Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, um otimista incurável

Por Ana Lúcia Vasconcelos


        Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, pseudônimo que adotou a certa altura de sua carreira de critico para justamente resguardar sua independência, um dos mais brilhantes humanistas que o Brasil já produziu, nasceu no Rio de Janeiro, nas Laranjeiras no dia 11 de dezembro de 1898. Morreu, segundo disse aos amigos “de tristeza”, no dia 14 de agosto de 1983, aos 90, dois anos depois da morte de sua mulher Maria Tereza Faria com quem vivera 63 anos. 

     Esta entrevista realizada pouco depois de sua participação no programa Vox Populi (produzido pela RTC durante anos, uma espécie de embrião do atual Roda Viva) em 1981, foi com certeza uma das últimas que Alceu Amoroso Lima concedeu em sua vida.  Acontece que Tristão de Athayde estava na minha lista de entrevistados para um livro de perfis de escritores, pensadores, poetas, dramaturgos que projeto publicar a algum tempo (na verdade republicar entrevistas e perfis meus publicados nos vários veículos em que trabalhei, em São Paulo e Campinas).

     A chance surgiu quando soube que ele estava na casa de sua filha em Campinas, descansando, se recuperando da morte da mulher. Consegui, depois de vários dias de conversações com a filha, a promessa de duas entrevistas. Em geral faço de duas a três entrevistas para fazer um perfil, com intervalos entre elas. Assim, me encontrei com Alceu Amoroso Lima pela primeira vez no dia 10 de novembro de 1981 e a nossa conversa (não gravada) durou cerca de hora e meia.

   Ele me recebeu na casa de sua filha Silvia Afonso Ferreira, próxima à Hípica de Campinas, no jardim interno. Ficamos sentados num sofá de vime de dois lugares defronte a um imenso gramado, uns chorões ao fundo. A segunda entrevista aconteceu no dia 12 de dezembro do mesmo ano na mesma casa e desta vez gravei a conversa que durou mais de duas horas.

    Não consegui articular mais que um terço das perguntas que havia preparado: ele estava com quase 88 anos e queixava-se de estar cansado. Triste ele me disse: “a minha infelicidade agora é ter perdido minha mulher”. Mas apesar de tudo confessou-se um otimista incurável e citou a frase de uma mística inglesa com quem ele concordava plenamente: “não me permito deixar de ser otimista. As coisas estão bem sempre, apesar de tudo”.

 

    Acho que de certa forma pressenti sua morte próxima. Interessante notar que a entrevista trata basicamente de sua conversão ao catolicismo. Diga-se que não houve qualquer premeditação de minha parte - apenas foram as primeiras perguntas que formulei, sobre sua vida. E incrível coincidência: sua conversão ocorreu no dia 15 de agosto de 1928 e sua morte exatamente no dia 14 de agosto de 1983. Não sei por que estranhas razões esta entrevista foi sucessivamente recusada por diversos editores de vários jornais e revistas de São Paulo: finalmente foi publicada em 2006, 21 anos depois de sua morte no http://cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1373. Posso dizer que foi uma das mais belas experiências que tive na vida: conversar com este homem maravilhoso, culto, inteligente, que sempre teve uma vida privilegiada em termos econômico-financeiros, mas de uma humildade, e de uma simplicidade realmente marcantes.

Suicídio em Veneza? Era a Belle Épòque

    Comecei perguntando sobre o seu quase suicídio em Veneza, fato absolutamente estranho-você leitor que conheceu, por leitura, esta figura maravilhosa, imaginaria o Tristão de Athayde pensando em se matar?- a que ele se referira no programa Vox Populi já citado. (Infelizmente não consegui saber a data exata porque não obtive resposta da TV Cultura sobre isso). Abundante, fértil, se expressando com uma fluidez maravilhosa, Alceu me contou nada menos que sua vida até aquela data, quando uma noite em Veneza teve uma visão da cidade em toda sua duplicidade: metade sombra, metade luz. Aquelas águas paradas, cheias de história - dizem, ele me conta, que ali eram jogados os inimigos do Doge - e ele estava no hotel que fica defronte ao palácio. E de repente a história, a vida tudo pesou nos ombros de Alceu ainda muito jovem, cheio de energia, de cultura, de amor da família, da mãe, das irmãs, do pai (comerciante muitíssimo bem sucedido no Rio de Janeiro) e afinal, ele que tinha tudo, se perguntava sobre o sentido da vida.

