Sumi-ê de Nydia Bonetti
Os poemas de Sumi-ê, de Nydia Bonetti, inventam um jardim, que não é o zen japonês, mas tenta simulá-lo, com seu rigor de pedras. Surgem, aqui e acolá, uma...
Revista digital de Arte e Cultura
Escrevi este artigo quando fazia mestrado na Unicamp, mais exatamente de 1990 a 1993, durante um curso maravilhoso ministrado pelo professor Antônio Muniz de Rezende sobre Filosofia da Linguagem e Psicanálise. Ali recordei que depois que Descartes (15961650) disse: cogito ergo sum, fiquei sabendo que existo, dado que penso. E ainda aprendi que Martin Heidegger, (18891976) filósofo alemão, disse que o ser humano fala o que, aliás, todos sabemos. A novidade é que ele fala não por ser humano, mas o ser humano é humano porque fala. Daí que eu tenho outro dado: sou um ser humano, dado que falo.
Fora isso aprendi que depois de Kant (17241804) houve uma mudança radical na questão do conhecimento, segundo os estudiosos da questão. Até Descartes e ainda estou citando o professor Muniz de Rezende , a questão que se colocava era: o que conhecemos, quando conhecemos alguma coisa? Com Kant a questão passou a ser: o que dizemos, quando dizemos que conhecemos alguma coisa?
Ou seja, segundo o professor Muniz de Rezende: a filosofia passou a ser uma filosofia da linguagem, uma lógica do conhecimento. Kant dizia que só a ação nos salva de um mundo fechado e Marx (18181883) vai dizer que não se trata de conhecer o mundo, mas de transformálo e que só conhecemos realmente o mundo quando queremos transformálo.
Para Marx, a práxis é a salvação do conhecimento. Para ele, a possibilidade do conhecimento se dá graças ao embate, ao afrontamento do homem com a natureza, do que resulta a cultura. Assim, a cultura para ele seria fruto da transformação da natureza pela ação humana. O que significa em última análise, que o conhecimento nasceria da práxis. (Em tempo, quero esclarecer que não sou marxista, apenas estou citando um pensador com quem, no caso, concordo completamente). Não me confundam!
“Quando eu ouço falar em cultura, eu puxo o revólver”
Mas afinal o que é isto, cultura? Joseph Goebbels (18971945), diretor de Propaganda Política do Terceiro Reich, braço direito de Hitler, sobre esta questão emitiu uma frase que ficou célebre: Cada vez que ouço falar em cultura, eu puxo o revólver. Alguns, quando ouvem falar na tal coisa, puxam uma caneta e aqui estou citando o Fernando Collor quando presidente do Brasil, e prejudicam largamente a cultura e a arte. Primeira reflexão: quer dizer que o conhecimento que nasce da práxis, ou seja, do contato dos homens em ação, em ação de viver no mundo é perigoso? Talvez assustador? Sim, porque Goebbels disse que puxava o revólver e outros puxam a caneta e o prejuízo que ocasionam é semelhante para os povos das respectivas nações. Dai, quero dizer do comportamento desses senhores que puxaram o revolver ou a caneta, podemos concluir que eles tinham medo da cultura? Mas afinal, o que é isto cultura, para que pessoas tenham medo dela?
Conhecimentos em processo de feitura
Cultura é o acervo de conhecimentos da humanidade, em primeiro lugar, mas não o acervo enquanto peça de museu, paralisado, feito, acabado, mas o acervo em processo de feitura. Enquanto escrevo este artigo, milhões de pessoas no mundo inteiro estão escrevendo suas matérias nos jornais, editoras, artistas estão criando suas obras nos seus ateliers, coreógrafos estão fazendo seus balés, diretores de teatro ensaiando suas peças com seus atores, cientistas estão pesquisando nos seus laboratórios, estudantes estão aprendendo nas salas de aula, operários estão trabalhando em suas máquinas, novas descobertas em todos os ramos do conhecimento humano estão sendo detectadas nos simpósios e congressos e assim, neste espaço de tempo de algumas horas, este acervo já está enriquecido de novos conhecimentos e assim indefinidamente.
Mas cultura é também identidade de um povo, sua impressão digital, sua marca registrada. Quando eu digo sou brasileira, o estrangeiro que me ouve registra imediatamente as informações que tem sobre este país. Quando eu dizia isso na Europa a maioria dizia: carnaval, Pelé, Rio, ou seja, símbolos do Brasil que não são exatamente tudo o que é a cultura do país, mas é o que a maioria lá fora pensa da cultura brasileira. Hoje naturalmente há o cinema brasileiro que está voltando com força no mercado internacional, a música popular , o teatro, a literatura brasileira estão cada vez mais sendo conhecidos em outros países do planeta , enfim as coisas estão começando a melhorar, mas ainda é pouco. Se quisermos que as coisas mudem, precisamos mudálas. Lembrar que escrevi este artigo na década de 1990.
Violência é cultura
Quando fui editora de lazer do Jornal de Hoje de Campinas, (lazer é cultura) fiz uma matéria sobre um crime bárbaro cometido por um jovem de 19 anos (violência é cultura) e contei, para um dos meus entrevistados, o psiquiatra Sully Urbach, professor de Psicologia Médica da PUCCAMP na época, (hoje ele está aposentado da universidade, mas continua clinicando) , que havia tido a ideia de escrever sobre o tema varrendo a casa. Ele me disse: mas varrer a casa é um ato cultural. Aliás, tenho boas ideias tomando banho. Banho também é cultura.
