I love Rio ou Ai de ti Copacabana

Ana Lúcia Vasconcelos


 



Eu estava lendo Para Sair do Século XX, do Edgar Morin, filosofo francês, ex-militante do Partido Comunista Francês, ex-combatente da Resistência Francesa e ferrenho contestador do estalinismo, intelectual lúcido e vivendo na época, acredito que continue, em Paris onde nasceu em 1921 onde era (também na ocasião) diretor do Centre National de la Recherche Scientifique, para escrever uma matéria sobre o livro, quando, no final da noite de segunda feira de um dia de 1994, vi o programa Roda Viva da TV Cultura-infelizmente não consegui a informação sobre o dia exato porque a emissora não fornece este tipo de informação por telefone e via email eles não respondem.

Fiquei estarrecida com o que ocorreu ali e decidi escrever sobre o Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, cheia de encantos mil, coração do meu Brasil e sobre - na época a atualíssima, intervenção do Exército, não exatamente para ajudar a policia carioca na luta contra o crime organizado, mas para tirá-la de cena, já que contaminada, amalgamada, cúmplice dos criminosos.
Este era o tema da entrevista com o cientista político Hélio Jaguaribe militante das esquerdas mais esclarecidas brasileiras, filho de pais exilados pela ditadura Vargas e, portanto com experiência de luta política na família desde os cinco anos, quando os pais foram para o exterior. Carioca Jaguaribe viveu 14 anos fora do Brasil e cinquenta no Rio, (até aquela época) autor de vários livros importantes, e um dos mais atuantes intelectuais naqueles anos de chumbo pós 64, de terror e tortura. Na época Hélio Jaguaribe estava na crista da onda da imprensa nacional, patrulhado por seus pares, quase trucidado por ter aceitado um ministério no governo Collor.
Aliás, esta história ele contou, já no final do programa, quando os jornalistas aproveitaram o gancho da pergunta sobre a aceitação de possíveis cargos no governo de Fernando Henrique Cardoso. Jaguaribe disse que não ia aceitar cargos por estar comprometido com uma pesquisa importante que ia realizar nos próximos anos, mais exatamente um estudo crítico sobre a História do Brasil. E sobre o ministério Collor a história foi a seguinte: foi chamado pelo então presidente para ser notificado que as pessoas que ele criticara (em artigos na imprensa carioca) haviam sido retiradas e ele (Jaguaribe) devia auxiliá-lo (Collor) no seu governo. Ele aceitou, mas assim que o barco começou a fazer água, saiu. Ficou arrependido, patrulhou um jornalista? Não, respondeu Jaguaribe, mas deixou registrado, não exatamente na sequência, que considerava o Brasil ingovernável sem uma reforma do Legislativo.

Ver? veremos...

Voltando a Morin, mais exatamente para o primeiro capítulo deste livro que é um balanço dos últimos 70 anos do século XX e que tem este título: Ver? Veremos... onde ele faz um breve relato de um acontecimento banal de sua vida cotidiana, para provar como podemos ver e não ver, de como nossos olhos, nossa percepção pode nos enganar. Um dia, atravessando uma rua de Paris, viu um carro pequeno avançar o sinal e atropelar um motociclista que atravessava tranquilamente o sinal verde. Quando se aproximou para dar testemunho em favor da vítima ficou sabendo que na verdade fora o motoqueiro que avançara o sinal e batera na traseira do carro, chegando a ver o amassado. Ou seja, comprovou um fato conhecido seu e que já demonstrara em obra anterior: o componente alucinatório da percepção que pode ser provocado ou orientado por nossa afetividade, mas pode resultar simultânea ou principalmente das estratégias ou das estruturas de racionalização que utilizamos em toda a percepção. Por isso ele acredita que “o risco da ilusão” não provém apenas das perturbações afetivas ou/ e das estruturas mágicas/arcaicas do espírito humano, mas da racionalidade própria de toda a operação de conhecimento. Isso significa que devemos desconfiar do testemunho dos “nossos olhos” pois não são eles que vêm, mas é o nosso espírito, por intermédio dos nossos olhos.
Daí Morin dizer que é preciso ser prudente não apenas em relação ao depoimento de outrem, mas daquele que parece mais digno de confiança: o nosso próprio. Por isso ele propõe uma estratégia de conhecimento, onde “como sabem os historiadores e policiais, nada tem valor absoluto isoladamente, nem mesmo a mais sincera das percepções”. E Morin reflete sobre a necessidade de se saber ver e explica como se fazer.