    E pensou: por que não se atirar na água e morrer? Mas hoje, recordando aquele pensamento louco, sorri e justifica: afinal era a Belle Épòque, havia uma quase moda de suicídio por amor e ele lia muitos romances também. Daí que esta ideia tinha muito de romanesco, de aventura e ele a abandonou rapidamente. Mas deste questionamento profundo surgiu pelo menos uma mudança na sua vida que ele considera fundamental.

    Àquela altura estava a ponto de ir para a Alemanha onde estudaria na Universidade de Heildelberg. Era recém-formado bacharel em Direito, depois de ter feito o secundário num dos colégios mais rigorosos da época: o Ginásio Nacional, atual Colégio Dom Pedro II. E foi exatamente sua formação demasiado positivista, resultado de duas escolas onde se cultuava acima de tudo a ciência, não a arte, ou as letras, que ocasionou esta dúvida: para que viver?Afinal qual o sentido disso tudo, da vida? E optou não mais por Heildelberg, mas por cursos de Letras na Sorbonne. E rumou para Paris, onde sem saber, veria o rebentar da Primeira Guerra Mundial.

 

Viu nascer um século e morrer uma civilização

    É preciso explicar que era 1914 e Alceu estava como fazia todos os anos juntamente com a mãe e as irmãs passando uma temporada na Europa. “Naquele tempo ir para a Europa era um bom negócio. O cruzeiro valia mais que o dólar. Eu digo sempre que vi nascer um século e morrer uma civilização”, diz referindo-se a um fato engraçado que ficou para sempre marcado na sua memória. Na virada do século - XIX para o XX, seu pai disse, mostrando um crucifixo: olha, está nascendo um século. E Alceu virou-se ingenuamente para procurar este tal século que seu pai dizia estar nascendo. Afinal a frase soou algo estranha para um menino de cinco anos.

    Já o fim de uma época, uma Belle Épòque, que ele viu morrer não foi tão tranquila e inocente. Até hoje ele guarda frases e pessoas que viu naquela Paris em pânico que fugia da guerra para o interior do país. Mulheres e homens estarrecidos com o que viam. Recordando aquele trágico ano, portanto, de 1914, Alceu Amoroso Lima vê uma semelhança com os dias em que vivemos quando estamos também na iminência de uma Terceira Guerra (olha só o que a gente falava em 81 e ele nem viveu o que estamos vivendo, de fato coisas bem mais terríveis, que fazem aqueles, ficarem até bons tempos) e há segundo ele uma quase euforia no ar, uma irresponsabilidade, as pessoas se referem com absoluta naturalidade às armas mais terrificantes.

    Recorda a frase de um jornalista da época que poderia ser dita hoje com total propriedade: “Esta guerra há de ser necessariamente muito rápida, tal é o poder das armas que serão usadas”. Nos dias, meses que precederam a guerra, ele conta, que havia uma grande euforia e ele especialmente vivia a felicidade de ter vinte anos e estar apaixonado (namorava uma jovem argentina que como ele, passava as férias em Paris), e as manchetes mais assustadoras dos jornais parisienses não afetavam os jovens que todas as noites se reuniam para conversar e dançar tango.

       “Mesmo depois da mobilização”, ele conta, “nós continuávamos a nos divertir. Era como se nada estivesse acontecendo. Até me lembro de uma noite em que a concièrge reclamou das nossas reuniões. Provavelmente tinha algum parente no front e a nossa alegria incomodava”. Mas esta alegria não duraria muito. Os acontecimentos se precipitaram e a família Amoroso Lima teve que se mudar rapidamente do hotel onde estava hospedada: o Majestic, que seria depois, na Segunda Guerra Mundial, a sede da Gestapo em Paris.

      Alceu seguiu de trem, um dia depois da mãe e das irmãs, em direção a Bordeaux. Com ele, na cabine, iam duas jovens e um senhor, o pai delas. Ao cruzarem um trem de feridos as moças começaram a chorar. Alceu deitado no chão do trem que ia lotado, nunca esqueceu a frase que o senhor articulou pálido: “ce sera comme 1870”. Era o fim de uma civilização e o jovem Alceu Amoroso Lima sentia seu impacto na carne. Quem sabe a vontade do suicídio não teria sido uma premonição do que viria?

