forma absoluta e eterna, único gesto válido para expressar e justificar o humano, em beleza e verdade essencial”.
Foi, portanto neste clima estetizante, criado pela geração de 45 que Hilda Hilst começa a se procurar como poeta, atmosfera que Affonso Roberto de Sant’Anna que vai sintetizar isso muito bem na sua obra Musica Popular e Moderna Poesia Brasileira (Rio, Vozes, 1980, 2a. ed. p. 44)
Para Sant’Anna, a atmosfera que definia a época mesclava as elegias de Rilke, as metáforas de Lorca, o verbo de lado de Valery; Laforgue, Apollinaire, a moda de aprender inglês e as lições em prosa e verso de T. S. Eliot, Yeats, Pound, Spencer; o descobrimento inesperado de Portugal via Fernando Pessoa e seus heterônimos, o verso grave de Neruda as experiências com a métrica e rima a volta do soneto, enfim, epidemia de revistas de novos, buscas, pesquisas. E, sobretudo a necessidade de cantar. 
São, portanto esses alguns pontos de identificação com a poesia da época que facilmente podem ser rastreados em Roteiro de Silencio segundo Nelly. “Canto que se quer consciência e resistência em meio ao caos: a resistência de Orfeu (poesia) devido à existência impositiva de Eros (Amor)”.

Amor é calar a trama
É inventar. É magia

Renovação da forma 
e do conteúdo

 

Para ele o drama do poeta nos anos pós-guerra era: como criar verdadeira poesia se o homem não se reencontrava a si mesmo? No Brasil eclodiam momentos vanguardistas-pós Semana de 22, o concretismo, a poesia práxis liderada por Mário Chamie que chega a Portugal a partir de 1962, e na música popular brasileira dos anos 1970 em diante.
É, portanto diante deste quadro que é preciso entender a poesia de Hilda Hilst dos anos de 1959 a 1967: “inicialmente o esforço estetizante dos poetas de 45 para criarem a ‘poesia pura’ em face do desgaste do mundo e dos valores humanos e, afinal, a eclosão das vanguardas que exigiam mudanças radicais de pensamento e de forma”.
Diante dessas forças que se superpunham em nosso panorama cultural, é de se compreender as perplexidades, desencontros, acirramentos e polêmicas que nesses anos agitaram o meio intelectual e artístico. A partir dos anos 60, a ninguém era estranha a nova palavra de ordem: renovação da linguagem, redescoberta formal. Entretanto, as discordâncias quanto ao O QUÊ fundamentaria aquela nova linguagem e aquela nova forma, eram profundas.
Época, portanto de polêmica não apenas quanto ao conteúdo, mas quanto à forma que a nova arte, nova poesia, nova música tomariam , iam em todas as direções e se configurava uma nova confiança no homem e não mais a contemplação ou abulia mas a atuação do homem no mundo.
Ora, se de um lado esta ação impositiva se manifesta por uma afirmação desassombrada da vontade decisória do homem - como na poesia práxis de Mário Chamie, ou na sua grandeza e valor como presença no espaço-tempo da história como na poesia de Marcus Acioly- que seriam o lado masculino, da poesia brasileira, do lado feminino vamos ver a redescoberta do amor. 
Mas agora não se trata do amor lírico de contemplação e contenção - embora o erotismo tenha estado presente na poesia de muitos poetas, mas do amor sensual, que desafia o interdito secular lançado ao sexo pela civilização cristã burguesa, que aparece como dimensão ou um peso diferente.
É, portanto este amor sensual que nesta segunda metade do século, aparece e evolui na poesia feminina- adjetivo inclusive que tende a perder a conotação de leveza, doçura ou gratuidade que tradicionalmente lhe era atribuída para adquirir uma outra mais forte, mais impositiva.
E justamente nesta linha de assumir a sexualidade ainda dentro da relação tradicional lírica do eu- você, a mulher poeta evolui para a imersão vertical do erotismo que vai abrir caminho para um profundo relacionamento: eu o outro, o mundo sendo muitas as mulheres poetas e ficcionistas que nos vem expressando esta descoberta. E Nelly coloca justamente avultando entre elas a figura de Hilda Hilst cuja obra de poesia, ficção e teatro se inscrevem nessa redescoberta essencial.
A luta da mulher pela liberação dos tabus que a tolhiam como indivualidade ou como Ser, que segundo ela começou a principio tímida, a seguir ficou desassombrada e intensa revelando-se nos últimos tempos como esta redescoberta ou reinvenção da mulher realizada por ela própria.
Em Hilda Hilst segundo ela, esta busca se faz inicialmente em duas direções: no plano estético interrogando o ser poeta, e no plano ético sondando o ser mulher se é possível, separar essas duas faces de um mesmo ser.

Roteiro do silencio

Em Roteiro do Silencio esta dupla problemática se equaciona começando por apontar o silencio como a atitude mais valida naquele momento, mas não o silencio total, apenas do eu lírico como diz o titulo das cinco elegias que abrem o volume:

É tempo de parar as confidencias
Teus esgares
Teus gritos Quem os entende?

E mais adiante

E foi assim que o poeta
Assombrado com as ausências
Resolveu
Fazer parte da paisagem
E repensar convivências

E é desse repensar que vai surgindo o inventário da crise em curso no momento:

Em vão a língua se move
Trazendo a tona o segredo

Difícil é o escutar-se
E ao mesmo tempo escutar
Rigores que vêm da terra
Lirismos que vem do mar.

Pág. 283

Nelly Novaes Coelho, 90 anos é critica literária, escritora, ensaísta e tem dezenas de livros publicados. Sabia mais sobre ela nesses links

http://www.jornaldepoesia.jor.br/nelly.htm

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_verbete=5766

http://www.youtube.com/watch?v=mzRiX-0p_N4

 

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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