Sumi-ê de Nydia Bonetti
Os poemas de Sumi-ê, de Nydia Bonetti, inventam um jardim, que não é o zen japonês, mas tenta simulá-lo, com seu rigor de pedras. Surgem, aqui e acolá, uma...
Revista digital de Arte e Cultura
Pode alguém hoje, em sã consciência, negar que vivemos uma verdadeira barbárie disfarçada? Quanto inferno cotidiano, doméstico, profissional e social. Quanta miniatura dos infernos mais amplos das relações humanas em nosso planeta nesta barbárie (repetimos), a que estão sujeitas nossas almas e vidas. Assistimos perplexos à incompreensões crescentes, a possessividades, ao egocentrismo e às mentiras de toda sorte. Claro está que a nossa pobreza moral e carência psíquica evidenciam a necessidade de uma ética humanista.
Estas são as preocupações de Edgar Morin, um intelectual que dedicou sua vida a pensar e escrever sobre a condição humana. No seu último livro publicado no Brasil, “O método 6 - Ética”[1], impresso pela Editora Sulina (Porto Alegre, 2011, 224p.), há uma análise ampla e profunda das causas e consequências do fracasso de nossa consciência diante da realidade fragmentada da ciência, da economia e da política. O desenvolvimento formidável da ciência no século XX nos mostrou os poderes de destruição e manipulação de que essa mesma ciência é capaz, porque alicerçou-se sobre a separação entre juízo de fato e juízo de valor. De um lado o conhecimento, de outro, a ética. A ética do conhecimento (como presentemente a concebemos), que não enxerga as graves consequências geradas pelas extraordinárias potências de morte e manipulação suscitadas pelo progresso científico, que perdeu a capacidade de prever consequências. Assim, o agir humano torna-se catastroficamente imprevisível. Criamos um desenvolvimento técnico de racionalidade instrumental que pode ser posto a serviço dos fins mais imorais. A economia por sua vez, comporta, claro, uma ética dos negócios, exigência de respeito aos contratos e etc., mas obedece primeiramente aos imperativos de lucro, o que leva à instrumentalização e à exploração de outros seres humanos. E, finalmente, entre ciência e política, resta uma ética marginalizada e impotente. Desarmada entre a ciência amoral e a política frequentemente imoral, (no Brasil dos nossos dias então, enquanto o país se dissolve em escândalos, um governo oportunista tenta salvar as aparências de integridade moral, ante uma população que comporta 12 milhões de desempregados descrentes, que não têm o que pôr na mesa para comer!). De resto, esta é a trágica situação da humanidade planetária.
Por uma lado a deterioração do tecido social, a ausência de uma consciência de solidariedade global, o desaparecimento de um sentido cívico. De outro, a recriação aqui e ali, de micro comunidades de tipo arcaico em bandos, ou gangues, que comportam uma ética envolvente (a defesa do território, a honra, a lei de talião). Assim, uma ética comunitária vai se reconstituindo na ausência de uma ética cívica. O abismo niilista resultante da individualização extrema e a decomposição do tecido social surgida às margens da civilização determinam, portanto, a reintegração no seio das comunidades, restaurações éticas de caráter regressivo. As gangues juvenis e os retornos à religião revelam, cada um à sua maneira, a crise ética geral em nossa civilização. Essa crise tornou-se visível, há alguns anos, com o surgimento de uma necessidade de ética. A desintegração social, o crescimento de todos os tipos de corrupção, a onipresença dos atentados à civilidade e o desenvolvimento brutal da violência suscitam a demanda ingênua de uma moral ética para ocupar o vazio que já não pode ser preenchido pelo costume, pela cultura, pela cidade.
A crise dos fundamentos da ética situa-se numa crise geral dos fundamentos da certeza: crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, crise dos fundamentos do conhecimento científico. Um claro indicativo de uma situação na qual todas as figuras de transcendência apagaram-se. Estamos, doravante, fadados a uma espécie de self service normativo, em que podemos escolher nossos valores. Mas de que ética afinal nos fala Edgar Morin? Daquela que manifesta-se de maneira imperativa, como exigência moral. O seu imperativo origina-se de uma fonte interior ao indivíduo, que a sente no espírito como a injunção de um dever. Como parte intangível de nosso DNA que insistimos em não reconhecer (para usar uma expressão “científica”). A crise ética da nossa época é, ao mesmo tempo, crise de religação indivíduo/sociedade/espécie. Importa refundar a ética: regenerar as suas fontes de responsabilidade-solidariedade significa ao mesmo tempo, regenerar o circuito indivíduo-espécie-sociedade na e pela regeneração de cada uma dessas instâncias. É um chamado essencial vindo do vazio ético, da deterioração ética que vivemos.
