Antunes Filho revolucionando o teatro brasileiro com Macunaíma e Nelson Rodrigues o Eterno Retorno

Ana Lúcia Vasconcelos


Os críticos de teatro de São Paulo ficaram eufóricos com a noticia da montagem de Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues com adaptação e direção de Antunes Filho com o Grupo de Teatro Macunaíma em 2008. Consideraram o evento uma injeção de ânimo para os que consideraram a temporada teatral de 2007 meio “morna” com raros destaques. Mas as atividades do diretor e seu grupo CPT como sempre estão intensas, especialmente neste ano em que comemoraram vinte anos de vida. Em janeiro de 2008 Antunes foi com A Pedra do Reino, adaptação de duas obras de Ariano Suassuna Romance D'a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e a História d´O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão - Ao Sol da Onça Caetana, montada em 2006, do SESC Anchieta para a unidade de Santana. Aliás, este era um sonho antigo do diretor: montar no teatro a obra do autor nordestino a que ele se refere nesta entrevista e que se tornou realidade depois de vinte anos.

No dia 15 de fevereiro de 2008, estreou no mesmo SESC Consolação o segundo texto criado pelo círculo de dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) de Antunes Filho: O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, da mineira Silvia Gomez, do mesmo grupo que apresentara em 2004 o belo espetáculo Canto de Gregório. Como na experiência anterior, Antunes participou do processo, ajudando a burilar o texto, sugerindo cortes e caminhos, mas a direção foi de Eric Lenate, outra jovem cria do CPT. E no dia 19 de janeiro de 2008 estreou no SESC Consolação a nona edição do Prêt-À-Porter que marca o décimo aniversário do projeto, iniciado em 1998 como síntese da metodologia de interpretação desenvolvida por ele. Ainda em 2008 monta Senhora dos Afogados e nos anos seguinte: Foi Carmem e A Falecida Vapt-Vupt em 2009; Lamartine Babo e Triste fim de Policarpo Quaresma em 2010; Toda Nudez Será Castigada em 2012 e “Nossa Cidade”em 2013.

Daí que a republicação dessa matéria que fala da primeira montagem do Nelson Rodrigues pelo Antunes Filho no teatro, pode ser esclarecedora do seu método de trabalho e da sua opção pelo polêmico autor que revolucionou a dramaturgia brasileira. Escrevi esta matéria- na verdade duas entrevistas: uma com o Antunes e outra com dois de seus principais assessores Amália Zeitel, à época mestra em teatro pela USP, e o ator, jornalista e assistente de direção José Ferro, no final do ano de 1981 durante a temporada de Nelson Rodrigues o Eterno Retorno, noTheatro São Pedro, em São Paulo, sucesso de público e critica, para o Suplemento Culturade O Estado de São Paulo, mas ela só foi publicada anos depois no Suplemento de Cultura do Correio Popular de Campinas no dia 10 de julho de 1983 e em 17 de julho de 1983 respectivamente.

Como estou contando um pouco da história das entrevistas ou perfis que estou republicando, por serem momentos importantes da cultura brasileira, quero registrar o que aconteceu quando, depois de ter combinado a entrevista com o Antunes e confirmado minha ida ao teatro para ver a peça fiz uma coisa que nunca fiz na minha vida: cheguei atrasada no teatro. Daí que quando finalmente entrei no saguão o Antunes estava aflito me esperando e disse: mas a peça já começou! E eu ali me desculpando, mas tudo isso rolando assim: enquanto ele falava isso, ele me conduzia para a escadaria que levava para o balcão e dizia para os funcionários do teatro: “arrumem um bom lugar para a Ana Lúcia”. E eu fui subindo meio de costas, olhando para ele, que apontava a mão na minha direção e repetia esta frase: e afinal cheguei lá em cima... E os funcionários também olhando a cena, e eu subindo e ele la embaixo e ninguém fazia nada...quer dizer ninguém se abalava para me arranjar um bom lugar.
E eu pensava: não precisa, eu mesmo me arranjo... Quer dizer, arranjo um bom lugar. Mas eis que quando me viro, para finalmente entrar no teatro vejo o Antunes lá em cima também. Imagino que subiu a escada de quatro em quatro degraus porque a cena se passou conforme descrevi e foi uma coisa super espontânea e só me dei conta depois de um tempo. Porque uma coisa é certa: se você juntar uma atriz ou não e um diretor ele faz uma cena mesmo, inda mais se estivermos falando de Antunes Filho. E afinal ele me arranjou um lugar, eu sentei e entrei em estado de graça, porque a peça era deslumbrante como diria Hilda Hilst, em preto e branco, o palco nu, algumas cadeiras, e três mesas, e um bando de atores maravilhosos.

