Henry David Thoreau : em defesa dos valores simples e naturais

Ana Lúcia Vasconcelos


Considerado por Arthur Miller um dos cinco ou seis homens mais significativos da história dos Estados Unidos, Henry David Thoreau, descendente de huguenotes franceses e quakers da Escócia, nasceu numa fazenda de Massachussets em 12 de julho de 1817. A exceção dos anos que passou em Harvard, viveu toda a sua vida em Concord, sua cidade natal, onde morreu em 1862. De formação clássica, suas fontes foram a antiguidade grega e romana, os textos sagrados de diversos povos, a poesia inglesa e o romantismo europeu.
Precursor dos modernos alternativos, preservacionistas, naturistas, Thoreau foi um contestador do ‘american way of life’ em pleno século XIX, tendo dedicado todo a sua obra, um diário de 39 manuscritos, a expor sua teoria da retomada dos valores simples e naturais. Ou seja, uma vida pessoal baseada em princípios éticos derivados da introspeção, defendendo principalmente a diversidade de concepções e comportamento.
Tido como principal teórico da desobediência civil foi o influenciador de homens como Tolstoi, Gandhi, que se inspirou justamente no seu livro Desobedecendo, ou A Desobediência Civilpara fundamentar sua ação dissidente.

 

Movimentos libertários


Hábil artesão, Thoreau manteve-se na sua curta vida, dos ganhos de uma pequena fábrica de lápis da família. Fora isso fazia conferências e escrevia. ‘Saia sozinho’, conta Fernando Gabeira no prefácio à edição de Desobedecendo ou A Desobediência Civil, editada pela Editora Rocco (Rio de Janeiro), ‘com um lápis, um canivete, um caderno e um microscópio e percorria quilômetros e quilômetros’.
Da paixão pelos campos nasce a idéia de comprar um pedaço de terra do amigo, o poeta e filosofo Ralph Waldo Emerson, que conhecera em Harvard, e ali viver dois anos próximo ao lago de Walden. Para Fernando Gabeira, um dos aspectos mais admiráveis da vida de Thoreau foi o fato de ele ter se tornado um artesão de grande habilidade, vencendo ao nível do indivíduo, ‘a contradição entre trabalho manual e trabalho intelectual’.
Além disso, Thoreau foi um grande antropólogo, tendo estudado profundamente a cultura dos índios norte-americanos. À época em que os brancos, levados ao paroxismo pela idéia de progresso, dizimavam sua raça, roubavam suas terras e riquesas, ele entrava sózinho e desarmado nas aldeias.
Precursor dos movimentos libertários, Thoreau foi antes de tudo um lutador contra todos os tipos de tiranias. Participou das lutas dos oprimidos do seu tempo, solidarizou-se com os mexicanos invadidos pelos norte-americanos tornando-se pioneiro da denuncia do imperialismo. Denunciou a escravidão, ainda em vigor no interior dos Estados Unidos. Evidentemente foi preso e ainda numa situação extrema como esta Thoreau continua sendo pesquisador da natureza humana. Vejamos o que ele escreve na prisão.
‘Era como contemplar a minha aldeia à luz da Idade Média e nosso familiar rio Concord se transformou na torrente de um Reno; à minha frente desfilaram visões de cavaleiros e castelos. As vozes que eu ouvia da rua eram a dos antigos burgueses. Fui espectador involuntário de tudo o que se dizia na cozinha da vizinha hospedaria. Foi uma experiência inteiramente nova e rara para mim. Tive uma visão íntima da minha cidade natal. Eu estava razoavelmente próxima da sua alma. Nunca antes enxergara suas instituições’.

Redescobrindo a
natureza

 

Ainda que toda a sua obra defenda a idéia da redescoberta da natureza pelo homem, da defesa dos valores simples e naturais, é especialmente com Walden ou A Vida nos Bosques, onde relata sua experiência de dois anos e dois meses nos bosques, próximo ao lago de Walden, que ele se torna ‘um dos papas’ do movimento transcendentalista, movimento religioso que floresceu na Nova Inglaterra a partir da segunda metade do século XIX. O livro Ensaios de Emerson é a outra ‘bíblia’ do movimento que defende a crença na existência de um princípio divino no interior de cada homem.Como um dos líderes do movimento, Thoreau levou toda uma geração a redescobrir a natureza, a terra, as árvores, os bichos e as estrelas. Para ele, a salvação do mundo, dos povos, passa pelo indivíduo, pelo respeito à liberdade e pelo direito à diversidade de comportamento. Thoreau acreditava que não somos uma massa informe que o Estado possa manipular a seu bel prazer. Dotado de uma percepção aguda, Henry David denuncia a devastação da natureza, que a indústria, à época incipiente realizaria a perfeição: deplora os estragos que a civilização tecnológica provoca, e alerta para a ameaça que o materialismo representa para os valores humanos.