Para saber ver, ele diz, é preciso saber pensar o que se vê. Saber ver implica, pois, saber pensar, como saber pensar implica saber ver. Mas saber pensar não é alguma coisa que se obtém pela técnica, receita, método. Saber pensar não é só aplicar a lógica e a verificação aos dados da experiência. 
É preciso, segundo ele, “compreender as regras, os princípios que regem o pensamento e que nos faz organizar o real, isto é selecionar, privilegiar certos dados e eliminar, subalternizar outros. Precisamos adivinhar a que impulsos obscuros, a que necessidades de nosso ser, a que idiossincrasias de nosso espírito obedece ou responde aquilo que consideramos como verdade. “Numa palavra, precisamos saber pensar o nosso próprio pensamento. “Precisamos pensar-nos ao pensar, conhecer-nos ao conhecer. E essa a exigência fundamental que não é apenas do filósofo profissional e não deve estender-se só aos homens de ciência, mas deve ser a de cada um e de todos.”

Verdades e mentiras

Muito bem e o que isso tem a ver com a entrevista do Hélio Jaguaribe sobre a intervenção do Exército no Rio de Janeiro, para combater os traficantes que tomaram os morros e mantém a população como reféns, enquanto lhe oferece guloseimas sob a forma de proteção que é afinal opressão, domínio?
Pois pasmem: o Roda Viva de 1994 foi exemplar no sentido de demonstrar o conteúdo alucinatório das percepções das pessoas ali presentes, a ponto do âncora do programa, o jornalista Heródoto Barbeiro, a certa altura perguntar aos jornalistas cariocas que eram maioria ( Eduardo da Silva, coordenador da reportagem da sucursal do jornal O Estado de São Paulo, Ricardo Boechat, editor de O Globo, outro que lamentavelmente não anotei o nome, de O Dia e Luís Weiss, paulistano sem especificação de veículo, se eles estavam falando da mesma cidade. Ou seja, parece que eles estavam vendo uma cidade diferente da descrita pela mídia em geral e pelo cientista político Hélio Jaguaribe em particular. Aliás, uma das primeiras perguntas do Boechat foi esta: o senhor mora no Rio de Janeiro? A que Jaguaribe respondeu contando aquela historinha que narrei no inicio, ou seja, fora os 14 anos que passou exilado com os pais, ou exilado por ele mesmo, vivia ha exatos cinquenta anos no Rio. Digamos que cinquenta é um bom número para uma pessoa medianamente inteligente saber “duas ou três coisas” a respeito de qualquer coisa. Mas no caso especial do entrevistado-pessoa culta, inteligente, civilizada, um intelectual no verdadeiro sentido do termo, engajado com as causas mais justas da Nação, um estudioso das ciências políticas e sociais, com livros publicados e uma vida dedicada ao país, é suficiente para ter ideias claras sobre qualquer coisa, especialmente sobre sua, digamos, cidade natal. Pois o Eduardo da Silva chegou insinuar se “tudo que estava sendo veiculado sobre o Rio de Janeiro não era um pouco coisa da mídia, manobra das elites (elites) porque veja só: o Rio de Janeiro era o único Estado que tinha prendido todos (todos? quais?) os bicheiros que tinha prendido um juiz que tinha detectado fraude nas eleições, etc. Enfim, se esta coisa de crime organizado que se dizia não seria exagero da oposição? Afinal porque só o Rio estava sendo escolhido se havia corrupção em todo o Brasil?
O jornalista de O Dia, na mesma linha dizia que sinceramente ele que também era carioca não sentia isso que o professor Jaguaribe sentia (daí ter perguntado se ele morava no Rio) essa coisa opressiva, com assaltos e coisa e tal, na cidade do Rio de Janeiro que ele que não considerava que lá houvesse “crime organizado”. Perplexa, não acreditando no que estava acontecendo ouvi o fleumático Jaguaribe responder, dizendo não conhecer uma única pessoa que não tivesse sido assaltada pelo menos uma vez no Rio, e que sua mulher escapara da morte por milagre, já que estivera sob a mira de um revolver durante duas horas na casa dos pais.