 


Diretor de muitos sucessos: A Megera Domada, A Cozinha, Peer Gyint, Em Família, Corpo a Corpo, Black Out, Quem Tem Medo de Virginia Woolf, Antígone, Medéa, Canto de Gregório, A Pedra do ReinoO Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade, Prêt-À-PorterSenhora dos Afogados ; Foi CarmemA Falecida Vapt-Vupt , Lamartine Babo eTriste fim de Policarpo Quaresma, Toda Nudez Será Castigada , e “Nossa Cidade” em 2013, Antunes Filho, 84 anos, fizera há cinco anos (em relação ao ano desta entrevista) uma opção fundamental em sua carreira.

 Com a montagem de Macunaíma, de Mário de Andrade, em 1978, adaptação do Grupo Pau-Brasil e Jacques Thieriot, direção de arte, cenografia e figurinos de Naum Alves de Souza, rapsódia e direção musical de Murilo Alvarenga, produção Grupo Pau Brasil com: Ângela de Castro, Beto Ronchezel, Carlos Augusto Carvalho, Clarita Sampaio, Deivi Rose, Guilherme Marback, Ilona Filet, Isa Kopelman, Jair Assumpção, João Roberto Bonifácio, Luiz Henrique, Manfredo Bahia, Mirtes Mesquita, Nazeli Bandeira, Salma Buzzar, Theodora Ribeiro, Whalmyr Barros, Walter Portella, Wanda Kosmos, ele não apenas revolucionou sua vida, mas foi aclamado por críticos da Europa e Estados Unidos como criador de uma “nova onda” no teatro internacional.
Se em Macunaíma ele havia feito uma sondagem da mitologia do homem rural brasileiro, em Nelson Rodrigues o Eterno Retorno, Antunes e seu grupo perscrutaram as profundezas abissais da alma, não apenas do homem urbano brasileiro, mas universal, cósmico. Recusando a posição de ser apenas um diretor que sabe fazer direitinho um espetáculo em quarenta dias, ele optou por formar um grupo de atores dispostos não apenas a atuar, mas estudar teatro. 
E partiu para a ousadia total. Fez testes com mais de dois mil atores para chegar a um primeiro grupo que montou Macunaíma que fez absoluto sucesso no Brasil e no exterior. Na sequencia optou pela montagem do segundo espetáculo que constituiria o repertório do grupo. Houve uma debandada da maioria do elenco. Antunes fez novos testes. E formou o Grupo de Teatro Macunaíma que montou Nelson Rodrigues O Eterno Retorno e remontou Macunaíma. O Eterno Retorno demorou um ano e meio para ser preparado. Apresentado em 1981 no Brasil fez uma estreia internacional em Berlim em 1982 e percorreu a Europa toda.

P. - Macunaíma de Mário de Andrade foi um mergulho na alma brasileira. Eterno Retorno seria a continuação desta busca de entendimento da alma, não apenas brasileira, mas humana, universal, cósmica, através da obra de Nelson Rodrigues, impregnada de personagens míticos?Como surgiu a idéia deste espetáculo?