A conversão lenta

 P. - Para começar, gostaria que o senhor contasse como se deu a sua conversão ao catolicismo?

Alceu Amoroso Lima - São Paulo diz que há dois tipos de conversão, para simplificar: a conversão lenta e a conversão violenta. Há uma conversão como a de São Paulo: violenta que passa de uma pessoa que é conscientemente perseguidora do Cristo, negadora de todas as verdades judeu-cristãs e que os gregos chamam de metanoia. E há uma conversão lenta, a transformação de um estilo de vida, de uma concepção, para outro estilo de vida, outra forma de concepção. A minha conversão foi evidentemente lenta. Eu nunca tive uma educação religiosa muito profunda, a minha família era religiosa, mas de uma religiosidade bastante superficial. Posso dizer que até vinte anos o problema religioso não me interessou. Por isso costumo dividir minha vida em três etapas: a etapa literária, a etapa de ideias e a etapa de fatos, acontecimentos. A etapa literária vai até os vinte e poucos anos: só a literatura e a estética me interessavam. Aí a Guerra de 14 foi um problema mundial que afetou profundamente a mim e a minha geração de um modo muito radical, porque a gente vivia mesmo a Belle Épòque no sentido de gozar a vida, gozar a vida esteticamente, ideologicamente, filosoficamente, no sentido de preocupação de ideias, não no sentido de ir fundo dos problemas. A guerra provocou realmente uma ruptura. Eu estava em Paris e diante daqueles fatos trágicos, de vida ou de morte, da morte de uma civilização de um país, de uma geração, da minha geração que eu julgava isenta de ter que fazer opções tão dramáticas. Voltei pra o Brasil, fui me ajustando até encontrar uma pessoa que foi o Jackson de Figueiredo, que promoveu a minha conversão. Neste sentido a verdade contida na essência do cristianismo de que a Verdade é uma pessoa: Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida, diz o Cristo, ou seja, este sentido personalista de que há na Terra alguém que representa o Caminho e a Verdade na sua integridade, para mim começou a se apresentar.

Precisamos nos abrir para a hora da graça

P. - E como o senhor conheceu o Jackson de Figueiredo, enfim, eram amigos? Conte tudo.

Alceu - Ele chegou ao Rio em 1918 precisamente com este fato: a guerra. O mundo tinha passado por quatro anos em que havia ocorrido uma transformação e a cada dia se revelavam para nós brasileiros duas coisas: de um lado a necessidade de encarar a morte como sendo um elemento capital da vida. E de outro a urgência de olhar o nosso tempo, o nosso país. O problema universal de atender ou não o apelo de Deus, de saber de Deus e da verdade, e por outro lado a Pátria. E Jackson de Figueiredo de certo modo representava tudo, por que ele foi nacionalista integrado, violento e ao mesmo tempo convertido igualmente violento. Ele era de tal modo anarquista, rebelde que, quando menino, os seminaristas não podiam passar em frente da sua casa em Aracajú que ele atirava pedras, fazia o diabo. Ele era terrível. Então, sendo essa pessoa que representava para mim realmente como que a encarnação da transmissão da graça de Deus, porque só se converte pela graça de Deus-não é uma formação individual. Este é realmente o grande mistério: a graça é gratuita, ela vem ou não vem e a gente não pode se queixar. Agora é preciso fazer um estudo para nos abrirmos para a hora da graça, que ninguém sabe quando é. Não sabemos a hora da morte, a hora de Deus, nem a hora da graça. A hora de Deus é aquela em que os fenômenos da nossa ação se equivalem com a Providencia Divina. A hora da graça é aquela em que o nosso eu, nossa disponibilidade se coloca abertamente para o olhar de Deus, para o apelo de Deus...