Acredita que a maioria dos chamados luxos e confortos da vida não são apenas dispensáveis como constituem obstáculos à elevação da humanidade. Contrapõe ao valor excessivo que o dinheiro começava a ter na sociedade americana, da sua época, o despojamento, a vida simples e natural. ‘O homem é rico em proporção ao número de coisas de que pode prescindir’.Acreditava que os bens aprisionam os seres humanos e a redução das necessidades ao estritamente necessário é uma libertação.



Simplicidade de viver


Decidindo por em prática ‘esta simplicidade de viver’ ele, lá pelos fins de março de 1845, toma emprestado um machado e parte para os bosques próximos do lago de Walden, para um ‘sítio’ que comprara do amigo Emerson e começa a abater alguns pinheiros novos para construir uma casa. Em meados de abril, resolve comprar a cabana de um tal James Collins, o que faz por quatro dólares e vinte e cinco centavos, que desmonta e reconstrói perto do lago.’Na encosta sul de uma colina, cavei, no local onde outrora uma marmota cavara a sua toca, bem mais fundo entre as raízes de sumagra e amora e de vegetais mais humildes, com dois metros quadrados e um pouco mais de profundidade, até atingir uma areia mais fina onde as batatas nunca se congelariam no inverno’. 
No princípio de maio, com a ajuda de conhecidos das proximidades, levantou a estrutura da casa. Estudou alvenaria para construir a lareira por considerá-la a parte vital da casa. Não rebocou até que fizesse um ‘frio de rachar’. Para isso, trouxe areia mais branca de outra margem do lago, num barco ‘A morada era pequena e dificilmente eu poderia provocar um eco dentro dela, mas dava a impressão de ser maior por se tratar de um cômodo único e estar longe dos vizinhos. Todos os atrativos de uma casa concentravam-se num só aposento: era ao mesmo tempo cozinha, quarto, sala e despensa, e seja qual for a satisfação proporcionada por uma casa ao adulto ou a criança, ao patrão ou ao criado, eu a experimentava.’
E assim Thoreau consegue realizar um feito que poucos dos seus contemporâneos realizam durante a vida inteira: ter sua própria casa, segundo ele ‘direito inalienável dos homens’, assim como ‘as raposas tem suas tocas, os pássaros seus ninhos e os selvagens suas cabanas’. No entanto não é isso o que se vê na sociedade dita civilizada, onde mais da metade da população não dispõe de moradia. ‘Nas grandes cidades, onde predomina a civilização, a porcentagem dos que possuem casa própria é mínima. A esmagadora maioria paga por este agasalho exterior, indispensável durante o verão e o inverno, uma taxa anual que daria para manter pobres seus moradores a vida inteira’.


Os habitantes dos
bosques

Enquanto construía a casa, Thoreau descobre um ninho de ratos almiscareiros bem embaixo dela e enquanto assentava o segundo assoalho e varria as aparas, eles vinham pontualmente na hora do almoço apanhar as migalhas do seu lanche. Um dia, em que ele estava debruçado com o cotovelo no banco, um deles correu pelas suas roupas, desceu pela manga e contornou o embrulho de papel com a comida que mantinha sempre fechado e desviava dele brincando de esconde-esconde. Quando finalmente segurou um pedacinho de queijo, imóvel entre os dedos, o ratinho veio mordiscá-lo, sentando-se na sua mão. Em seguida limpou o focinho e as patas, como fazem as moscas e foi embora.
Logo que se instalou na casa, um papa-moscas foi aninhar-se no telhado e um pintarroxo alojou-se num pinheiro que crescia encostado a casa. Por volta de julho, a perdiz, um pássaro arisco vinha do fundo dos bosques para frente da casa, passando por baixo da sua janela com a ninhada ‘a cacarejar feito uma galinha’. Os filhotes se dispersavam quando sentiam a aproximação de estranhos a um sinal da mãe. Thoreau fica particularmente impressionado com os olhos da ave. ‘A expressão de seus olhos abertos e severos, notavelmente adultos e ainda assim inocentes, é algo de inesquecível. Sugerem não somente a dureza da infância, como a sabedoria esclarecida pela experiência’.