Antunes Filho - Até fins de 1963 os diretores, meus colegas, estavam trabalhando numa dinâmica artística e cultural muito interessante. Até fins de 1963, quer dizer até o Ato de Exceção. Depois houve a debandada forçada ou optada. Dali começou a correr um período em que a maioria dos artistas se refugiou nos bares, descontente com a situação. Muitos se isolaram, outros partiram para a televisão. Atravessamos uma fase, um período muito negro, em termos de arte e cultura. E quem ficou, digamos assim, ficou à deriva. Ficamos perdidos, fazendo televisão ou um teatrinho de quarenta dias, que era um teatro de sobrevivência, simplesmente. Mas nem por isso deixamos de fazer este teatro com amor. Mesmo quando fazemos teatro por obrigação, fazemos com amor, porque gostamos muito de teatro.Macunaíma foi para mim um ponto de decisão. Ou eu reencontraria a fé plena na arte, no teatro, ou então aboliria para sempre o teatro e iria vender prego, qualquer coisa do gênero. Ou seria cara de pau mesmo e partiria para um teatro dos quarenta dias, o super mercado. Então o que eu consegui com Macunaíma foi convencer a garotada tentar um espetáculo que tivesse um sentido, que devolvesse a fé outra vez, na arte, num país que passava por um estado de exceção, devido a Censura. E Macunaíma deu certo. Macunaíma foi antes de tudo um ato de fé. Já que os autores mais interessantes estavam proibidos, as peça mais interessantes estavam proibidas, Mário de Andrade e Macunaíma foi uma opção. Então se buscou fazer este romance Macunaíma e através de Macunaíma, se entender a gênese, o caráter do homem do homem brasileiro.

P. - E afinal Macunaíma foi um enorme sucesso?
Antunes - Foi. Deu tudo certo. Foi um sucesso extraordinário aqui no Brasil e maior ainda no exterior. A critica la fora, tanto dos Estados Unidos como da Europa jamais considerouMacunaíma um espetáculo folclórico. Eles viram em Macunaíma uma nova onda. Muitas pessoas da Broadway acharam que era uma lufada de ar, era oxigênio que entrava na cidade. E isso acontecia em Macunaíma: havia uma inovação não apenas em relação ao Brasil, mas também no exterior: era uma nova onda, uma nouvelle vague.

P. - Uma nova nouvelle vague?
Antunes - Uma nova nouvelle vague. Uma new nouvelle vague... E tanto isso é verdade que tivemos muitos convites para fazer Macunaíma na época: continuamos a receber até hoje convites para fazer Macunaíma e estamos recusando todos, deixando tudo para o ano que vem.


P. - É preciso esclarecer que o grupo que faz atualmente o espetáculo Nelson Rodrigues O Eterno Retorno não é o mesmo que fez Macunaíma. Aquele grupo que se chamava Pau Brasilo que é feito dele?

Antunes - Bem, aquele grupo está espalhado por aí fazendo vários trabalhos em teatro. Dispersou-se. No grupo atual que se chama Grupo de Teatro Macunaíma que fez Eterno Retorno e agora ensaia Romeu e Julieta e A Pedra do Reino, do Suassuna, continuam alguns remanescentes daquele primeiro. Aconteceu o seguinte: aquele grupo queria prosseguir fazendoMacunaíma. E eu queria fazer outros trabalhos. Abrimos então um novo curso, nos moldes daquele que chamou gente para fazer Macunaíma, e de inicio eu pensava fazer o Guimarães Rosa que é um autor que eu admiro muito. Porque eu não estava procurando peças tradicionais. Eu queria novela, ou o grande escritor para que eu pudesse me colocar em situação nova. Eu quero estar sempre em situação nova e o romance, o poema não sendo teatro, me solicitam coisas que eu não sei resolver aprioristicamente. Procuro estabelecer às vezes até uma certa confusão.

P. - A sabedoria da insegurança?
Antunes - É eu procuro uma certa insegurança para tentar quebrar aquilo que sei permanentemente, para tentar alguma coisa nova.É tirar de dentro de mim , isto eu sempre procurei fazer, você pode achar que um salto no escuro que eu dou, mas é isso, eu me coloco em situação sempre a cada espetáculo que eu faça.E nem sei se vai dar certo.Macunaíma por exemplo eu não dormia um mês antes da estréia.Não dormia mais.Pensava sempre que não ia dar certo.