E quanto à “organização” do crime no Rio, ele também não acreditava que fosse nos moldes da organização do Exercito, por exemplo, ou da Igreja Católica, pois afinal neste particular os chefões do tráfico se matam com tanta eficiência que não dá para manter uma hierarquia, ou seja, a hierarquia até existe, mas com alta rotatividade dos mandantes.
E a coisa foi nesta linha, à exceção das perguntas dos jornalistas paulistas que tentavam uma reflexão mais profunda sobre a problemática. Os cariocas do começo ao fim do programa insistiam que as coisas não eram bem assim, como se fosse um complô armado pelo resto do país contra o rio e eles como advogados do diabo-aqui o sentido é literal-defendiam sua cidadela com unhas e dentes. No começo fiquei irritada, mas na sequência entrei na onda da condescendência do cordial Jaguaribe e viajei no passado me lembrando da minha estadia (morei alguns meses no Rio em 86), quando a cidade ainda era nas palavras do escritor e jornalista carioca Eduardo Novaes “um inferno relativo” e de como eu quase enlouqueci com a mistificação dos cariocas”, com o conteúdo alucinatório das suas percepções onde verdades viram mentiras e mentiras, verdades.

 

Inferno ou paraíso?

Até então o Rio para mim, como turista, eram bons hotéis, maravilhoso astral, leveza para contrastar com o peso de São Paulo, praias, Cabo Frio, Búzios, Angra dos Reis, Paraty, enfim era o paraíso. Bem diferente é morar no Rio, trabalhar lá. Começa que ninguém entende como, porque, se troca o Eldorado (São Paulo) por aquele balneário (é assim que os cariocas chamam o Rio). Era isso que os jornalistas da Bloch me perguntavam. Eu dizia apontando para a paisagem deslumbrante que se tem do prédio da Manchete no Flamengo defronte ao mar: para olhar isso aí. Eldorado, a palavra, confesso ter lido nos relatos dos viajantes estrangeiros quando se referiam ao Brasil, a terra onde se plantando tudo dá. Aqui eles se referiam a São Paulo, terra onde você tropeça em pepitas de ouro e onde todos são magnatas. Esta, aliás, foi outra palavra que ouvi, ressuscitada pelos cariocas. Paulista para carioca é magnata. Então ficava no ar a pergunta: o que uma magnata paulista está fazendo aqui perdida no Rio de Janeiro? E eu que só queria descansar um pouco da selva de pedra, tinha que ficar justificando. Porque, item dois: a paisagem é deles, o balneário é deles. O diretor de uma editora de livros de arte quando soube que eu era paulista nem disfarçou, recostou na poltrona do seu gabinete refrigerado, respirou fundo e disse: paulista, eu já confio mais. Em seguida me expôs o plano: eu devia fazer um texto sobre Paraty - como, aliás, todos os redatores que ali estavam-de graça, tipo teste, porque eles pretendiam lançar um livro de arte sobre a bela cidadezinha colonial. Certo? Um teste de redação para pessoas de experiência de mais de vinte anos de jornalismo e centenas de matérias publicadas até internacionalmente.

Enquanto eu me levantava da poltrona pensava: é carioca, não confio nada, com as devidas desculpas aos cariocas que não tem exatamente este perfil.
Mas isso era apenas o começo da quebra da imagem paradisíaca que eu tinha do Rio. Fiquei muito abalada com a miséria que grassa naquelas bandas, especialmente em Copacabana e adjacências que era onde eu estava morando. E o mais terrível é que a miséria convivendo com o luxo mais acintoso dos hotéis e prédios e lojas, etc. É a democracia brasileira. Mas fiquei especialmente tocada com um rapaz negro que andava com uma turma de homens feitos que viviam bêbados dia e noite. Na sequência praticamente adotei o menino (ele tinha 19, mas um leve retardo o que devia dar uma idade mental de 14) dando comida, dinheiro, ele tinha uma ferida na perna, e vivia com uma faixa. Cheguei a levá-lo a um hospital para fazer curativo até que resolvi fazer uma coisa mais definitiva e liguei para a família dele (não acreditava que ele tivesse uma) que veio buscá-lo de carro. Pasmem, os primos, com quem ele morava, tinham uma joalheria de objetos de prata no morro não sei das quantas, já não me lembro apesar de ter ido visitá-lo conforme prometera. Vocês sabem o que é subir um morro carioca naquele calor infernal: é o calvário. No Rio você não desce aos infernos, você sobe. Mas o eu quero contar é o seguinte: a avó do garoto-Marcelo-perguntou lá pelas tantas se nós-eu branca, magnata paulista, 42, ele negro, com 19, mas idade mental de 14, eu morando em Copacabana, bem vestida, com dois perfumes franceses - inventei isso no Rio para suportar o cheiro das calçadas, ele vestido de molambos, (caído na sarjeta) nos tínhamos conhecido na praia. Sabe que apesar do problema mental o garoto olhou para a avó com uma cara de “meu Deus o que eu tenho que suportar”, e eu pensei: na praia? Bom se você quiser foi na praia de Copacabana-eu na calçada e ele na sarjeta. Ai de ti Copacabana, ai de ti Rio de Janeiro, ai de nós Brasil com este contingente de negros, outra cultura, convivendo com brancos inteligentes e cultos ou ignorantes e canalhas e/ou inteligentes e canalhas, negros ignorantes ou cultos idem, ou ignorantes, mas maravilhosamente afetivos, vivendo alucinados (será o sol na cabeça?), seria preciso um estudo sério sobre essa miscigenação para entender o que se passa.
Só para resumir (a história é longa) o problema do garoto era mais embaixo-fora bem sucedido - daí a classe na sarjeta-mas a mammy o rejeitava (vi com meus próprios olhos) e o papy era viciado em drogas (que droga, hein!). Só restava o autoexílio nas sarjetas de Copacabana, um inferno relativo. Ou seja, uma ovelha branca no meio das ovelhas negras, mas todo mundo dizendo o contrário.

