A dramaturgia pós-moderna de Débora Valery

Priscila Casagrande Salomão



O teatro contemporâneo é cada vez mais tomado por companhias independentes que trilham um longo trajeto em busca do reconhecimento, patrocínio e espaços nas grandes metrópoles para aprimoramento e solidificação de seus recursos e trabalhos. Em São Paulo, os núcleos de teatro alternativos são abundantes, comparáveis aos núcleos de grandes metrópoles europeias como Paris e Londres. É nesse cenário que atua a dramaturga Débora Valery, paulistana da Mooca. A jovem artista obteve uma ampla formação prática em movimentos amadores paulistanos. Atualmente amplia seus horizontes culturais buscando inspiração nos estudos de literatura e filosofia clássicas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). 
Os textos de Débora perfazem um diálogo com estilos e tendências de diversas épocas, mesclando desde elementos da arte clássica até tópicos da cultura contemporânea, o que torna seu estilo eminentemente pós-moderno. Débora ressalta a importância da formação cultural ampla do artista como fator determinante para que o texto final dê margem para o seu potencial crítico. Segundo a autora, muitos aspirantes a dramaturgos pecam pela falta de base sólida de conhecimentos culturais, e aponta para inúmeros casos de grandes escritores cujas vidas foram uma entrega total à constante leitura e enriquecimento cultural que lhes permitiu a concepção de novas propostas estéticas e originalidade literária, como foi o caso do escritor espanhol Frederico Garcia Lorca.
Entre os autores que situa como influências decisivas em sua produção artística, Débora aponta para os autores da literatura clássica greco-latina que estuda avidamente: Homero, Sófocles, Hesíodo, Platão, Safo, Alceu, Sêneca, Tucídides, Xenofonte, sobretudo pela transposição do filosófico ao material que prefigura nas peças da jovem dramaturga. Mas seus estudos também abrangem a literatura universal e seus autores chave, como Shakespeare, Dostoievski, Mário de Sá Carneiro, Baudelaire, Camões, entre outros. Enfim, Débora elabora um cuidadoso recorte de todos esses estilos, com todas as suas singularidades, e recombina-os numa síntese que resulta num mosaico litero-filosófico, um verdadeiro mix pós-moderno. Em determinada fala de um personagem, por exemplo, Débora mescla a nostalgia bucólica árcade com debates filosóficos contemporâneos sobre a reprodutibilidade técnica e o sentimento de deslocamento do homem moderno. 
Sua última peça, Enigma Halicarnasso, é um mergulho no imaginário da protagonista Judy, menina atordoada por sua condição de incompatibilidade com o meio social e que trava um diálogo paralelo com os habitantes do mundo imaginário de Halicarnasso, o qual tenta ordenar como se fosse uma construção mosaical de valores que encadeiam o enigma central desse lado desconhecido e obscuro de sua mente. Um único trecho da fala de Judy põe o leitor em contato direto com esse complexo processo de criação, em que a protagonista discute a função de sua escrita com um personagem componente do mundo imaginário:

Judy:- No espaço, a tênue espuma de grandiloqüentes feitos inebriam o ardor de minha escrita. A ação vejo e ritualizo com a alma por poucas vezes de amor. Vejo a tinta rascunhar áureas palavras de sóis já passados pelo interior de meus fantasmas. Reflexo cabalístico de sete cores em arco de duende rei, coroante da solidão penetrante de subsídios moldados em cânticos arcaicos. Em lágrimas, pincelei na magnificência a tristeza abarcante da aparente tão longínqua vida, que por entrementes sonhos se constrói nos navegos de pensamento alado em ventanias. Já não vejo a luz, e o amor, tão dispersa imagem, contradiz todas as orações canônicas das quais lapidei triste alma.

A tópica surrealista é abordada por Débora em Enigma Halicarnasso, cujas imagens simbolistas, como áureas palavras de sóis e reflexo cabalístico de sete cores em arco de duende rei evocam sensações e devaneios próprios do imaginário poético e fértil de uma garota que personifica o sentimento de incertezas, deslocamento e solidão do homem contemporâneo. A solidão é o princípio de toda essa riqueza imaginária na qual Judy se lança para preencher o vazio afetivo e emocional que permeia sua existência no mundo real. 
Débora compreende o mundo enquanto mosaico pluricultural que recria de forma particular e subjetiva, e as peculiaridades de cada elemento formador desse mosaico se chocam na tentativa de explicar a essência do mundo interior inexplicável em termos racionais e que só encontram expressão recorrendo a belas metáforas e imagens surreais, que realçam o potencial poético do texto. Débora Valery é certamente uma das mais proeminentes dramaturgas do cenário independente do teatro paulistano, enquanto criadora e incentivadora de projetos do circuito teatral alternativo.

Mais sobre Débora Valery

http://universoliterattus.blogspot.com.br/p/debora-valery.html

 

http://debyvalery.wix.com/poemas-debora-valery

 

Priscila Casagrande Salomão é graduanda em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com habilitação em Português e

Alemão

 

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