Caminhando por Madri

Ana Guimarães


 



Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco, 
e me sabendo tal, sem grão de siso, 
sou — que doideira — um louco de juízo.
(Drummond)

Tua é a fazenda, 
a casa, 
o cavalo
e a pistola. 
Minha é a voz antiga da terra. 
Você fica com tudo
e me deixa nu e errante pelo mundo... 
mas eu te deixo mudo... Mudo!
E como vai recolher o trigo
e alimentar o fogo
se eu levo comigo a canção?
(para Franco - LEÓN FELIPE)



Confesso que pousei em Madri desanimada, quase triste, com a sensação de que a fogueira estava prestes a se apagar, que a viagem agonizava. Primeiro porque era um dado de realidade, afinal seria a última escala antes da volta ao Brasil. Depois porque após o ápice que fora Barcelona – já começava a juntar seus restos no fogo-fátuo da memória – dificilmente alguma outra a superaria. Mas o jogo começou a virar na noite mesmo em que cheguei. O voo atrasou e fui jantar, por comodidade, próximo ao hotel, na Gran Via, num dos muitos restaurantes abertos àquela hora (a metrópole tem fama de boêmia, nada fecha, só ao amanhecer): farta refeição composta de salada, entrecôte com fritas e sobremesa, por um preço razoável comparado ao dos bacalhaus e jamóns serranos que vinha, até então, degustando. Invadiu-me tanta alegria pelas papilas gustativas que fui dormir feliz e acordei esperançosa, certa de que o sonho continuaria enquanto a areia escorresse pela ampulheta. Tomei, com calma, o café da manhã, pan com tomaca (pão com tomate), “obrigatório”, equivalente ao nosso cotidiano pão com manteiga, e saí, como os mouros, disposta a conquistá-la, só que caminhando e cantando, como disse Vandré, lembrando-me ainda daquele aviso à porta de um cemitério: “O Paraíso não tem pressa e te espera”, embora aqui, ao contrário da morte, tenha encontrado vida pulsando em cada esquina. Cada praça, museu, igreja ou monumento parecia estar à espera de ser descoberto para acender por completo minha existência. 
Apesar do frio, o sol revelava no chão silhuetas as mais diversas, encorajando-me. Retive essa luz e segui em frente. Conheci a Plaza Cibeles, no cruzamento entre Paseo Del Prado e a Calle de Alcalá. Passei pela Plaza de Toros de Lãs Ventas, a das touradas (jamais iria assistir espetáculo tão sangrento!). Na Plaza de Espanha, fotografei ao lado do busto de Cervantes e das estátuas de D. Quixote (o cavaleiro, montado em seu fiel Rocinante) e Sancho Pança (o escudeiro). De lá rumei para Plaza Mayor, a mais bela de todas (e saber que o lugar foi palco de julgamentos e execuções da Inquisição...). Debaixo de suas arcadas, belisqueitapas (petiscos salgados) para abrir o apetite, e provei o famoso xerez Tio Pepe. Andei até Puerta Del Sol, marco zero das estradas nacionais que saem da cidade, e vi a estátua do urso comendo morangos na árvore, símbolo de Madri. Pausa para almoço (leitãozinho assado) no Botin, uma “instituição”, freqüentado não só por turistas como por habitantes locais, na Calle dos Cuchilleros, conhecido pólo gastronômico. Talvez pela baixa temperatura, apesar do vinho consumido, tive fôlego para ir direto ao Centro de Arte Reina Sofia, com seus panorâmicos elevadores de vidro, ver o impactante Guernica, de Picasso, entre outras obras. Voltei para cear no El Cuchi, especializado em cozinha mexicana.
Devotei manhã e tarde para apreciar os trabalhos expostos no magnífico Museu do Prado, um dos melhores acervos do mundo. Inspirada, no dia seguinte fui ao Museu Thyssen Bornemisza, que expõe a evolução da arte espanhola do século XIII ao XX. Mais Velásquez, Goya, Picasso, Dali.
Gratificantes passeios foram por mim realizados: Templo de Debod, construído no século IV AC, foi salvo de ser inundado por uma represa e dado de presente à Espanha. Fica nuns jardins no alto, de onde se tem privilegiada vista. Monastério de San Lorenzo de Escorial, construído para ser o lugar de retiro de Felipe II.Valle de Los Caídos, monumento aos mortos da guerra civil espanhola, imensa capela escavada na rocha bruta (mais viva do que nunca e com fome, saí e almocei um divino cozido madrileno no La Bola). Visita guiada ao Convento de las Descalças Reales, repleto de tapeçarias, esculturas e pinturas de Rubens e Ticiano, doadas pelos pais das noviças. As Igrejas de San Isidro e N.S. de Almudeña, a padroeira, também me encantaram. Quando terminei, a noite já nos enlaçava. Entrei, atraída pela placa, no Museo Del Jamón, que dispõe de enorme variedade da iguaria mais típica do país. Concluí que meu presunto preferido é, sem dúvida, o Pata Nera, feito de um tipo de porco criado sem nenhum confinamento, alimentando-se apenas de uma espécie de castanha de coloração amarronzada, o que mancha suas patas, daí o nome.
Por fim, embarquei numa excursão de longa jornada para a qual é pedido que se madrugue com calçados confortáveis para andar em ruas de paralelepípedos: aToledo, dentro de antigas muralhas, preservada, tombada pelo patrimônio, berço de El Greco não de nascimento, mas por adoção para aí desenvolver a maior parte de sua carreira. Maravilhas a serem apreciadas: o Alcazar, que era um palácio fortificado. A Igreja de São Tomé, simplezinha, o destaque é que ela abriga “O enterro do Conde de Orgaz”, obra prima do mestre. A Sinagoga de Santa Maria La Blanca, bem eclética em termos arquitetônicos (uma salada de estilos, em bom português), mais parece uma mesquita. E o ponto alto, a Catedral, cujo altar ostenta magnífica escultura de Narciso Tomé, em mármore, jaspe e bronze, chamada Transparente devido à iluminação que recebe de uma claraboia. Além disso, fomos levados a uma autêntica oficina de artesãos em pleno funcionamento, lidando com ouro damasquinado, técnica secular onde se incrustam fios de ouro nos desenhos das peças. 
Saciada de comida e arte, enquanto aguardo a hora da volta para a casa, vou ao Parque Del Retiro, enorme área verde no centro da cidade, com alamedas repletas de mímicos, músicos e acrobatas, barcos no lago e cafés ao ar livre. Ideal para quem, como eu, “missão cumprida”, agora o corpo quer relaxar apreciando o vaivém das pessoas, só a alma caminha. 

Ana Guimarães é carioca, psicanalista e publica no seu blog

http://ogozodaletra.blogspot.com.br/2011/10/o-gozo-da-letra.html

e nos seguintes sites

http://www.gargantadaserpente.com/

http://www.germinaliteratura.com.br/ana_guimaraes.htm

http://www.veropoema.net/

http://www.blocosonline.com.br/home/index.php

 

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