P. - Mas não havia la no fundo uma intuição que a coisa ia funcionar?
Antunes - Sim, alguma luz me dizia que sim. Mas eu não tive certeza até o final, até a estréia. Como também este espetáculo do Nelson Rodrigues que eu não sabia o que ia dar. Então se colocar em situação é isso: porque se eu levo tempo para fazer um espetáculo, não e verdade? Não é uma análise do texto, não é nada disso, é para derrubar tudo o que eu sei o dejá vu. É para tentar esquecer tudo o que eu sei. Eu sempre procuro ensaiar de uma maneira diferente. Nunca aposto num texto ou numa idéia que quero fazer de uma maneira já convencional comigo mesmo, um caminho já rastreado. Procuro sempre criar dificuldades para mim mesmo. Gosto de trabalhar com espaços diferentes, trabalhar sem nada. É uma espécie de estimulo para fazer emergir aquilo que não está nem no meu consciente nem no subconsciente. Que está muito mais abaixo. Porque a verdade é esta: eu sei facilmente fazer uma peça. Sou capaz de montar num dia uma peça convencional. Mas isso não me interessa. O meu papel eu acho, não é mais fazer um espetáculo. É dar uma resposta a mim mesmo, aos outros seres humanos e principalmente como ser social, eu tenho este compromisso com o povo brasileiro: abrir trilhas que nem sei que trilhas são essas, elaboradas no campo da arte. Quando se pensou em fazer o Nelson Rodrigues se pensou nisso. Era uma continuação da busca inicial, do entendimento, do caráter, da alma do homem, dos medos, do caráter como medo, não é? Como anelo, e como objetivo e como estrutura, como embasamento.

P. - Como se deu a junção Nelson Rodrigues-Mircea Eliade que afinal resultou neste Eterno Retorno?
Antunes - Bem, a junção Mircea Eliade foi casual. Primeiro quando fazíamos Macunaíma no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, um dia, na volta do almoço eu vi um livro Ferreiros e Alquimistas, do Mircea. Me interessei....

P. - Dizem que o acaso não existe. Ao contrário há uma razão nas coincidências...
Antunes - Exatamente, havia uma razão nesta coincidência. E eu comprei este livro, comecei a ler e gostei. Mas deixei de lado. Depois, quando se apresentou a opção de fazer o Nelson Rodrigues, depois de termos desistido de fazer Guimarães Rosa, Oswald de Andrade, depois da sugestão do Jacó Guinsburg de se fazer alguma coisa urbana e não mais uma coisa rural, cheguei a conclusão que seria muito bom. Porque era difícil para mim sair daquelas imagens deMacunaíma que eram muito fortes.Teria que me libertar daquilo tudo.E era uma situação nova, fazer um Nelson Rodrigues, que é um autor que admiro muito, já era uma situação nova que poderia ser bom, para sair do campo, da mata, da Amazônia, e tentar a radiografia da cidade.Eu falei,ninguém melhor que o Nelson Rodrigues.Mas todas as vezes que eu tinha feito o Nelson Rodrigues: Bonitinha Mais Ordinária, Vestido de Noiva, na televisão que foi bom, A Falecida já tinha feito na Escola de Arte Dramática, sempre eu procurava entrar no Nelson Rodrigues por aspectos sociológicos que não me convenciam.E por outro lado quando eu ia ver o Nelson Rodrigues por ai em outros espetáculos , filmes, ficavam muito no contingente.E não era por ali.Foi então que eu me voltei para o Mircea Eliade, Jung e vi que ali estava a solução do Nelson Rodrigues.Era uma força de terra, uma força quase que ancestral, quase que cósmica que tem o Nelson Rodrigues.

