Sumi-ê de Nydia Bonetti
Os poemas de Sumi-ê, de Nydia Bonetti, inventam um jardim, que não é o zen japonês, mas tenta simulá-lo, com seu rigor de pedras. Surgem, aqui e acolá, uma...
Revista digital de Arte e Cultura
Qual o impacto de um achado artístico a nível nacional? Tornou-se claro que a organização e reedição da obra completa de Hilda Hilst pela editora Globo, iniciada em novembro de 2001, possibilitou o acesso de toda uma geração à literatura total de uma escritora que sempre enfrentou problemas editoriais de distribuição. Pouco se fala, porém, no quanto isso tem reverberado e no quanto ainda ecoará no panorama cultural geral dos próximos anos. A consequência pode ser vista após sua morte: mais lida do que nunca, Hilda tem se tornado cada vez mais influente e inspiradora para diversos escritores e artistas do momento que, declarados, bebem em sua fonte.
Sim, porque uma autora como essa estilhaça a própria medida. O fato comprova, em primeiro lugar, que a famigerada "falta de leitura" da obra hilstiana não encontrava razões em si mesma, como bem sabia a própria autora, mas tão somente em quesito de parca acessibilidade comercial. Fora isso, sempre recebera apreciação crítica, adentrando, inclusive, nos prestigiosos Cadernos de Literatura Brasileira em 1999.
Determinados fatores explicariam os motivos pelos quais uma obra, outrora ignorada e agora reencontrada, não tenha caído no ostracismo. Um desses fatores é o seu impacto estético, a proficiência estilística que se insere numa tradição literária e a supera. Esse ponto será melhor esmiuçado adiante. Outro fator é a temática: Hilda assume sinceridade visceral quando esbarra em questionamentos que nunca deixarão de importunar os homens mais lúcidos.
No documentário “Hilda (Humana) Hilst” (2002), produzido na UNICAMP, é que se pode notar quão sincera e comprometida Hilda era com a própria escritura. O verdadeiro artista constrói seu trabalho com postura existencial-moral condizente com a própria vida que leva. O fascinante nesse vídeo é o fato de que, pessoalmente, ela era exatamente como sua obra: o lado mais profano e banal do ser humano lado a lado com a ânsia sagrada de espiritualidade. Ela fala sobre a Luz do Criador e sobre o encontro com o sex symbol Marlon Brando com o mesmo entusiasmo. Diz que enganou muitos homens, teve muitos namorados, mas queria ser santa. “O que não fiz na minha vida?”, se pergunta enquanto segura um cigarro à moda antiga e fita o vazio com olhos sérios e rosto sóbrio. De repente, depois de um silêncio sepulcral, encontra a resposta: “Foder com uma mula, eu nunca fodi. O resto eu fiz tudo.” O riso e o gelo, isso é Hilda-ela-mesma e Hilda-obra.
“O autor pertence àqueles que a partir da escuridão almejam a clareza, um gênero ao qual também pertencemos”, escreveu Goethe em 1826 numa crítica sobre a obra histórica de Schlosser. Ao lidar com o abjeto, o pornográfico, o cretino e, em certos casos, o verdugo, Hilda reivindica a luz. No plano pessoal, quando “exilou-se” na Casa do Sol em 1966, roupas grã-finas de uma das moças mais belas daquele tempo deram lugar à batas longas e coloridas, mostrando, uma vez mais, que as vanguardas, mesmo as mais solitárias, como é o seu caso, podem reiterar ruptura não só na obra, mas também no comportamento.
Tudo isso com um conhecimento visceral a respeito de literatura. Na poesia, lirismo original e retomada de formas tradicionais como a écloga e o pastoril. Já na prosa, que é onde reside o turbilhão inovador hilstiano, encontramos respostas da pergunta lançada no início deste texto. No deslocar de vírgulas, acentuações, quebras bruscas de linhas, torrencialidade, Hilda assume uma materialidade da linguagem que a faz completamente condizente com o momento artístico estilhaçado em que vivemos. O artista de hoje caminha por ruínas e despojos, não mais por grandes estruturas ultrapassadas – com exceção daqueles que, ou por falta de erudição ou por motivos comerciais, insistem ainda em repetições de formas mortas e arcaicas.
Por isso, Kadosh, Fluxofloema, Axelrod não são, como quis Marilene Felinto em reportagem para a Folha de 12 de julho de 1999, quando Hilda lhe declarou que havia parado de escrever, meros exercícios de experimentalismo hermético. Trata-se, na realidade, de obras do amanhã, do futuro, a estimular, impactar e abalar completamente o panorama estético brasileiro atual.
O leitor de hoje, ao se defrontar com a prosa hilstiana, encontra um novo problema, paradoxo daquele outro que fora resolvido pela distribuição em larga escala: se o país ainda se acostumou pouco com Clarice Lispector (tão comemorada e considerada hermética), quem dirá com Hilda Hilst, que vai muito além desta: na ocultação do enredo, na destruição de qualquer resíduo tradicional da narrativa, no fluxo de consciência percuciente, na desagregação entre conteúdo e personagens, na aposta sem concessões de elementos chamados pós-modernos, acaba por gerar, à primeira vista, inacessibilidade e estranhamento que só poderão ser superados por espíritos de boa formação. Choque de repertórios que, sem sombra de dúvidas, deve elevar as artes nacionais deste século.
Trata-se, portanto, de uma alavanca literária sem volta: no panorama da literatura brasileira em prosa, sobretudo de sua geração, Hilda é única e incomparável em estilo e forma. É a escritora brasileira mais radical que temos notícia, a ultrapassar qualquer pretensão de Lygia Fagundes Telles ou Nélida Piñon. Sua assinatura reivindica uma superação vertiginosa desses gêneros caretas e ultrapassados (e totalmente inapropriados quando se trata de Hilda Hilst), como “conto”, “novela”, “romance”. Tão seminal quanto um Oswald de Andrade ou um Guimarães Rosa, mas também muito distinta deles. Nos resta, então, falar em nomes estrangeiros como Joyce ou Beckett, onde o emaranhado polifônico do fluxo de consciência, assim como em Hilda, é levado às últimas consequências. Construções desse tipo são encontradas em qualquer obra em prosa de sua autoria, notavelmente no já citado Kadosh (1973) ou em “Rútila Nada” (1993), duas de suas peças mais bem acabadas.
Voltemos pela última vez à pergunta inicial. Affonso Romano de Sant’Anna, escrevendo o prefácio da poesia de T. S. Eliot reunida e traduzida por Ivan Junqueira, afirma: “A obra, quando genuína, autêntica e forte, ao surgir a primeira vez diante de nós, nos dá a sensação de intimidade, de pertencimento. Ela vem ocupar em nós um lugar para ela reservado há muito.” Como autor de geração nova, peço licença para fazer testemunho semelhante no caso de Hilda Hilst, poeta e escritora que dialoga diretamente com nós, poetas ou homens obscenos, lúcidos, perplexos diante do absurdo.
Impacto de sua obra no cenário recente só será totalmente avaliado nas próximas décadas, mas está aí, inquietando a produção de artistas do agora, sendo lida por escritores e transposta para o teatro e, mais do que isso, proporcionando o tal choque de repertórios que, inserido no contexto contemporâneo das Letras nacionais – que vai mal, com pouca ousadia e total inércia num repertório de redundâncias e obviedades ultrapassadas – inspira e eleva o nível artístico do país.
Fernando Graça (Santos, 1993) é escritor e poeta. Licenciando em Letras, colabora, desde 2011, para o portal acadêmico E-Dicionário de Termos Literários.