Sumi-ê de Nydia Bonetti
Os poemas de Sumi-ê, de Nydia Bonetti, inventam um jardim, que não é o zen japonês, mas tenta simulá-lo, com seu rigor de pedras. Surgem, aqui e acolá, uma...
Revista digital de Arte e Cultura
Em Seis personagens à procura de um autor, peça escrita em 1921, Luigi Pirandello, nascido na aldeia com o sobredeterminante nome de Chaos, na Sicília, apontado como fonte de inspiração para Beckett e seu teatro do absurdo, fala da carpintaria do ofício literário. Esse aspecto metalinguístico – o texto discutindo a si mesmo – é o protagonista do enredo. A obra, uma construção sobre um pântano, como ele gostava de dizer, escorregadio como a própria realidade, relata um ensaio teatral invadido por seis personagens que, tendo sido rejeitadas pelo autor, se negam a morrer e tentam convencer atores e diretor a lhes dar uma chance de encenar suas vidas.
Pressionado a ceder diante da força dessas personas que agem exigindo autonomia, arrisca deixá-las sair das sombras, numa atmosfera que mistura o aparente e o real (é dele a frase Assim é se lhe parece), significando transbordamentos existenciais, vozes que querem ser ouvidas, escapar dos bastidores da criação, subir ao palco, chegar à cena, ludibriar a censura (ou ao menos negociar com ela), representando um veto ao controle do imaginário pelo racional. Mais do que múltiplos eus do autor, como sempre quis a crítica, parece tratar-se de um só, pois a metáfora que melhor corporifica essa estrutura psíquica é a da cebola, com suas várias camadas de identificação: assim somos constituídos, por máscaras, na linguagem pirandelliana.
Se a literatura, além de um fenômeno estético, é também uma manifestação cultural basta de antítese entre história e ficção. Há que se interrogar sobre as fronteiras entre elas baseados no reconhecimento de que não existem fatos brutos, até os verídicos são selecionados e submetidos à interpretação subjetiva do historiador (passível de erro, portanto), ambas falam da verdade, seja acontecida ou apenas possível, desejável. Além disso, o criador um dia morre, enquanto a criatura jamais, eternizada no papel. O que está em jogo é a permanência da fantasia em comparação com o real sempre transitório, imprevisível e, às vezes, com tintas de irreal ou surreal.
Mas será que esse traço, a fixidez da personagem, não teria sido subvertido na contemporaneidade? Textos modernos – diferente do que sustentava a narrativa convencional – tem demonstrado que as pistas, os sinais indicativos podem ser enganosos, não é mais preciso se usar e abusar da coerência como um gesso, na sua composição. Amós Oz, em A Caixa preta, desenvolve um romance epistolar onde cartas revelam as diversas e dissonantes versões dos sujeitos envolvidos nos mesmos eventos. Rosa Monteiro, em A Louca da Casa, nos convida a embarcar na aventura de sua vida fornecendo dados que levam a um determinado entendimento, para então, do meio do livro em diante, mudar tudo e nos deixar no ar, enchendo-nos de dúvidas, mas, sobretudo advertindo-nos de que não deveríamos confiar cegamente em todas as informações fornecidas.
Afinal, qual seria a distância entre autor e a personagem? Sabemos que ela nasce de reminiscências, mas também de projeções e desejos, híbrida de figuras que o marcaram em suas leituras preferidas com pessoas com quem se relacionou os traços físicos e psíquicos que as enlaçam. Pode surgir de imagens, lembranças, ou ao contrário, do inimaginável, do intangível, do não alcançável por outra via. Como construí-la? Apenas deixando-se tomar, mesmo não sabendo, a priori, como será que contornos terá passar a conhecê-la no exato momento em que ela escorre da caneta para o papel, como quando somos apresentados a alguém e ainda nada dele sabemos (saberemos, um dia? De nós, ao menos?). Podemos nos enganar como com frequência o fazemos, com sua aparência, suas vestes, seu jeito de falar, embarcar numa suposição desenvolvida a partir de dados que levam a falsas deduções.
Boas balizas ao montar uma personagem seriam: primeiro, suportar a inquietude que antecede a escrita, esperar o tempo de gestação, único para cada caso. Depois mergulhar no imprevisível, com um grau zero de expectativa, liberdade absoluta (pelo menos consciente), sem qualquer amarra moral ou da razão. Proporcionar um espaço mítico onde nasça engatinhe e caminhe, sem interferências, idealizações ou com um mínimo delas, realisticamente falando. Uma relação de respeito: que se molde sozinha e se apresente com todas as contradições. Finalmente, aceitar continuar não saber tudo dela nem quando se termina o texto, deixando ao leitor completar o seu perfil, preencher vazios, lacunas, tirar suas próprias conclusões.
Ana Guimarães é carioca, psicanalista e publica nos seguintes sites:
http://www.gargantadaserpente.com/