Não vi e não gostei

E finalmente vou encerrar (tem muito mais) com o último episódio desta matéria que se poderia chamar: Subsídios para se entender a alma carioca. Fiz uma matéria para a revista Manchete, sobre a ópera O Navio Fantasma, de Richard Wagner dirigida pelo Gerald Thomas com elenco internacional que foi um refresco no meio de tanta loucura. Depois de várias peripécias - o fotógrafo não foi no dia marcado para a imprensa fotografar (que o Gerald também não é fácil, aliás, acho que tem razão porque senão fica uma balbúrdia com fotógrafos invadindo a cena e atrapalhando o ensaio, etc.) do chefe de reportagem (numa crise alucinatória) ter cogitado de um possível romance entre eu e o protagonista da ópera (o maravilhoso barítono Carmo Barbosa) digamos, se fosse ele não tinha nada com isso, mas não era, eu estava just fazendo uma matéria e ele estava confundindo alhos com bugalhos, a minha matéria, séria, não foi publicada. Em seu lugar saiu uma debochada, bem ao gosto dos cariocas com este título: Senta que o Gerald é manso. Para quem não sabe, Senta é o nome da protagonista feminino da ópera. E a minha cara com o elenco, com o Gerald, comigo mesma no espelho? Sentiram o drama? Mas o pior foi o título da matéria (uma das) que saiu no jornal O Dia, aquele cujo editor agora no Roda Viva dissera que “as coisas no Rio não eram bem assim (essa violência, este crime organizado, alguém viu isso por aí?): Não vi e não gostei. Digamos, parafraseando De Gaulle: não é um jornalismo sério”. Ouvi gente repetindo a frase nos elevadores, porque de fato o Rio é uma província, um balneário como eles dizem, e aqui não falo como pejorativo apenas constatando o fato, todo mundo fica sabendo de tudo na mesma hora. Assim, quando saí do Rio, de volta para São Paulo, sem olhar o mar, estava com uma conjuntivite que não cedia apesar dos remédios. Na verdade, até uma criança de cinco anos sabe disso, era apenas a minha vontade de não ver mais aquela loucura, aquela mistificação, aquela miséria do Rio de Janeiro, ao lado da riqueza, e da beleza indescritível da cidade. Mas foi sair do estado, entrar em São Paulo e a conjuntivite milagrosamente desapareceu. Caí doente três dias delirando sem febre. Foi o balanço trágico a minha estadia na cidade, na maravilhosa São Sebastião do Rio de Janeiro, aquela que nos seduz. Não queria por um bom tempo, ver o Rio pintado de ouro, numa gravura na parede.
Mas olha como é a vida: em maio de 92 tive que voltar lá para fazer uma entrevista com o Leandro Konder, filósofo e professor de filosofia da educação de duas universidades cariocas, especialista em marxismo, para minha tese de mestrado. Preparei-me durante dois meses para voltar ao Rio. Finalmente comprei e fui. Já na Rodoviária de Mogi Mirim, onde morava na época, encontrei uma jornalista da sucursal carioca da Veja e fomos juntas já enturmadas. Detalhe importante: morando há cinco anos em Mogi Mirim nunca encontrara um ou uma jornalista na Rodoviária, nem mesmo colegas da cidade, quanto menos uma que trabalhava no Rio. Lá, ela me fez esperar com ela, carona do namorado, contatado pelo celular. E eu estava novamente naquele Rio com pessoas afáveis, maravilhosas, amigas, e aquela antiga sensação de leveza e solidariedade dos cariocas. Eles me deixaram na porta do prédio onde eu fiquei hospedada. O dia seguinte, desci para tomar café e entrei ao acaso no primeiro café que encontrei. Estava novamente em Copacabana e com vontade de curtir o Rio como nos velhos tempos. Dois minutos depois eu estava conversando com a moça que tomava café ao meu lado, amiga do português, dono do bar. Ela era gerente de um restaurante que ficava ali perto, onde fui almoçar depois. Enfim, foram três dias maravilhosos, era o Rio que eu amava, com pessoas solidárias, afetivas, comunicativas, como só la eu vi. No dia em que fui embora, desta vez querendo ficar-parada no semáforo da avenida Nossa Senhora de Copacabana esperando o táxi, ou aqueles famosos ônibus cariocas com ar condicionado, para ir para a Rodoviária, não me lembro, enquanto fazia o movimento de colocar a mala no chão para esperar o sinal verde, ouvi uma voz de mulher me dizer: adorei suas unhas.