P. - Foi então que o senhor se encontrou com o Jackson...

Alceu - Pois é aí me encontrei diante deste rapaz, deste Jackson, recém-chegado ao Rio e parece que tinha um pouco a influencia de um filósofo espiritualista: Farias de Brito, quer era seu concunhado. Imediatamente nós divergimos: ele era um autoritário e eu um liberal. Ele começou a me atacar através de artigos, ele antimodernista, eu modernista. Ele pela autoridade, eu pela liberdade, eu defendendo e ele atacando o João Ribeiro que era um grande humanista sergipano. Depois de vários ataques pelos jornais, um dia ele me escreveu uma carta que eu respondi. Na segunda carta nós verificamos o seguinte: vamos deixar a política de lado e passar a discutir coisas mais sérias, vamos ao cerne dos problemas. Então, durante cinco anos, de 24 a 28 trocamos cartas-as deles estão publicadas com atenuações, porque ele era muito violento. E ele tem um livro sobre este problema religioso que, mesmo as pessoas não religiosas deveriam ler porque é um livro patético. Ele expõe a sua visão, dos fins últimos do homem e que é uma visão de uma pessoa que passa do anarquismo para o cristianismo. Então tivemos este longo debate: eu dizendo que achava que a verdade estava justamente no máximo, na procura da verdade. E ele, defendendo a existência de uma verdade e a nossa incapacidade de penetrar nesta verdade e então esgotando os limites da razão, para nos entregarmos voluntariamente à revelação da fé.

P. - E qual foi a campainha de disparo para esta mudança de visão de mundo?

Alceu - Em primeiro lugar havia este fato: eu ter visto como se operou a mudança numa pessoa da minha geração. E ao mesmo tempo, eu vinha sentindo um esgotamento da razão. Sentia que a razão não esgotava a lógica, a matemática, muito menos a quantidade, muito menos a pura evolução dos acontecimentos. Então eu senti que havia dentro de mim uma descrença na razão. Tanto que passei um período que me interessei enormemente pela loucura, considerei a loucura um caminho para se chegar ao conhecimento da verdade. E reuni uma biblioteca inteira sobre a loucura e sobre os povos primitivos, os índios. Escrevi até um livro sobre isso: a tese A Economia Pré Política. Então esta decepção com a razão me preparou de certa forma para esgotar os caminhos lógicos para articular a verdade, para aceitar a existência do mistério. Através da sombra da razão chegar à luz da fé. Através da complicação da inteligência, chegar à simplicidade da humildade, à sabedoria do povo que intui a verdade. Então foi o encontro do homem que tinha passado pela experiência da metanoia, a transmutação violenta. Eu, de temperamento completamente diverso, um temperamento puramente estético, calmo, com horror à violência, educado na ironia francesa, no ceticismo e que um dia, me senti capaz de aceitar com humildade uma revelação como sendo a luz que vem no fim do túnel. Foi então que no dia 15 de agosto de 1928- meses antes, ele sentiu a minha preparação e me encaminhou para o padre Leonel Franca com quem eu tive três meses de conversa de caráter teológico, eu passei da descrença da Verdade para a crença da Verdade. E a crença na Verdade, não através da razão, da inteligência, mas através da intuição, do sentimento. Por exclusão eu cheguei a uma coisa mais simples, que inclusive, une o sábio ao ignorante, o homem rico, poderoso, ao pobre, que diante disso se curva à bondade, à caridade, à fraternidade, ao equilíbrio que eu considero a essência do cristianismo.

A Verdade é uma responsabilidade

P. - O senhor afirma em artigo do livro A Experiência Reacionária que se preocupa mais com as eras futuras. Poderia explicar, por que isso?