Vamos lá: varrer a casa é um ato cultural meu, ou um ato cultural comum a toda a humanidade como parte daquele acervo de conhecimentos que constitui a cultura? Varrer a casa é um ato cultural de uma pessoa que mora num país da América do Sul, colonizado por um país europeu chamado Portugal, de quem herdou costumes, religião, etc. e que também é um país integrado por várias nacionalidades europeias e asiáticas, sendo, portanto constituído de várias culturas e que apesar disso tem uma identidade nacional própria, ou seja, tem uma cultura própria. Uma cultura própria, aliás, composta de várias culturas, como a africana, a das tribos indígenas remanescentes no país que não praticam este ato cultural de varrer a casa, o que não significa que haja superioridade da nossa cultura em relação à deles: simplesmente pertencemos a culturas diferentes.
Daí que quando pensamos em cultura podemos estar falando do acervo de conhecimentos comuns à humanidade, ou de um modo de vida de um determinado povo ou de diferentes camadas, segmentos deste povo. Mas os povos não vivem isolados, vivem interrelacionados: para falar a verdade, depois dos satélites viramos uma aldeia global como disse Marshall Mac Luhan , e tanto isso é verdade que a Guerra do Golfo, por exemplo, ou da exIugoslávia ( ou os atentados ao World Trade Center ) ou o corona vírus, só para citar alguns exemplos mais ou menos recentes, afetam todos nós. Isso sem falar que agora com a Internet estamos irremediavelmente ligados para o que der e vier per omnia saecula seaculorum.
Opções à barbárie
O pesquisador José Luís dos Santos, autor do livro O que é cultura, da Coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense diz que cultura pode, por um lado referirse à cultura dominante e por outro, a qualquer cultura. No primeiro caso cultura surge em oposição à selvageria, à barbárie , e aqui seria a própria marca da civilização. Num segundo momento, ele acredita que se possa falar de cultura como a marca das camadas dominantes da população de uma sociedade, em oposição à falta de domínio da língua escrita ou à falta de acesso à ciência e a religião das camadas dominadas. No segundo caso podese falar da cultura, referindose a qualquer povo, nação, grupo ou sociedade humana. Ele diz ainda que considerase cultura todas as maneiras de existência humana.
Isso significa que não posso escapar da minha cultura e por isso até posso viver no meio dos índios brasileiros, por exemplo, e até me adaptar, ou viver no deserto do Saara, com os pastores nômades ou com os esquimós ou sei lá com quem, mas vou (vamos) continuar sendo nós mesmos no meio de outra cultura. Ou seja, meus mínimos gestos (os seus também) me traem de tal forma que uma vista dolhos num grupo qualquer, um rápido passeio pelas ruas de uma cidade aqui ou alhures, me permite, te permite, nos permite, observar o grau de cultura daquele povo.
A cultura transparece, ela é subjacente ao nosso comportamento, ao nosso modo de estar no mundo. Daí que saber andar na rua é cultura, saber se comportar no trânsito é cultura, ser honesto é cultura. Fazer cambalacho é cultura, querer levar vantagem em tudo é cultura, ser corrupto é cultura, dissimular é cultura, ser ineficiente é cultura. A cultura da barbárie bem entendido.
Além disso, cultura tem a ver com objetivos, fins, visão de mundo. Dependendo das respostas a essas perguntas: que tipo de sociedade somos, o que pretendemos de nossa vida em comum , que objetivos pretendemos atingir como Nação poderemos elaborar planos, traçar diretrizes, estabelecer metas. Daí que consciência é cultura, a tal ponto que o que pensamos sobre coisas como consumo, distribuição de renda, acesso à educação, vai dizer que tipo de cultura é a nossa.
Recordar é cultura
Só para recordar (recordar é cultura): o Goebbels disse que puxava o revólver cada vez que ouvia falar em cultura. Vamos pensar com calma: eu puxo o revólver, bom eu não puxo porque eu não tenho um revólver, mas na hipótese de eu ter um, em que circunstâncias eu o puxaria? Pausa para pensar. Fim da pausa: me imaginei num safári (safári é cultura) em plena selva africana e constatei numa viagem imaginária que não puxaria o revólver mesmo se ameaçada por um leão (ou uma leoa). Não consegui apertar o gatilho. E Goebbels ?Apertaria o gatilho?
O que acontece é que os violentos, os tiranos explícitos ou disfarçados, de todos os tempos e de todos os quadrantes do planeta, têm o conhecimento, a arte, a livre expressão, a cultura enfim do povo, sob mira dos seus revólveres, espingardas ou metralhadoras ou debaixo do tacão de suas botas ou simples sapatos de couro (alemão, ou não). O fato é que pensar debater ideias, adquirir conhecimento e tomar consciência é assunto de alta periculosidade. Isso porque é a luta simbólica da luz contra as trevas, ignorância versus conhecimento, negritude versus luz irradiante do sol interior que se abre para quem busca o conhecimento e além dele, a sabedoria.
Paralisadas de medo na verdade concretos na sua concretude como diz a psicanálise, (isso também aprendi com o professor Muniz de Rezende), não indo além do visível, incapazes de transcender através da simbolização e ir além da mera física, os tiranos na verdade são mais dignos de pena. Mas atenção, o mal que eles fazem, o estrago que praticam à sua volta é tenebroso, às vezes insanável por gerações. Daí que é preciso detêlos na sua escalada destruidora. E detêlos como? Que tal agirmos em favor da vida contra a morte. Você duvida que a ação nos transformará?
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