Paul Auster: a funda ausência do pai

Chico Lopes


 Quando a escritora Rosângela Vieira Rocha (  Véspera de Lua e  Rio das Pedras ), de Brasília, me visitou  em Poços de Caldas e , ao conduzi-la pelas ruas da cidade, tínhamos que acabar entrando numa livraria. Mal ela chegava às primeiras prateleiras, surpreendeu-se com um livro que praticamente lhe despencou no colo. Era uma edição da Companhia das Letras de Noite do Oráculo, de Paul Auster. Ficou perplexa e afirmou: “Isso não é apenas acaso”. E, disposta, determinada, comprou o exemplar.
Falei-lhe, então, de Auster, que ela não conhecia. Disse-lhe que ele tinha escrito um livro que me impressionara bastante: O inventor da solidão. Mandei-lhe pelo correio A Trilogia de New York, que tinha em casa. Ela foi presenteada com o livro dele que primeiro me ocorrera por uma parenta, poucos dias depois de retornar a Brasília. E, por uma espécie de mal-entendido, achando que eu talvez não o tivesse lido ou quisesse relê-lo, mandou-me a nova edição, agora batizada A invenção da solidão.
O que aconteceu foi simples: O inventor da solidão teve este título quando foi primeiro lançado no mercado, em 1997, pela Editora Best-Seller. Saiu recentemente como A invenção da solidão pela Companhia das Letras, que parece deter e oferecer toda a obra de Auster disponível no Brasil. A nova edição tem 194 páginas e pode ser encontrada em todas as livrarias do país.
A qualidade da escrita de Auster não se associa necessariamente à originalidade. Ele não inova muito, em termos de forma, e eu cultivo o hábito - talvez cauteloso e propenso a erros, mas saudável - de duvidar de gente que se empenha em fazer literatura cheia de firulas, às vezes nada mais que mera pirotecnia para disfarçar a falta de idéias e de talento. Quantos livros entre os que vemos por aí, “fragmentados”, “transgressivos”, “ousados”, não oferecem nada além de cacoetes. Raspando-se o verniz de vanguardismo cosmético, não resta nada por baixo.  Auster oferece solidez e oferece idéias, mas também, quando sucumbe aos artifícios, se perde um pouco. Por isso ler A invenção da solidão pode resultar em trafegar nessas duas vias e aprender algumas lições interessantes.  O livro se divide em duas partes, Retrato de um homem invisível e O livro da memória. A primeira já pode ser colocada entre os mais belos textos da literatura americana contemporânea.

O lugar da perda


Retrato de um homem invisível é, na verdade, um depoimento (ou um simulacro de, mas pouco importa): o escritor Paul Auster perde o pai. A morte e seus rituais. A eterna perplexidade diante de alguém que estava ali agora há pouco e agora não está mais em lugar nenhum. A esse respeito, é ótimo, porque Auster nem mesmo arrisca apoiar-se no consolo dúbio de qualquer crença religiosa: ele registra um oco, uma ausência, e explora incessantemente esse vácuo latejante.  Todo mundo tem algo a contar nesse gênero porque, com a morte de um familiar querido e próximo, é sempre assim: demoramos a dar-nos conta completa do que perdemos, e entendemos que o enigma daquela vida, ora extinta, persiste: amávamos quem, realmente, se é que amávamos? Se formos honestos, teremos que admitir: um estranho. Auster radicaliza isso: seu pai era realmente um homem muito estranho, particularmente arredio, uma dessas pessoas em aparência comuns sobre as quais nunca se chega a um consenso preciso, porque se disfarçam, se camuflam, adaptando-se às situações exteriores e mantendo uma reserva inflexível sobre seus motivos e sofrimentos. 
A morte, no entanto, obriga Auster a repensar todo o seu relacionamento com o pai e aí se encontram os trechos mais pungentes e verdadeiros do livro. O texto tem um valor universal: não há quem não reconheça, em silêncio, que, infelizmente, é aquilo mesmo: só chegamos a nos interessar em profundidade por quem amamos (ou por quem supostamente deveríamos amar) depois que já nada mais podemos saber de concreto a seu respeito, quando a morte calou a pessoa para sempre. 
É com angústia semelhante à de um Proust relembrando Albertine ou a avó de Em busca do tempo perdido, é com a pungência do mistério de Ivan Illich, o homem-que-vai-morrer de A morte de Ivan Illich, de Tolstoi, que nos deparamos nessas páginas. Essas filiações ilustres nos ocorrem por força da universalidade dolorosa desse tema. Auster tem que lidar com esse fantasma - seu pai - sem consolo ou amparo algum. O que colocar no lugar dessa perda? O luto de Auster leva-o a investigar o passado do pai e a fazer descobertas - fortuitas - muito interessantes.
Mas, se Retrato de um homem invisível é quase antológico, O livro da memória, a segunda parte, é menos forte. Aí, Auster lembra bastante escritores que escolhem enredar a vida pessoal e um projeto de ficção numa embrulhada metalinguagem abundante em citações. É um artifício óbvio e quase infalível na ficção contemporânea. A maldição da necessidade de ser original, de ser formalmente “inventivo” (mesmo que isso implique em caos e ininteligibilidade) afetou Auster, como afeta quase todo mundo que escreve hoje em dia. Ele não acredita que um texto simples, humilde e claramente escrito, possa valer para o mercado ou para os críticos cujas idiossincrasias precisa adular. Aí, parece já não ter o que dizer e disfarça isso sendo “habilidoso” e revelando as costuras. Pior para o leitor.
Ainda assim, A invenção da solidão guarda prazeres e descobertas para quem queira conhecer Auster e é uma ótima iniciação a seus livros. Não consegui digerir o A Trilogia de Nova York, não li Noite do Oráculo e não me aventurei em outros. Mais tarde, Rosângela Vieira Rocha me confessaria que A invenção da solidão lhe parecera, realmente, o melhor dos três.Se o leitor pretende conhecer Auster, então, fica aqui a minha indicação comece por este.

Para saber mais sobre Paul Auster


http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00026


www.paulauster.co.uk/


Chico Lopes é escritor, tradutor. Mora em Poços de Caldas onde trabalha no Instituto Moreira Salles. Tem publicados Nó de sombras (IMS, SP, 2000), e Dobras da noite (IMS, SP, 2004), livros de contos prefaciados o primeiro por Ignácio de Loyola Brandão e o segundo por Nelson de Oliveira. Fez uma nova tradução do clássico A volta do parafuso, de Henry James (Landmark, SP, 2004). Tem vários livros inéditos de ficção, poesia e ensaio. Escreve e vários sites entre eles:
www.verdestrigos.org/sitenovo/site/novaversao.asp
www.germinalieratura.com.br
franlopes54@terra.com.br

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