Ana Lúcia Vasconcelos fala sobre o Caio Fernando Abreu

Jeanne Callegari


 

Há anos a  jornalista e poeta mineira Jeanne Callegari me escreveu pedindo uma entrevista sobre o Caio Fernando Abreu para uma pequena biografia que estava fazendo sobre ele que foi publicada sob o titulo Caio Fernando Abreu: Inventário de um Escritor Irremediável (Seoman, 2008, SP) .A Seoman  faz parte do Grupo Editorial Pensamento.  Justamente  ela queria saber como eu o conhecera e como havia sido o evento de eu o ter apresentado à Hilda Hilst, poeta, dramaturga e ficcionista que é uma das maiores escritoras do Brasil e de quem fui amiga desde muito jovem, mais exatamente desde 1968 e sobre quem escrevi um livro misto de memórias e ensaio sobre sua obra que está pronto para ser publicado.  Recentemente, mais exatamente no dia 17 de fevereiro de 2016 comecei a procurar matérias nos meus arquivos para serem publicadas no meu site, este mesmo que você está acessando neste momento caro leitor. Pois não é que localizei esta entrevista e comecei a retocá-la? Mas sem me dar conta que o Caio havia falecido no dia 25 de fevereiro de 1996. Apenas quando vi no sábado, dia 20 de fevereiro de 2016,  uma matéria de capa sobre ele no Caderno C do Estado de São Paulo e muitas alusões a este fato nas redes sociais percebi que a escolha do texto não era obra do acaso, mas   articulado pelo Alto ¨ como diria Hilda Hilst. Ha vinte anos ele partira do nosso meio. Não consegui localizar a Jeanne mas falei com a Paula Dip amiga jornalista, autora de um livro importante sobre ele: Para  sempre teu, Caio F. Cartas, Conversas, Memórias de Caio Fernando Abreu, Paula Dip, Record, 504 pags)  que já virou filme de sucesso,para conferir alguns dados . Ela me contou que está para lançar novo livro  de cartas trocadas entre o Caio e a Hilda Hilst onde trechos desta entrevista também serão citados. Resumo da ópera: aqui vai a entrevista na integra que concedi à Jeanne Callegari  com mais alguns dados já que  revendo agora o texto muitas coisas me vieram à memória .

 ALV

  

Jeanne Callegari- Ana, estou escrevendo uma pequena biografia do escritor Caio Fernando Abreu, já na reta final, mas ainda me faltam algumas informações. O Mora Fuentes me passou teu contato e me disse que você foi a pessoa que apresentou Caio à Hilda Hilst, é verdade? Você pode me contar mais sobre esse encontro?

 

Ana Lúcia Vasconcelos - Sim, é verdade é verdade eu o apresentei à Hilda, o levei à Casa do Sol. Aliás, a gente se conheceu no curso que se seguiu ao concurso ao qual concorreram cerca de  dois mil jovens do Brasil inteiro promovido pela Editora Abril para o lançamento da Veja em 1968. Eu fui de Campinas e ele do Rio  Grande do Sul. Eu na altura já fazia teatro, era recém formada em Ciências Políticas e Sociais pela PUCCAMP e também escrevia matérias ( sobre teatro) para um jornal da cidade: o Diário do Povo. Aliás, este foi meu dossiê para entrar no tal concurso. Acredito que ele também escrevesse já para jornais de Porto Alegre. Então foi o seguinte: desses dois mil apenas cem passaram pelo funil , os que enfim fariam o curso de jornalismo  e que seriam os futuros repórteres e redatores da Veja . E nós estávamos entre estes . Mas no meio de gente começando como eu – sobre ele não sei-  havia jornalistas ja de nome como Tárik de Souza entre outros. Enfim este curso foi nos moldes do que se fazia muito nos Estados Unidos- concursos para descobrir novos talentos para o jornalismo. Mas de fato eu conheci o Caio numa das  palestras  porque era o seguinte: havia uma parte teórica que eram palestras sobre os mais variados temas da atualidade por especialistas que aconteciam de manhã no Teatro Itália , e uma parte pratica que acontecia na redação da Veja, sétimo andar do prédio da Editora Abril na Marginal Tietê em São Paulo- a do Leo Gilson Ribeiro sobre  jornalismo e critica literária. Quando o Leo Gilson abriu para o debate, eu fiz uma pergunta singela: o que ele achava da Hilda Hilst. Sua resposta: uma das maiores escritoras do Brasil. Quando acabou a palestra foi aquele frisson: já fui rodeada pelo Caio e pelo Leo. E quando souberam que eu era amiga dela, ficaram loucos. Então  eu não trouxe  apenas o Caio, como o Leo e o jornalista Nello Pedra Gândara (ambos falecidos) para a Casa do Sol, ja que a esta altura eu era bastante amiga da Hilda. Então eles ficaram super amigos e  ele até morou um tempo na casa. Mas de inicio , quero dizer nas  primeiras vezes que ele veio para Campinas  ficava hospedado na casa dos meus pais. Vínhamos e voltávamos juntos de São Paulo: ficamos muito amigos, tínhamos grandes afinidades .

