Sumi-ê de Nydia Bonetti
Os poemas de Sumi-ê, de Nydia Bonetti, inventam um jardim, que não é o zen japonês, mas tenta simulá-lo, com seu rigor de pedras. Surgem, aqui e acolá, uma...
Revista digital de Arte e Cultura
O que se pode esperar e exigir da literatura depois dos desenvolvimentos pelos quais passou durante o começo do século XX e depois de duas Guerras Mundiais? Os movimentos literários, as questões estilísticas e temáticas de toda ordem parecem tem sido exauridas. Seria, por assim dizer, o mesmo problema enfrentado pelas artes plásticas depois do romantismo e de seu extremo oposto, o dadaísmo. Ou seja, como podem ainda se dar esses fazeres artísticos, humanos? E, talvez o que carregue mais aporia o que há ainda para se dizer, na literatura, depois disso tudo e ainda, após Hiroshima e Nagazaki, quando, “a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”, para citar Adorno e Horkheimer. E é justamente nessa atmosfera pós-hecatombe que se situa a maior parte da produção de Samuel Beckett, notadamente a produção em língua francesa, quando o autor abandona a língua natal – o inglês –, para se livrar do extremo manejo que tinha desta, para escrever em francês, justamente para escrever com menos recursos, afinal, vive-se aí num mundo de “menos”. Ademais, caso segue-se na exuberância da língua inglesa, pouco poderia acrescentar ao legado de Joyce.
Notadamente, esse trabalho “com menos” é a marca de Beckett. A escassez do quê dizer leva à escassez do como dizer. Assim, tem-se a pobreza do enredo e das palavras. Como não poderia deixar de ser, ausência total de sentido. Os personagens beckettianos são quase todos eles, a partir desta fase, vagabundos (a não ser em Como é, onde não se tem sequer personagem, mas apenas uma “voz quaqua” que fala). Contudo, certo tipo de vagabundo, sempre velho, decadente, aleijado, enfermos, às vezes sem poder andar, vegetativos, mas, ainda com uns resquícios de alta cultura européia, que percebemos em citações ligeiras, em passagens banais, como essa referência a Aristóteles: “não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos”.
E, assim como os personagens, as narrativas das quais fazem parte ou as quais narram – é comum, em Beckett, os personagens narrarem histórias dentro da história (logo ver-se-á isso mais detidamente).Essas narrativas, portanto, também são pobres, aleijadas, por assim dizer, cambaleando sempre sob um substrato parco, as quais tentam sempre exaurir com seus recursos pobres, mas suficientes para manter o ato de narrar algo .Não podemos falar propriamente de manutenção do fluxo ou da estrutura narrativa, uma vez que estas também são aleijadas, e acabam, por vezes, fenecendo.
Assim, o que subsiste nas obras beckettianas é uma teimosia em narrar algo, mesmo que esse algo seja difícil de ser narrado, tanto pela precariedade do algo narrado quanto da linguagem narrativa. Inclusive, dada a impossibilidade do seguir-se narrando por causa da pobreza de enredo, o autor não se furta em multiplicá-lo para que, desta forma, possa continuar o ato narrativo: é o que se vê no capitulo final de Como é, intitulado Depois de Pim.
O que se extrai disso tudo é certa “necessidade” de narrar, de dizer algo, mesmo que esta tarefa seja difícil e, quiçá, impossível em sua completude; de qualquer forma, nunca se chegará a uma satisfação plena, e mesmo não é possível plenitude em Beckett: não há qualquer possibilidade de redenção. Uma empresa fadada ao fracasso, como o amor sartreano. Pode-se remeter esse ato teimoso e constante do narrar que não se completa a uma tarefa se Sísifo, e não seria errado pensar por este viés. Portanto, estabelece-se assim a implicância de se repetir o ato narrativo, como se este fosse a única coisa a se fazer (di)ante (d)o mundo; para um escritor é bem possível que o sejam, mas, para os vagabundos beckettianos os quais são também narradores não é tão simples encontrar o apreço pela narração côo algo inerente a si. De qualquer forma, em ambos os casos, não se constitui em condição necessária. Então, qual seria o motivo? Nas novelas O expulso e O calmante, as quais integram o livro Novelas e em Malone morre, percebe-se esses vagabundos que contam histórias.