Alceu - Exatamente, me preocupo mais com o futuro do que com o passado. É interessante que quando me converti me preocupava mais com a estabilidade das coisas, porque tinha passado minha mocidade na reminiscência das coisas, o movimento das classes sociais, o movimento do próprio diálogo dos homens que nos leva realmente ao futuro da humanidade, no sentido da vida. Cada acontecimento da vida vai em relação a uma definição final que é o que a Igreja Católica chama de Juízo Final, parusia, que é a volta do Cristo, a revelação total da Verdade. Sinto que a procura de Deus e de todas as lutas humanas, o debate entre o Bem e o Mal, entre o ódio e o amor, tudo isso é uma convergência que vai no sentido do futuro. Para mim, a minha conversão não foi um descanso num porto seguro. Ao contrário, foi uma partida para um debate com as águas do oceano, um debate com as tempestades, um debate comigo mesmo, uma entrada na ação, para uma pessoa como eu, que tinha sido até então um sibarita, no sentido de gozar a vida, sobretudo no sentido das ideias. Enfim, foi a descoberta da responsabilidade das ideias. A Igreja realmente é alguma coisa em marcha, este é o sentido da Fé. A fé não é um descanso, a Verdade não é um prêmio de loteria que o sujeito ganha e pronto, passa a viver em água fresca e sombra. Não, a Verdade é uma responsabilidade. Então o futuro me pareceu muito mais interessante. E isso não quer dizer um desligamento do passado. O passado passa a ser presença no futuro. O futuro é uma antecipação que nós temos que viver numa utopia. Veja os dois mais sutis teólogos brasileiros que são os irmãos Boff. Um deles passa seis meses ensinando teologia na Universidade do Rio de Janeiro e seis meses entre os índios. Ou seja, procurando o sentido da verdade mais elaborada e a verdade do homem primitivo. Este contato com o que há de mais avançado, e o que há de mais primitivo é que eu acho apaixonante dentro da Igreja. O cristianismo é uma passagem de uma promessa do Messias para a realização dessa promessa através da vivencia no tempo e uma revelação do que é realmente o sentido da vida e que o Cristo é o sentido do amor, da amizade, da fraternidade. Então o cristianismo é o sentido de que se encontrou alguma coisa, mas que este encontro não é um descanso, mas uma responsabilidade nova.

P. - Gostaria que o senhor dissesse sua posição em relação a este problema tão discutido que é a castidade. O Fernando Gabeira, por exemplo, que tem sido uma pessoa que tem assumido publicamente como uma pessoa religiosa, disse recentemente que discordava da postura da Igreja no que concerne a esta questão do sexo. Como o senhor vê esta problemática toda da castidade, do confinamento em conventos, sendo que o sexo é uma coisa natural?

Alceu - Acho esta vocação a coisa mais pura do mundo. A vocação de que se realmente possa haver santificação através da renuncia daquilo que é a coisa mais natural do mundo que é o sexo. O sexo é ao mesmo tempo a base da vida, e sendo ele o mais importante dos sentidos humanos, é também a possibilidade de desencadeamento de dois caminhos: o caminho do Bem e o caminho do Mal. O poder, por exemplo - é muito justo que haja uma autoridade, mas o poder é uma coisa perigosa. Pois bem, o sexo é mais perigoso ainda. Ainda outro dia recebi uma carta de um rapaz católico que me perguntava sobre a indissolubilidade do casamento. Veja bem: quando a Igreja diz que a monogamia é um bem, ela diz também que quando não há amor numa família, não pode haver paz, felicidade. Quando faltam, no sacramento do matrimônio algumas condições para este sacramento ele pode ser anulado, abolido. Portanto a indissolubilidade é relativa. Não quer dizer que não possa haver separação, quando por motivos os mais diversos, houver mudanças das circunstâncias que levaram à coabitação. Falando agora de conventos, eu, por exemplo, tenho uma filha que é abadessa de uma ordem de religiosas aqui de São Paulo, que é a pessoa mais alegre do mundo. Ela é beneditina, foi ela quem falou ao Papa quando ele esteve aqui no Brasil. (Esclareça-se que foi a primeira vez que o Papa João Paulo II veio ao Brasil.) Realmente é uma opção muito séria, muito grave.

P. - Além da crítica literária o senhor se aprofundou no estudo da economia, sociologia, filosofia. Fale um pouco das suas tendências profissionais.