JC. - Você trabalhava na Veja, com o Caio. A primeira equipe, não é?  Havia outro gaúcho, Elmar Bones. E um que era grande amigo de Caio, não me lembro o nome. Você se lembra desse pessoal? Quem eram os editores?

ALV- Sim me lembro do Elmar mas não tenho contato com ele, só o conheci naquele tempo mesmo, nos inicios da  Veja. Então para você entender mais como as coisas aconteceram foi o seguinte. Para o lançamento da Veja  houve este concurso que você vai ver em detalhes na minha matéria intitulada:  Entre o teatro e o jornalismo. que pode ser lida neste link: http://vitabreve.com/artigo/153/entre-o-teatro-e-o-jornalismo/ Bem, os editores eram: Mino Carta, um super jornalista, um dos melhores do Brasil, justamente o criador do Jornal da Tarde, Veja e depois Jornal da Republica e posteriormente Isto É e agora Carta Capital, Sérgio Pompeu de Toledo, Leo Gilson Ribeiro entre outros cobras. Esta pessoa que você se refere foi  o Nello Pedra Gândara que já citei e sim ficou sendo um grande amigo do Caio. Trabalhei com o Caio nos primeiros números da revista Veja, os chamados números Zero. E aconteceu de fazermos juntos a nossa primeira reportagem. Foi  uma entrevista com o diretor da recém criada, na altura- Trans Brasil que era da Sadia- o comandante Omar Fontana. Caio me disse depois que se não fosse eu ele não teria feito aquela entrevista porque ficou totalmente paralisado- era muito tímido. De fato eu conduzi a entrevista inteira porque, apesar de ser tímida, como atriz eu disfarçava bem. Enfim, ficamos inseparáveis eu, ele e o Nello Pedra Gândara- que era de Sorocaba e um grande jornalista, que morreu há anos num acidente de carro. Depois que  a Veja foi lançada nem todos ficaram na revista-alguns  foram para outras revistas e fascículos da Abril-  eu inclusive fui para Grandes Personagens da Nossa História, o Caio e o Nello ficaram na Veja e o Elmar e outros dos quais não me lembro os nomes foram para as sucursais dos seus estados e outros foram embora mesmo. Porque era o seguinte: havia grandes cortes, ou seja, desses cem ficaram sessenta e depois  houve outros cortes . Lembro que no começo da Veja ele trabalhava no setor de cartas e nos primeiros números Zero ele inventava as cartas, ja que a revista estava sendo testada e era  distribuída para alguns escolhidos- editores de outros jornais e revistas, empresários, professores- os formadores de opinião. Enfim, era aquele teste do lançamento de uma revista. 

 JC-Como era o Caio trabalhando? Ele gostava? Como era a vida de vocês naqueles tempos? e o relacionamento de vocês