Nesta fração de segundos, em que endireitei o corpo, o que fiz olhando para as minhas unhas que diga-se estavam realmente bonitas, “ a realidade plausível” como disse Fernando Pessoa no seu poema A Tabacaria, “caiu de repente em cima de mim”. Imagina-te na multidão, em plena avenida, ser escolhida por alguém que diz que adorou suas unhas. Primeiro quem quer que fosse, não poderia ter visto minhas unhas. Este movimento que durou uma eternidade me deixou chocada, emocionada, reconciliada com o gênero humano. Era Rio puro, era o Brasil dos velhos tempos, que maravilha!
Só então me voltei para olhar, esperando o quê? Era uma voz bonita, forte, esperei ver uma mulher bem vestida, carioca típica, cheia de bijuterias, não sei porque me veio esta imagem. Surpresa: era uma mulher mulata, simpática, pobremente vestida, mas com grande classe. Perguntou se eu era médica (eu estava de azul e branco) porque ela tinha sido enfermeira. Sinceramente não me lembro mais o que ela disse na sequência porque eu viajei no lance, mas me recordo de algumas frases desconexas, e o sinal abriu. Nos despedimos, ela me desejou boa viagem mala não deixava dúvidas-e eu saí do Rio de Janeiro em estado de graça, desta vez olhando o mar.
Vocês podem perguntar: em estado de graça só porque alguém falou com você na rua? Não, porque em várias cidades daqui e do exterior isso me aconteceu e acontece. Apenas no Rio eu tenho a sensação-tinha porque faz tempo que não vou lá- de estar no lugar que tem as pessoas mais comunicativas e simpáticas do mundo. Daí que dá para entender as perturbações de percepção dos jornalistas cariocas, no caso especifico que estou relatando-quando eles insinuam que “não era bem aquilo que acontecia lá”. Acontece que acontecem coisas terríveis ao lado de coisas maravilhosas-é um povo muito aberto o que às vezes dá samba. Merece um estudo sério.
De qualquer forma dá para perceber que o morro é só a ponta do iceberg: a parte submersa que é 90% está na planície e não apenas no Rio, está no Brasil todo, como Medellín é a parte visível do iceberg do narcotráfico boliviano. Enfim a pergunta é: por que o Rio, mais exatamente os morros cariocas foram os escolhidos, ou melhor, por que eles se deixaram escolher?

Pensando, como pede Edgar Morin, eu tenho algumas hipóteses: primeiro o Rio, ao contrário de São Paulo-que tem uma tradição de trabalho-tem uma tradição de lazer e isso por vários motivos. Por ser a cidade maravilhosa-é difícil tirar os olhos dela. Depois por ter sido sede, desde os seus inícios do governo federal-primeiro da Corte de Dom João VI, depois capital federal, terra onde grassava fácil a corrupção, os favores, as propinas. Terceiro, é um dos mais famosos balneários do mundo, com turismo internacional correndo o ano todo, com gente em trânsito, em viagem e você sabe como é estar em trânsito? É estar descompromissado, é estar desligado da realidade, é estar curtindo uma, é estar em transe. Daí as perturbações de percepção dos cariocas e a impressão “que as coisas não são bem assim”. A abertura do Rio é o seu calcanhar de Aquiles, seu ponto fraco, a brecha por onde entram todas as coisas-boas e ruins. Mas aguardemos os próximos capítulos da novela. Enquanto isso fico com a frase, citada por Edgar Morin sobre esta problemática toda de saber ver e saber pensar o que se vê de Ortega y Gasset: “No sabemos lo que nos pasa, y eso es lo que pasa”.

 

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Sobre o autor:

Ana Lúcia Vasconcelos
Atriz, jornalista, escritora é licenciada em Ciências Políticas e Sociais pela PUC de Campinas, Mestre em Filosofia da Educação, pela Unicamp.

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