O autor defende uma ética do conhecimento que lute contra a cegueira e a ilusão, ética inclusive. O princípio da consciência intelectual deve esclarecer o princípio de consciência moral. Ética que contemple o que é mais individualizado no ser humano, a autonomia da consciência e o sentido de responsabilidade. Mas o pensamento de Edgar Morin embora pondere que nada é melhor do que a boa vontade, adverte que ela não basta, não basta e pode enganar-se. Um pensamento incorreto, mutilado, mutilador, mesmo com as melhores intenções pode conduzir a consequências desastrosas. Como? Quantas e quantas vezes na história humana (e ainda hoje diga-se), os arroubos de amor humano não desabaram sobre deuses, ídolos e ideias, recaindo sobre nós mesmos com intolerância e terror? Quantas e quantas vezes defendemos verdadeiras ilusões éticas, a acreditarmos piamente que obedecíamos à mais alta exigência ética, quando na verdade estávamos agindo pelo mal e pela mentira, ou ainda; quantas vezes nos deixamos levar pela moralina (expressão de F. Nietzsche), que conduz ao maniqueísmo e que ignora completamente a compreensão, a magnanimidade e o perdão?
O autor defende afinal a necessidade vital, social e ética de amizade, de afeição e de amor para que os seres humanos se realizem. O amor é a experiência fundamental da religação dos seres humanos. Em nível da mais alta complexidade humana, a religação só pode ser amorosa. Mas não é só de desencanto e desesperança de que nos fala o autor. Quem se dá ao trabalho de pensar toda essa problemática do mundo hoje, também há de notar que existe sim um movimento contrário a se esboçar aqui e ali na desordem em que vivemos. É apurar os sentidos. Os germes da reforma de vida começam a disseminar-se . Há uma necessidade cada vez mais compartilhada de viver melhor consigo mesmo, de superar o divórcio entre o espírito e o corpo. Se essa tendência terá força para se impor no mundo? É também uma incógnita! As situações de crise são favoráveis ao mesmo tempo, as tomadas de consciência e às reformas, mas simultaneamente às soluções ilusórias e às regressões de consciência. É exatamente isso que acontece na gigantesca era crísica e crítica que sacode o planeta. Esta pode favorecer a rápida propagação das ideias reformadoras e abrir formidáveis possibilidades transformadoras.
Mas a gigantesca crise é também portadora de gigantescos perigos. As reformas podem ser interrompidas, quebradas, aniquiladas em benefício das regressões que se implantam no presente e ameaçam o futuro. Daí, alerta-nos o autor, a necessidade permanente de uma consciência esclarecedora e de uma política da civilização e de humanidade que substituam a política meramente de desenvolvimento que não leva em conta a subjetividade do ser. Necessitamos, ao mesmo tempo como ponto de partida e como efeito, do aprofundamento na psique de cada um de uma consciência simultaneamente ética e política de pertencimento a uma mesma Terra-pátria. Isto é o pensar bem. O pensar bem faz-se urgente e vital neste momento em que há um desencadeamento planetário de ódio, maniqueísmo, diabolização e desumanização coletiva recíproca.
Precisamos conduzir nosso pensamento e nossas ações para uma ética da compreensão, uma ética de pacificação das relações humanas. Uma ética que nos permita finalmente, compreender a incompreensão. A tragédia humana não é somente a morte, mas também o que vem da incompreensão. Está é a estratégia mental que nos fará sair da pré-história da mente humana, da nossa barbárie “civilizada”. Desenvolver uma consciência do destino terrestre comum na qual a transformação não pode acontecer sem uma transformação espiritual. Somente a nós compete realizar o que o prêmio Nobel de Química Jean Marie Lehn anteviu. “O homem modificando o homem está contido no homem”. Em suma: mais do que uma revolução, precisamos de uma positiva metamorfose.
[1] Os seis volumes da série “O Método”, do autor, impressionam pela coerência e pela enormidade do percurso: O Método 1. A natureza da natureza; O Método 2. A vida da vida; O Método 3. O conhecimento do conhecimento; O Método 4. As ideias – habitat, vida, costumes, organização; O Método 5. A humanidade da humanidade – A identidade humana.
Para saber mais sobre Edgar Morin:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Edgar_Morin
https://www.youtube.com/watch?v=ExOqRgBKDKA
Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador e Crítico Literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho –Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.