ALV-   Como ele trabalhava? Bem é difícil responder isso- ele escrevia muito bem, não é, tinha um  texto ótimo. Lembro-me que ele tinha um jeito especial, delicado de colocar o papel na maquina- de escrever mesmo- e tinha uma calma também especial. Fora isso escrevia muito rápido e no meio  das matérias escrevia poemas, contos. Ele escrevia o tempo todo, lia muito, sabia tudo de literatura, era cultíssimo já muito novo. Já era um escritor. A partir de um momento o Caio também saiu da Veja e foi trabalhar num fascículo- aí sim ficávamos no mesmo andar, trabalhando perto -me parece que era Musica Popular Brasileira. Bem a gente ficava oito horas por dia dentro da Abril e almoçávamos la e eu que havia entrevistado o Gilberto Gil para uma matéria, as vezes cruzávamos com o Gil, o Caetano,  enfim o pessoal da Tropicália  no restaurante  da Abril e Gil me cumprimentava e era aquele auê-nossa o Gil te cumprimenta...(risos) . Na verdade nós éramos muito ingênuos, acho que é a palavra, mas não deslumbrados. Veja só, o Gil me convidou para umas canjas que ele dava para os amigos no seu apartamento e eu nunca  fui. Enfim o Caio era muito culto, lia tudo de literatura e também amava o teatro e então era aquele delicia, os papos e tudo o mais. Me lembro de nós dois voltando da Abril e andando pela Consolação a pé- ele me deixava no meu apartamento e ia para sua casa. Olha era uma delicia isso, a gente andando por São Paulo numa calma como acredito que hoje já não se poderia. Íamos ao teatro juntos, e na casa da Hilda muitas vezes estávamos juntos, no tempo em que ele morou la, me lembro de um episódio que foi o seguinte. Ele amava Lorca de paixão e um dia fez uma experiencia-aquela dos copo numa mesa com letras do alfabeto onde pretensamente se pode comunicar com os mortos e  ele disse ter se comunicado com  o Lorca e com Rimbaud. Eu não acreditei muito, achei tudo forçado, enfim uma grande farsa, mas enfim, fingi que acreditei. O que mais? Bem ele era um temperamental certo? E daí que apesar de ter ficado super amigo da Hilda tiveram brigas homéricas, ele a chamava de Jocasta, mas depois se reconciliavam e tudo voltava o normal. Não me lembro muito da sequência, mas ele também saia e voltava da Abril como eu. As coisas funcionavam assim na época - um saia para fazer teatro, outro para fazer um filme, outro para escrever um livro e depois voltava e era admitido novamente porque era um tempo maravilhoso de pleno emprego e de pouca gente boa no mercado. E ainda: a Abril era a grande mãe que abrigava seus filhos talentosos. E ainda por cima pagava bem, mas me lembro que para nós era uma tortura, para os artistas ainda que eu não pretenda  absolutamente criticar ou cuspir no prato- aprendi muito na Abril, devo muito aquelas pessoas maravilhosas e cultas  com quem convivi. Aliás, nós chamávamos a Abril de campo de concentração, porque a gente ficava prisioneiro lá. Entre sair de casa e voltar eram doze horas. Só voltávamos para a casa para tomar banho, sair de novo para jantar, ir ao teatro, cinema,   dormir e acordar e voltar. Mas naquela época aos 24, 25 anos, a gente fazia madrugada e depois levantava e ia trabalhar numa boa. Ainda que a esta altura eu tivesse um namorado e então nem sempre saísse  com o Caio ou então saímos todos juntos com o meu grupo de teatro. Certa vez grande uma amiga dele do Rio Grande do Sul veio para São Paulo e ficou  hospedada no meu apartamento. Então quero registrar que fiquei nesta primeira vez menos de um ano na Abril e voltei para o teatro porque quando fui para a Abril ja fazia teatro em Campinas e o grupo Rotunda que ajudei a criar havia acabado de montar Electra de Sófocles  onde eu fazia o papel titulo. O curso da Abril aconteceu na sequência e daí que quando eu já trabalhava na editora no tal fascículo referido acima o Rotunda resolveu articular uma temporada de Electra em São Paulo. Na verdade a esta altura como já tínhamos feito a peça em São Carlos, temporada em Campinas, a critica paulistana já nos conhecia já que convidamos vários para irem a São Carlos: Décio de Almeida Prado, João Apolinário- havia uma onda favorável, porque eles gostaram do espetáculo e daí que o Estadão fez nova critica, o João Apolinário da Ultima Hora e a Folha  também fizeram. Enfim, o espetáculo foi bem recebido em São Paulo e eu ganhei Revelação de Atriz em 1968 pela Associação Paulista de Críticos de  Arte -APCA e fui indicada para o Molière. Só para te dizer quem estava comigo na noite em que os críticos votaram os prêmios: Caio e Nello. E então eu fazia as duas coisas-durante o dia Abril e a noite teatro. Eu trabalhava a esta altura no fascículo ao qual já me referi e o Caio na Veja, mas almoçávamos juntos, íamos ao cinema, teatro, enfim, ficávamos todo o tempo juntos. Éramos inseparáveis-eu, o Caio e o Nello.

J.C. - Aquele lance do DOPS procurando o Caio-alguém teria avisado ele, por telefone, para dar uma sumida por uns tempos. Você sabe quem foi? Foi aí que ele saiu da revista? Ele pediu demissão ou foi demitido? Ele conta em carta aos pais, que foi demitido, em massa, junto com vários colegas, por falta de verbas e crise na editora. É verdade essa história?