Ritual diário


E ele segue enumerando os habitantes dos bosques selvagens e livres e ainda sobreviventes, apesar da proximidade dos caçadores, como a lontra, enorme, de mais de metro de altura ou o guaxinim. Em geral Henry David mantinha certo ritual diário: ao meio dia, depois do trabalho do campo, comia o lanche e descansava uma ou duas horas à sombra, junto à fonte que jorrava de Brister's Hill, a uns oitocentos metros do seu campo, e que dava origem a um pântano e um riacho.
Chegava-se lá passando por uma série de vales cobertos de capim e cada vez mais baixos, cheios de pinheiros resinosos que iam dar um bosque mais vasto perto de pântano. Ali, havia um lugar muito isolado e sombrio, debaixo de um pinheiro branco de copa esparramada, e um relvado fino e limpo onde se podia sentar. Mas não era só Thoreau que ia para este recanto. Iam também a galinha d' angola, com suas ninhadas a catar minhocas na lama, as rolinhas que pousavam sobre a fonte ou esvoaçavam de um ramo a outro nos tenros pinheirinhos brancos à sombra dos quais ficava um esquilo ruivo que desviava apressado para o galho mais baixo particularmente familiar e intrometido.
‘Basta que uma pessoa se sente tranqüilamente durante algum tempo em local sedutor dos bosques para que todos os seus habitantes se apresentem alternadamente’.


Uma guerra
de formigas

Mas nem só de paz, tranqüilidade vivia o bosque. Certo dia, quando Thoreau dirigia-se à pilha de tocos, sua reserva de lenha para a lareira observou duas grandes formigas, uma ruiva e outra preta, quase meia polegada maior em luta feroz. Quando chegou mais perto, percebeu que na realidade não se tratava de um ‘duellum’, mas de ‘bellum’: uma guerra entre duas raças de formigas, as ruivas lançando-se sobre as pretas, em geral duas ruivas para cada preta. Legiões infestavam as colinas e os vales do seu depósito de lenha e o chão estava juncado de mortas e moribundas, tanto ruivas quanto pretas. ‘Foi a única batalha que presenciei na vida, o único campo de batalha em que pisei durante o conflito, guerra mutuamente mortífera com as ruivas republicanas de um lado e as pretas imperialistas do outro. Soldados humanos nunca combateram de maneira tão resoluta. Quanto mais de pensa no caso, maior é a diferença. E com toda certeza não há registro na história de Concord, nem da América de uma luta que se possa comparar a esta, quer pelo número de combatentes, quer pelo patriotismo e heroísmo demonstrados. Quanto aos números da carnificina era um Austerlitz ou Dresden. Batalha de Concord.’
E havia ainda os mergulhões que vinham mudar as penas fazendo os bosques ressoarem com sua vibrante gargalhada e os patos que bordejavam e volteavam tomando conta do centro do lago sempre à distância dos caçadores. Isso sem contar as vespas que vinham as milhares para sua casa, ‘seus quartéis’ de inverno e se instalavam perto das janelas, mas do lado de dentro e no teto, chegando algumas vezes a impedir a entrada das visitas.
Sim, porque apesar de Henry David ter optado pelos bosques até para ficar isolado das conversas supérfluas dos seus contemporâneos, recebia visitas dos lenhadores, pescadores, pequenos agricultores que viviam nas proximidades ou mesmo em outras paragens, mas que de repente passavam em sua casa. E aprendeu a reconhecer os ‘cartões de visitas’ deixados por estes visitantes, quando porventura passavam e o dono da casa estava ausente: um raminho, uma folha, uma lasca de árvore, enfim um sinal da passagem de alguém por ali.


A casa aberta
sem fechadura


Walden, ou A Vida nos Bosques é uma obra prima. Thoreau tem o dom da descrição aliada a uma genial capacidade de refletir sobre as coisas e a vida o comportamento humano olhando, por exemplo, o entardecer ou a postura dos pássaros.Nunca deveríamos fazer cerimonia com a sinceridade. Nunca nos enganaríamos, nem insultaríamos ou enxotaríamos um ao outro por conta de mesquinharias, se o núcleo de dignidade e amizade estivesse presente. Nem siquer nos encontraríamos assim às pressas. Há muitas pessoas que não encontro nunca porque parecem não dispor de tempo; estão ocupados com seus feijões. Não deveríamos entrar em contato com um sujeito mourejando assim, reclinando-se na enxada ou na pá como arrimo nas pausas do trabalho, não feito um cogumelo, mas em parte erguido do solo, algo mais ereto, feito as andorinhas pousadas e andando no chão, de modo que podíamos até suspeitar que estávamos a conversar com um anjo’.