P. - Você disse a pouco que considerava o fato do Nelson Rodrigues ser nordestino, fundamental para ele ter feito a obra que fez. Gostaria que explicasse isso.
Antunes - Eu acho isso, que se ele não tivesse nascido la no Nordeste, embora tivesse vivido desde a infância no Rio de Janeiro, se ele fosse simplesmente carioca ou simplesmente paulista, jamais escreveria esta obra deste jeito. Só uma pessoa la de cima, não sei com que raio de convívio, com que raio de cheiro, com que raio de terra, poderia fazer esta obra que eu sinto que tem até o homem das cavernas. Tem o primeiro homem, tem o segundo, tem o terceiro homem. Tem a Idade Heróica, tem a Idade dos Homens. Eu sinto que é uma força que é muito mais o inconsciente pessoal que está na obra do Nelson Rodrigues na linha do Freud que me arrepia, e que tem me preocupado muito. Esta força que nós trazemos este potencial que a gente traz, desta energia cósmica que todos nós somos (risadas). Não entrei em nenhuma seita não, não entrei em nenhuma religião. Continuo materialista histórico, mas com uma visão mais ampla da problemática do destino humano e dos destinos da humanidade. Então o carioquismo do Nelson Rodrigues é contingente, é tudo contingente. O imanente é uma outra coisa que tem dentro dele. É uma coisa muito forte. É uma força que eu procuro entender dentro de mim que força é essa.

P.- Apesar de ter revolucionado a dramaturgia brasileira, Nelson Rodrigues era uma pessoa extremamente controvertida não é? A ponto de ele mesmo dizer ser um reacionário. Enfim, por atitudes que se chocavam, pelo menos na superfície com a sua obra, ele foi amado e execrado a um só tempo. Muitos o consideravam um moralista. Ainda que a resposta a esta pergunta esteja no seu espetáculo, fale sobre isso.
Antunes - Veja só. Um crítico já disse que o Nelson Rodrigues é um rio e que se esse rio transborda e inunda e extermina as plantações em torno, o gado, não posso dizer que o rio é imoral ou amoral. Eu não tenho critério moral para este rio. É uma força cega da na natureza e não há nada a fazer. É uma força da natureza. É isso que eu considero o Nelson: uma força que ele tem que ele traz dentro dos escritos, uma força brutal de alta carga e que provoca muito a minha mente. É este estimulo do Nelson, assistindo o espetáculo você vê, eu fui cair em Vico, Jean Baptista Vico, que eu gosto muito. Então através da palavra do Nelson, através dos “áureos passos” e das dignidades do Vico que foi até a Bíblia de certa juventude ai depois de 1968, e que tem uma interpretação da história muito furada, mas absolutamente genial, nós chegamos aos ideogramas, a escrita egípcia. Enfim chegamos a isso porque ele fala do nascimento da poesia, do nascimento da palavra do homem.O homem em busca da denominação, este ato maravilhoso, quase que divino.É a função da poesia:denominar as coisas.E eu acho que o Nelson é antes de tudo um poeta, por este poder de síntese que ele tem.Ele é tão preciso com a palavra que a simples leitura sua já me comove.Para mim a própria linguagem dele é ancestral.Ele consegue dar uma aura naquilo, tem um poder de observação tão grande que eu o considero um poeta só por isso.Eu não teria medo algum de fazer este espetáculo-que faço com um palco nu, vinte cadeiras e três mesas- numa caverna ou no alto de uma montanha,ou no meio de um prado, tamanha é a força que tem nos personagens de Nelson Rodrigues.


P. - Você acredita com o Nelson Rodrigues e o Mircea Eliade que os nossos atos cotidianos têm relação com os ciclos vitais da humanidade? Como se coloca diante da vida e da morte? Acredita na transcendência, na eternidade?
Antunes - Eu acredito em energia sabe? Acredito que sejamos energia cósmica que depois se transformam em células e outras coisas permanentemente. Transformações infinitas. Se a humanidade é cíclica ou não, também não me preocupa. É apenas uma interpretação do Mircea e que também a gente encontra no Nelson Rodrigues e isso não quer dizer que o próprio Nelson acreditasse nela. É uma idéia como outra qualquer. Inclusive isso de encarnação, reencarnação é uma idéia encantadora. Mas o homem pode ser cósmico sem precisar reencarnar nunca mais. Ele pode ser mil coisas ou pode ser a mesma coisa. O que importa é que nós somos energia cósmica, e muito poderosa e que ela está em permanente transmutação. Esta energia vai se alterando, vai se modificando. É quase o processo da fotossíntese. Agora, dizer dos meus sonhos, dos meus pesadelos, das minhas ansiedades tudo isso considero menor. O fundamental é que comecei a entender o significado de ser cósmico e em conseqüência passei a aceitar a morte. O que não quer dizer que eu não dê um grande grito de pavor quando ela chegar. Mas ainda estou em transito, estou me iniciando ainda. (rindo).