ALV-. Bem nunca soube desta história, que não significa que não tenha acontecido. Na verdade fiquei sabendo sobre isso depois que ele morreu. Mas segundo a jornalista  Paula Dip, ele foi mesmo perseguido pela ditadura e até isso consta de um conto dele: Garopaba mon amour em que ele conta que apanhou da policia para delatar amigos que participavam da luta armada. Ou seja, não fiquei sabendo porque aqueles eram tempos terríveis e eu mesma também fiquei presa algumas horas em épocas diferentes  quando fui visitar meus irmãos- dois que foram presos políticos e nem sei se ele ficou sabendo . Falar a verdade, perdi um pouco a memória daqueles tempos ainda que me lembre muito bem de alguns fatos. Sei que ele foi morar na casa da Hilda Hilst para escrever mas agora consta de sua biografia que ele se refugiou la porque  estava sendo perseguido. Enfim, sei que ele viajou para a Europa pela primeira vez ja que voltou depois várias outras vezes , e quando voltou interessante -até disse isso a ele - a gente tinha tanta afinidade , que no meio tempo eu comecei a fazer macrobiótica, e ele voltou da Alemanha também comendo comida integral. Houve ainda um tempo que ele morou com o Rofran Fernandes um diretor de teatro também falecido e me lembro que estava adaptando um texto para o teatro, pensando em mim. E ainda não sei se pediu demissão ou foi demitido, talvez tenha sido demitido sim e foi morar na Casa do Sol para escrever seus livros. Não sei isso, mas é provável porque como te disse, para quem era só jornalista a Abril era ótima, mas para quem era também escritor e  atriz, por exemplo, era o lugar onde a gente ganhava mais. Daí que íamos e voltávamos. Ele fez isso. Houve um tempo que ele foi editor do então jornal Leia Livros- hoje é uma revista e eu fazia free lances para vários lugares e fiz algumas matérias para la quando ele era editor. E mais: ele escreveu uma matéria no Leia  contando como conheceu a Hilda e me citando, etc. Você pode localizar- pena que não tenho este exemplar. Até eu quero localizar agora, me lembrei outro dia disso, escrevendo o livro sobre a Hilda. Sobre crises na editora, eu diria na Veja não propriamente crise, mas aqueles famosos cortes. Mas naquele tempo não havia crise não, a Abril crescia assustadoramente. Acho que ele pediu demissão mesmo para escrever. Aliás, ele fala isso em suas cartas aos amigos. Você pode conferir. 

J.C. - Bem, gostaria que você me falasse algumas coisas mais, o que você se lembrar, frases e situações marcantes do Caio, o que se lembrar.

ALV-Bem, o Caio foi uma pessoa maravilhosa, culta, inteligente e grande escritor. Era super sensível e muito sofrido-sofria horrores em função, acredito, desse excesso de sensibilidade e também da incompreensão da família-ele falava pouco sobre isso mas me parece que não se dava muito bem com o pai. Talvez fosse o lance da homossexualidade. Me lembro que uma vez o encontrei em Porto Alegre-quando fiz uma turnê com Medéa, com Cleide Yáconis no papel titulo-ele voltou uma época para la, não é? Você deve saber disso - aliás, ele voltou várias vezes e isso está registrado na sua obra. Depois me parece que esteve novamente na Europa, mas perdi o contato com ele- ele me dedicou um conto. Parece-me que a ultima vez que o vi foi com meu filho Maximiliano no Teatro Anchieta, e depois disso o vi numa entrevista para a TV Cultura e ele ja estava muito famoso e estava com AIDS sobre o que, aliás , falava abertamente. Soube da sua morte pela Hilda  já que ela falava com ele todos os dias - e lógico pelos jornais. Fiquei bastante abalada, mas a esta altura estava ja com problemas particulares bem graves. Alguma coisa que me lembro também é que um dia, la pelas tantas ele ficou com ciúmes de mim - parece que fui paquerada por alguém, depois de uma festa e ele ficou com ciúmes. Mas foi uma coisa assim passageira, nunca  tivemos nada, mesmo porque ele tinha uma preferência por homens, ainda que o Dante Casarini tenha me lembrado que ele tivera um caso com uma atriz que começou em Electra- a Ariclê Perez, também falecida e me lembrei. Eles ficaram perdidamente apaixonados. Quando contei isso para a Paula Dip ela disse: ¨nossa então era foi apaixonado por você! ¨ Nunca percebi nada disso. Falando sobre ele agora me veio toda a memória daqueles tempos e parece  que foi ontem. Acontece que Caio foi uma pessoa muito especial  com quem tive  grandes afinidades e que adorei conhecer e com quem convivi num momento  da minha vida  que reputo importante,  e que será para sempre inesquecível