O personagem de O expulso termina dizendo “Não sei por que contei essa história. Poderia muito bem ter contado outra. Talvez outra hora poderei contar outra. Almas vivas verão que elas se parecem”. Nota-se, destarte, certo desprezo do personagem, e por que não dizer do autor pelo fato narrado? Parece mesmo que o que mais importa é o ato de narrar. Em O calmante, diz o vagabundo: “Vou, portanto me contar uma história, vou, portanto tentar me contar uma história, para tentar me acalmar”. Tem-se aqui outro adendo no que tange a questão da linguagem e narração: o personagem propõe a contar uma história para SI, ou pelo menos tentar; ou seja, não temos aqui qualquer intenção por trás do “contar a história”, e esta servirá pura e simplesmente para entretê-lo, por assim dizer, ou, como se lê no texto, acalmá-lo; destarte, o que importa para o personagem é narrar e narrar para si, mesmo que não consiga.
Já em Malone morre, diz Malone: “Acho que vou ser capaz de me contar quatro histórias, cada uma com um tema diferente. Uma sobre um homem, outra sobre uma mulher, uma terceira sobre uma coisa e, por fim, uma sobra um animal, uma ave provavelmente”. Assim, enquanto o personagem espera a morte, ele vai contar também para si, algumas histórias ou pelo menos pretende; como se verá, essa tentativa se acabará com a própria impossibilidade narrativa, seja por causa da linguagem, da estrutura, de quem narra etc. Contudo, sempre se quer narrar, e isso é o capital.
Também nas obras teatrais persiste esse ranço de teimosia do contar, do dizer. É o que fazem Didi e Gogo enquanto esperam Godot; ou ao que se dedica Hamm, em Fim de partida, ao contar sempre a mesma história, cada vez pior, à Clov, a qual vem a ser a própria história de como os dois se encontraram; ou ainda a mesma piada que Nagg conta a Nell, enquanto eles estão em latas de lixo, 6ainda que não se lembre da anedota. Num mundo pós-apocalíptico, num day before, como fala Paulo Leminski a respeito do universo beckettiano, enquanto não fazem nada, esperando a hora da papa, do remédio, ou que o mar engula tudo. Desta forma, percebe-se uma concepção nada pretenciosa acerca da narrativa de uma história: esta serve, muito simplesmente para passar o tempo. Literatura, aqui, é passatempo.
Não se pense de forma depreciativa: passa tempo como o que se tem a fazer enquanto se espera o fim; atitude esta que mantém a consciência fixa no mundo, e não alhures. E, dada a impossibilidade de qualquer redenção ou resolução, trata-se, portanto, de uma atitude ascética às avessas. O anti-ascético permanece no mundo através de jogo lúdico, não no sentido schilleriano, mas no sentido mesmo da brincadeira, e por vezes Beckett expressa isso em Malone morre, quando Malone chama o seu viver e o seu contar história de “brincar”. Desta forma, a literatura, o narrar, é a pedra que esses Sísifos-vagabundos carregam, sabendo que ela sempre irá rolar abaixo, e que sempre fará nova tentativa. E mesmo seja essa a própria tarefa de Beckett. É inevitável pensar em Sísifo como a figura absurda par excelance.
Então, narra-se não por haver algo digno de narração, ou porque os instrumentos para esta possam ser fins em si, mas, sim, por uma estranha necessidade que persiste e à qual é preciso dar vazão; e a necessidade não é de se comunicar com outrem, uma vez que os personagens contam histórias para SI, e também dado o fracasso de se estabelecer a comunicação. A necessidade é de passar o tempo, até que ele nos passe. E, posto tudo isso, há ainda outro viés desse querer narrar: o prazer.
Pode-se perceber esse outro matiz quando Malone, no começo do livro, diz “Elas [as histórias] vão me dar prazer, algum prazer”. Desta feita, além de fazer passar o tempo, o narrar de uma história pode gerar algum prazer. E, estabelecendo-se com Epicuro e Hume (para citar alguns), que a vida consiste em aumentar o prazer e diminuir a dor; ainda, dada as características sorumbáticas dos personagens beckettianos, pode-se exacerbar a possibilidade de o ato de narrar uma história gerar prazer, uma vez que, assim como no passar o tempo, é a forma encontrada para dar prazer a SI.
Cabe ainda notar que o sexo é quase sempre complicado ou impossível (quando não sado-masoquista, em Como é). O que aumenta ainda mais a leitura da literatura como fonte de prazer. Contudo, e isso também se dá com Malone, é possível sentir prazer chupando uma pedra; destarte, temos algo tão banal ao lado de algo possivelmente tão grandioso podendo acarretar a mesma sensação. Donde, ou eleva-se a consideração da pedra ou rebaixa-se o valor da literatura, da arte em geral, portanto. Fiquemos com a segunda opção, é mais salutar.
Posto tudo isso, não se infere que a arte é a instância superior que regozija o homem; é apenas uma maneira. E aqui esse prazer pode ser extraído porque a arte é decaída, dado tudo o que foi colocado. Parodiando André Breton ao final de Nadja: “A arte será DECADENTE ou não será arte.”
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