P.-Você reclamou a falta de publico no espetáculo. Como se explica que o publico não venha ver o maior dramaturgo nacional dirigido pelo mais inovador diretor brasileiro, num espetáculo que teve a maior unanimidade de critica dos últimos tempos?
Antunes - Bem em parte a culpa é nossa mesmo. Nós somos pobres e não pudemos fazer a promoção do espetáculo. Quer dizer, nós somos culpados porque somos pobres. Se fossemos ricos não teríamos culpa alguma. Você vê o seguinte; a critica a este espetáculo foi unânime. Foi mil vezes melhor que a critica de Macunaíma. Então eu esperava isso: sendo a critica tão maravilhosa, unânime eu esperava que logo no segundo dia, já viesse todo mundo correndo. Mas existe uma coisa terrível que é o preconceito. Há um preconceito contra o Nelson Rodrigues. Não por aquilo que ele é como autor de teatro, mas por tudo aquilo que fizeram do Nelson Rodrigues. Se você me disser vamos ver um filme do Nelson Rodrigues ou uma peça de teatro, eu também não vou. Eu tenho medo de ir. Eu preciso estar convencido que deva ir. E acho que o publico está nesta mesma fase, de se convencer para ir ver o Nelson. Eles acham que vão ver o que já viram. Mas a surpresa é a seguinte: quando apresentamos O Eterno Retorno, era incrível a reação da platéia. Algumas pessoas vêm falar comigo e dizem: puxa, eu nunca imaginei que o Nelson Rodrigues fosse isso. Então há uma coisa importante acontecendo: as pessoas estão descobrindo o Nelson Rodrigues. É preciso dar um tempo para que o público venha ver e tenha uma visão correta e afinal decida derrubar o preconceito.

P. - Á saída do teatro, conversando com Paulo Autran, Karin Rodrigues e Everton de Castro chegamos a um consenso: seus atores são maravilhosos mas também são trabalhados de uma forma inusitada.Qual é o segredo?
Antunes - O que eu quero dos meus atores?O que eu quero desses jovens? Formá-los. Quero que eles aprendam logo, dou os livros todos. Tem livro que a gente vai procurar junto. Porque quero que haja uma troca e eles cresçam. Eu os faço, mas eles me fazem. Amanhã eu os faço e eles me fazem novamente. Porque no fundo o que quero são companheiros artistas. Porque você vê como está estagnada a arte brasileira: o cinema, o teatro, as artes plásticas. Lógico que tudo isso é resultado deste estado de exceção em que vivemos. Daí que é preciso ter muito fôlego neste momento para poder sobreviver e tentar colocar alguma coisa para os outros. Então eu quero que os meus atores com o tempo cresçam e que eles sejam artistas. Eu odeio atores, quero que eles sejam artistas, quero quer eles encaminhem novas propostas de arte. Porque a arte como você sabe, é uma forma de conhecimento, talvez a mais avançada forma de conhecimento que tem a humanidade. Talvez seja por isso que ninguém pode prescindir desta porcaria chamada arte. Mas o que sabe o povo brasileiro acerca disso?Nada. A maioria pensa que arte é fazer micagem, desenhar qualquer coisa. Não, é um processo maluco de conhecimento. a vanguarda espiritual de um povo está sempre nos seus artistas,esta é que é a verdade.São eles que estão encaminhando a sociedade para soluções.São eles os bens imateriais que logo se tornarão bens materiais. É isso que precisa ser visto, porque até agora há um certo desprezo pela arte.Acabou este tempo.Você vê o nosso grupo.Ficávamos das oito da manhã as dez da noite no teatro.O artista hoje em dia tem que levantar cedo,tem que cuidar da saúde, tem que comer muito bem e pensar muito bem.