Para saber mais sobre o Caio Fernando Abreu:

  https://pt.wikipedia.org/wiki/Caio_Fernando_Abreu

http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa7402/caio-fernando-abreu 

http://www.releituras.com/caioabreu_linda.asp 

http://www.primaveragarden.com.br/paula-dip-lanca-livro-sobre-caio-fernando-abreu-no-espaco-primavera-garden/

 

https://www.youtube.com/watch?v=DB7J5DCe47k

 

Jeanne Callegari é poeta. Nasceu em Uberaba, MG, em 1981, e escreveu o livro Caio Fernando Abreu: Inventário de um Escritor Irremediável (Seoman, 2008), biografia do autor gaúcho. Tem poemas publicados em revistas como Raimundo, Modo de Usar, Confeitaria, Parênteses e Escamandro. Jeanne faz parte do grupo de autores que criou o projeto Escritores na Estrada, que vai passar por várias cidades brasileiras com oficinas, bate-papos e leituras. Miolos Frescos é seu primeiro livro de poemas.

Para saber mais sobre ela:

 https://jeannecallegari.wordpress.com/2008/07/ 

https://jeannecallegari.wordpress.com/o-livro/

jeannecallegari@gmail.com

E afinal uma matéria sobre o livro publicada na folha de São Paulo que vale ser lida :  

Crítica/”Inventário de um Escritor…”

 

Biografia lembra quixotismo

de Caio Fernando Abreu


NOEMI JAFFE


Colaboração para a Folha de São Paulo

 

A literatura e a vida estão cheias de histórias de pessoas desbundadas durante a juventude que, com a estabilidade profissional e supostamente emocional adquiridas com a idade, acabam por se tornar “caretas” ou, no mínimo, razoáveis. Caio Fernando Abreu não se enquadrava nesta categoria. Ao ser perguntado, por exemplo, no programa de Jô Soares, quando já se sabia portador do vírus da Aids e já era um escritor bastante reconhecido, se pensava em escrever um livro sobre a doença, Caio respondeu: “Vai que eu não morro! Com que cara eu vou ficar?” São histórias como essa que nos conta Jeanne Callegari, jornalista mineira, na biografia do autor, de nome “Inventário de um Escritor Irremediável”. Como alguém que não sabia nem desejava separar a literatura da vida, uma posição incômoda e muitas vezes constrangedora, a autora conta episódios relacionados aos vários amores de Caio (homo e heterossexuais), seus empregos, seus ídolos, sua constante falta de dinheiro, mesmo durante o sucesso. Clarice Lispector, uma de suas maiores paixões, o chamava corretamente de “Quixote”, ela que, como ele, também adorava o ovo e as galinhas. Caio era mesmo quixotesco por diferentes razões, algumas louváveis, outras um pouco mais complicadas para um escritor. Na fúria e na autenticidade com que misturava sua vida, suas loucuras e sua obra jornalística e literária, seu trabalho era mesmo quixotescamente admirável. Na iminência da eleição de Collor, por exemplo, o autor não hesitou em destruir nosso futuro presidente em sua crônica jornalística semanal. Pode-se também dizer que existe um pioneirismo na sua autoproclamação como “escritor pop”, para quem Cazuza e Rita Lee foram influências mais importantes do que Graciliano Ramos. Até aí, o Quixote único e louvável. O Quixote mais problemático aparece, entretanto, em uma certa indistinção, na linguagem literária, entre a linha que separa o óbvio (o que há de mais difícil na literatura) do autoral. Passagens como “é preciso abraçar a vida” ou “crave seus dentes na minha polpa maciaaaaahh” esbarram numa obviedade mais fácil, em que a mistura entre vida e literatura não contribui muito para esta última. A própria biografia também acaba pecando por esse mesmo problema, às vezes, como quando a autora fala de “finos pingos de chuva” ou “sempre construindo castelos em cima de nuvens”. Mas há que se perguntar se o lugar-comum não é, algumas vezes, o preço a ser pago pela coragem de fundir vida e literatura com tanta intensidade. Da literatura “pop” de Caio Fernando Abreu ainda sobra pano para muita manga.

Noemi Jaffe  é escritora e critica literária-nasceu em São Paulo, em 1962 , doutorou-se em literatura brasileira pela USP e atualmente é professora da PUC-SP. Seu livro mais recente, A verdadeira história do alfabeto, foi lançado pela Companhia das Letras em outubro de 2012.
Para saber mais sobre ela:

http://globoplay.globo.com/v/2723665/

http://www.blogdacompanhia.com.br/tag/noemi-jaffe/

 

 

 

 

 

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