Alceu - Eu realmente nunca cheguei a compreender a profissionalização. Sou um individuo que tende ao amadorismo e não ao profissionalismo.Eu tinha até um amigo meu americano que me dizia: doutor Alceu, porque o senhor em vez de publicar tantos livros, não faz como eu. Ele de cinco em cinco anos publicava uma nova edição de um Tratado de Direito Internacional. Eu dizia: cada um com sua vocação. Como não sou poeta, comecei com a crítica literária onde procurava a beleza nos textos dos outros. E da literatura tive que passar para a economia, a sociologia. Dava aulas, um tempo fui advogado, tentei a diplomacia e durante algum tempo fiquei na direção de uma companhia que meu pai tinha fundado. Mas a maior parte do tempo em dediquei ao ensino do qual gostava muito. Lecionei na Universidade Católica, na Universidade Federal e no Centro dom Vidal. No Centro Dom Vidal eu fundei a Coligação Católica Brasileira, composta do Instituto Católico de Estudos Superiores, que foi o gérmen da Universidade Católica, de uma Associação Operária e de uma Associação das Bibliotecas Católicas, uma série de coisas que saíram do Centro dom Vidal. O Instituto Católico de Estudos Superiores foi criado em 1932 justamente com o desdobramento do Centro Dom Vidal. Aliás, este Centro, fundado pelo Jackson Figueiredo era dedicado a conferencias de cunho amadorístico. Quando assumi, depois da morte dele, criei todos estes desdobramentos. Eu sentia a necessidade de formalizar certas especializações. Uma associação para os juristas, outra para médicos, etc., e uma Escola Católica de Estudos Superiores. Em 1941 nasceram as primeiras faculdades católicas. Em 41 nasceu a Faculdade Católica do Rio de Janeiro e depois vieram as de Porto Alegre, de Belo Horizonte, de São Paulo. Todas nasceram do Centro Dom Vidal. Até então não havia cursos superiores. Havia uma cadeira de Literatura que eu assumi, uma de Sociologia, uma de Matemática, uma de Biologia. Os dominicanos estavam presentes Centro Dom Vidal. Foi com eles que conseguimos fundar este Instituto Católico de Estudos Superiores. Os dominicanos franceses ensinavam Filosofia e Teologia, e os brasileiros ensinavam Literatura, Sociologia e Biologia.

Mosaico de pequenas virtudes

P. - A história comprova que a Igreja sempre esteve atrelada ao poder. Atualmente e desde o golpe de 64 a Igreja brasileira tem sido oposição ao sistema, ao estado totalitário. A que o senhor atribui isso?

 Alceu - Sim esteve sempre atrelada ao poder. Agora está desatrelada. Agora, não tenhamos a ilusão de que vamos modificar o mundo de um momento para outro. Estamos diante de pessoas que querem modificar o mundo violentamente e através do poder. Não devemos ter ilusão, inda mais num país como o nosso que vive realmente no Terceiro Mundo, não vamos viver com o desejo de ser uma grande potencia, inda mais num país como o nosso que vive realmente no Terceiro Mundo. Não vamos viver com o desejo de ser uma grande potencia que fica mínimo diante da onipotência de potencias como os Estados Unidos e a Rússia. É preciso ter consciência que conseguiremos alguma coisa pedra a pedra, sem a ilusão de mudanças rápidas. É viver no presente com a experiência do passado, mas focando no futuro.  Esta visão do futuro representa uma tentativa de melhoria. Há os pessimistas, aliás, o terrorismo é a expressão do pessimismo máximo. Nós estamos realmente num momento dramático, passional em que temos de arrancar de todo o nosso sofrimento, a capacidade de reagir dentro das nossas possibilidades. Conhecer nossos limites, ser limitado sem ser medíocre ser equilibrado sem ser conformista, sem ser morno. Deus vomita os mornos. É prova maior de liberdade sofrer uma derrota que alcançar uma vitória através de compromissos Devemos ter o amor da dignidade, da honra, para saber que vivemos num mundo em que o bem e o mal estão confundidos em nossas próprias almas. Ficarmos convencidos que nós não somos deuses, não somos anjos, somos seres humanos. Nós temos a responsabilidade de saber discernir o que é bom e o que é mal, sem chegar ao farisaísmo. Saber que vivemos sempre situações mistas. O que é a democracia? É a confiança no povo. Mas quando o povo ama as ditaduras? Veja as fotografias do Irã (Isso era manchete no mundo inteiro, naquele ano de 81), o Khomeini julga que é santo e as pessoas tem um olhar de ódio. Cada um de nós deve ter dentro de si o amor à perfeição. É neste sentido que a Igreja representa realmente um equilíbrio entre a ciência e a ignorância, que é a sabedoria. A sabedoria que está para lá da ignorância e para lá da ciência. Cada um de nós deve ter o amor da perfeição. Saber que devemos querer o máximo, mas saber que o máximo nunca atingiremos. A santidade é um mosaico de pequenas virtudes. Os grandes gestos são raros. No mais, a vida é feita de pequenos gestos anônimos. Temos que adquirir o sentido de sermos o menos imperfeito possível. Isto já é uma grande conquista.

 Para saber mais sobre:

 http://www.cdpb.org.br/jackson_figueiredo.pdf

http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=69&sid=359

http://www.youtube.com/watch?v=dy0893I0OrI

 

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