P.- E durante a montagem do espetáculo? Como era a rotina de vocês?
Antunes - Olha a verdade é a seguinte: a gente passou meses e meses sem querer sair la fora, de tão bom que era aqui dentro, tão maravilhoso. Então a gente praticamente se fechou no teatro. Só na fizemos comunidade porque a gente não acredita mais nisso, não é? Foi uma coisa que trouxe algum desencanto em algumas áreas (risadas). Mas o nosso convívio é muito salutar. Tem regra no jogo. Tem algumas regras, não é, para que fique sociável. Só para você ter uma idéia, nós fizemos dois mil testes. Contava muito o talento, mas o caráter era fundamental para se trabalhar. Então foi maravilhoso durante muito tempo. Depois na época da estréia começa a ficar um pouco chato, porque começa a se fazer técnica,começa a entrar gente no teatro, vem o homem da venda, vem o homem dos refletores, o homem da bilheteria,começam a chegar as encomendas, os cartazes, a gente fica meio perturbado, neste período.Então você veja: o pessoal trabalhava doze horas, treze horas por dia.È importante dizer também que ninguém explorava ninguém, porque aqui não tem empresário.Eles formaram uma cooperativa e são os donos de tudo que tem aqui. Eu só tenho uma percentagem da bilheteria. Agora uma coisa que eu exploro deles é o Zeit Geist. Isso eu exploro mesmo, a espiritualidade deles, a sensibilidade deles eu exploro assim como eles me exploram, É uma troca e todos sabem disso. Estamos aqui trocando experiência, ter mais conhecimento da matéria. Mas sinto também um carinho muito grande deles para comigo. Mesmo que a gente brigue um dia, eu sei que não vou perder este carinho. Mas gostaria que a gente ficasse sempre junto, não fossemos apenas companheiros de viagem.

P. - Você acha que isso pode acontecer?Este grupo permanecer junto?
Antunes-Acho sim, que eles podem se tornar uma dos mais importantes grupos. Eles têm consciência disso. É verdade que eles são precários ainda, a maioria está apenas começando, mas a consciência que eles têm dos problemas é muito grande. Falta ainda a técnica para resolver os problemas que nós, com mais idade já temos. E de vez em quando eu dou o instrumento para ajudar. Mas eles também têm que descobrir por si, porque é importante também esta caminhada solitária. Cada artista tem que ser uma impressão digital. Um não pode ser igual ao outro. Porque quanto mais individual ele for, quanto mais especial ele for, mais coletivo ele se tornará. Mais importante à coletividade ele será.

P.- Sei que o grupo está remontando Macunaíma. Isso significa que quando vocês viajarem, ano que vem para a Europa, vai levar dois espetáculos? Há um roteiro para esta viagem ao exterior, já preparado?
Antunes-A coisa é a seguinte: nós tivemos muitos convites para apresentar Macunaíma a principio. Todo mundo quer Macunaíma. Podemos ficar um ano em cartaz com Macunaíma,não só na Alemanha, mas na Europa inteira. E ganhando muito dinheiro, porque a gente lota tranquilamente Macunaíma na Europa. Alemanha então é uma loucura. A gente vai la e lota qualquer teatro. Ficamos um mês la e onde a gente ia era um sucesso. Na França deram um circo para gente, enquanto companhias profissionais tinham pequenas salas e lotava diariamente. Então Macunaíma teve uma repercussão muito grande. E para este espetáculo aqui - O Eterno Retorno, já temos muitos convites para a Europa, vamos fazer uma grande turnê ano que vem. A rigor, este ano, nós deveríamos estar na Europa, a gente precisava estar em Köhl agora, tínhamos compromisso na Holanda. Mas adiamos tudo para o ano que vem. Mais ainda este ano tem dois festivais que a gente não pode deixar de fazer. Um deles é o Festival de Caracas.