Maravilhosamente solidário Thoreau praticou o que muita gente gostaria de experimentar; a casa aberta, sem fechadura. ‘Nunca fui aborrecido por ninguém a não ser pessoas representando o Estado. Não tinha fechadura nem ferrolho. Salvo na gaveta onde guardava meus papéis, nem siquer dispunha de um prego para por no trinco ou nas janelas. Nunca fechei a porta, de dia ou de noite, ainda que fosse para me ausentar por vários dias, nem mesmo como no outono seguinte, passei duas semanas nos bosques de Maine. E, contudo minha casa era mais respeitada do que se tivesse sido cercada por um pelotão de soldados. O andarilho podia repousar e aquecer-se à minha lareira, o literato entreter-se com os poucos livros em cima da mesa e o curioso ao abrir a porta do armário na parede, ver o que havia sobrado do almoço e o que eu pretendia cear’.
E nunca foi roubado; - ‘à exceção de um livro de Homero, talvez impropriamente dourado’. ‘Estou convencido, que se todos os homens vivessem tão simplesmente quanto eu àquele tempo não haveria roubos e assaltos. Estes só ocorrem nas comunidades em que alguns têm mais do que o suficiente enquanto outros não têm o necessário’.
Dotado com o talento de tornar bonito o que toca, Thoreau estetiza o cotidiano nos mínimos detalhes. Até mesmo quando descreve uma, para os mortais comuns, banal arrumação de casa. Conta que quando colocava os móveis, uma mesa com livros e papéis em cima de uma cadeira, na relva, fora da casa eles ficavam de tal forma valorizados pelos raios de sol e pelos ramos de folhagens que se enroscavam nas suas pernas, que era como se ali fosse seu lugar, desde sempre.


A gota de Deus,
o lago de Walden


Mas de todos os personagens que amou nestes bosques onde viveu, sonhou e escreveu, Thoreau se refere com especial carinho ao próprio lago de Walden que compara a ‘uma pedra preciosa, gota de Deus, olho da Terra, imenso cristal, por ter, como poucas coisas, conservado sua pureza’. É fascinante a maneira como David Henry descreve suas águas, suas margens, a calma da sua superfície espelhando a mata, e o fato de ele ter conseguido manter-se jovem apesar do desmatamento e da estrada de ferro que violara suas fronteiras.
‘Ele não se altera é a mesma água que viram seus olhos juvenis: quem mudou fui eu. Depois de tantas ondulações ele não adquiriu nenhuma ruga permanente. É eternamente jovem e posso postar-me e ver como outrora, uma andorinha mergulhar em sua face como se estivesse apanhando um inseto’.
‘Esta noite de novo me surpreendeu, como se eu não o tivesse visto quase que diariamente por mais de vinte anos. Ora, aqui está Walden, o mesmo lago em meio aos bosques que descobri há tantos anos; junto dele, nos pontos desmatados do ultimo inverno, outra vegetação irrompe com a exuberância de sempre: trata-se da mesma água líquida, alegria e satisfação consigo, e seu Criador, ah. talvez comigo. É sem dúvida a obra de um homem bravo e de caráter sem jaça. Com as próprias mãos torneou essa massa d' água, aprofundou-a e a clareou-a no pensamento, e por sua vontade legou-a a Concord. Vejo em seu rosto que é visitada pela mesma reflexão e posso dizer. Walden és tu?’
 

Desobedecendo ou a
A desobediência Civil

Não é demais? Pois é, quem quiser ler o livro inteiro é só localizá-lo em livrarias ou sebos reais ou virtuais. O titulo é: Walden ou a Vida nos Bosques de Henry David Thoreau editado pela Global Editora, São Paulo, Coleção Armazém do Tempo, tem prefácio e tradução de Astrid Cabral e tem um apêndice: o ensaio A Desobediência Civil. A minha é a 3º. Edição, de 1985. Aliás, este ensaio está juntamente com outros do mesmo Thoreau: Caminhando, A vida sem princípios, A escravidão em Massachusetts, Uma semana nos rios Concord e Merrimack, no Desobedecendo traduzido por José Augusto Drummond, estudioso da obra do pensador político, filósofo, e ecologista norte-americano, e prefaciado por Fernando Gabeira, editado pela Editora Rocco, do Rio de Janeiro. Ganhei o livro do próprio Gabeira quando morei no Rio, mas lamentavelmente o perdi, daí que no inicio desta matéria cito um trecho do prefácio.

 

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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