P.- Vocês ficam o ano de 1982 inteiro na Europa?
Antunes-Não, a gente volta para fazer no Brasil. Porque você não sabe o que significouMacunaíma por estes lugares que nunca vai uma peça, aonde as pessoas não vêm teatro há anos. Sabe o que eles viam? Peças papa-níqueis, gente ilustre da televisão que já faz televisão para ganhar dinheiro e ainda vai fazer teatro para ganhar dinheiro. Se pelo menos não acendessem uma vela para Deus e outra para o diabo... É incrível que alguns companheiros nossos façam isso.


P.- Há uma discussão sobre função e objetivo da arte sobre a qual já se falou e escreveu muitíssimo que é a questão da arte pela arte versus arte engajada.Qual é a sua opinião sobre isso?
Antunes - Veja bem. A gente não pode fazer modismos. A inovação pela inovação é apenas oportunismo safado. Mas se você começar a trabalhar com as formas e ficar nisso, ai vira arte pela arte, forma pela forma. Mas eu não estou mais discutindo isso, embora ache que a linguagem é uma coisa a ser discutida sempre. A literatura se resolve com a própria literatura. É quase metalinguagem. Mas eu não estou falando disso. Estou falando das formas para se discutir a linguagem do teatro, o sentido e o destino do teatro. Mas na verdade, quando eu fizMacunaíma e depois Nelson Rodrigues O Eterno Retorno estou discutindo conceitos, eqüidistâncias, essências da realidade brasileira. Cada conteúdo tem sua forma adequada. Se eu altero a forma e não acerto o conteúdo estou alterando na verdade o conteúdo. Então, é preciso estudar muito, estudar muita técnica, conhecer forma. Porque se você tem uma bela idéia na cabeça, mas não for preciso na forma, aquele conteúdo passa a ser justamente o contrário daquilo que você imaginou. Quanto à arte engajada acho eu, todos nós temos uma ideologia e esta ideologia deve transparecer naquilo que pensamos e fazemos. Você não precisa dizer o que pensa na obra de arte. Ela é aquilo que você pensa, ela transparece. Mesmo quando se diz que não se tem ideologia alguma você está servindo a uma ideologia. É preciso tomar muito cuidado. Você sempre está a serviço de um lado ou de outro. A tua omissão é dinâmica, é computada. Mas a arte didática não existe. Teatro didático é apenas uma técnica educacional. Não é arte. Então como há professores nas escolas, há diretores de teatro professores. Bem vindos os professores, mas eu, por exemplo, não sou bom professor. Acho que posso dar mais como artista. Eu quero dar minha contribuição social através do meu trabalho. Se não conseguir abrir novos caminhos a precariedade é minha. Mas estou cheio de vontade de dar uma contribuição rica ao homem. Cada um sabe do seu caminho e eu sei do meu. Claro que tenho a minha ideologia e ela está nos meus espetáculos. Se ela não transparece ou o leitor não é bom, ou eu que não sou bom. Agora dogma eu não dou para ninguém. Eu gosto da dialética, gosto de discutir as coisas. Meu processo de entendimento das coisas é sempre o diálogo e nunca uma fórmula. Eu não tenho fórmulas. Vivo inquieto e sou inquieto. Não tenho chaves, não tenho soluções. Procuro analisar e fazer o que minha pobre cabeça consegue fazer. Só isso.

 

Na internet:

 

http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/cpt_novo/areas.cfm?cod=5


http://teatropedia.com/wiki/Antunes_Filho

http://www.revistabrasileiros.com.br/2013/11/28/antunes-filho-decodificado/#.UvrD7mJdUYQ

http://revistacult.uol.com.br/home/2013/10/cena-contemporanea-3/

https://www.youtube.com/watch?v=zhVrQGyvxxk&feature=c4-overview&list=UU5dMgWxhX6ClS26j5p8Qy_Q

  • Compartilhe:
  •    
  •    
  •    

Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

Veja outras matérias de Ana Lúcia Vasconcelos