Henry David Thoreau : em defesa dos valores simples e naturais
Considerado por Arthur Miller um dos cinco ou seis homens mais significativos da história dos Estados Unidos, Henry David Thoreau, descendente de huguenotes franceses e quakers da...
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"Hilda Hilst não: toma como emblema nada menos que um dos tres ou quatro mais perfeitos poetas da língua inglesa, John Donne do século XVII para negar através do frêmito da palavra e da carne mortal a preponderância do tempo ou da morte sobre o ser humano. Toda hic et nunc, o aqui e agora ambicionado pelos grandes cantores do amor em Roma, como Catulo, ela pode dizer claramente":
Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore
E degustando o êxito do Agora
A cada instante, me vejo renascendo
E no teu rosto, Túlio faz-se um Tempo
Imperecível, justo
Igual à hora primeira, nova, hora-menina
Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.
Translúcida me vejo na tua vida
Sem olhar para trás nem para a frente:
Indescritível, recortada, fixa."
"A grande poesia da autora de Ficções", diz Leo Gilson Ribeiro, em matéria publicada no Caderno de Programas e Leituras do Jornal da Tarde de 14-2-1981, "reflete toda a problemática da autora frente ao pessimismo que coexiste paradoxalmente com uma esperança de redenção do ser humano ameaçado por bombas de nêutron e a insânia dos políticos dirigentes da maioria das nações do globo. Teria um autor o direito de desvendar a um leitor as possibilidades latentes, mas que destruíssem também o mundo estanque no qual ele vivera até então". Uma coisa é certa e nisso há uma unanimidade: Você não lê os textos da Hilda Hilst impunemente, como diz Leo Gilson Ribeiro: "Hilda Hilst não comunica ao leitor uma vivência pessoal: ela incorpora o leitor a essa vivência doravante compartilhada; uma vez lidos, seus livros passam a integrar a nossa realidade, a nossa memória, o nosso frêmito".
Processo dificultoso de existir
Talvez por isso mesmo Hilda Hilst tenha sido constantemente acusada de fazer uma literatura afastada da sua realidade imediata, brasileira, subdesenvolvida. Assinale-se que a autora não gostava de se sentir uma excrescência. Acreditava que devia haver um sentido para que ela fosse esta que era e no contexto do seu país. "Quando se trata de política, em geral as pessoas querem colocar uma noção muito pequena diante do escritor. Eu sou contra todos os tipos de opressão, de ditaduras e tenho denunciado isso constantemente. Se estou escrevendo coisas, que para muitos é de um teor metafísico exagerado, talvez seja por estar percebendo esta potencialidade no homem. Uma pessoa, desde que assume o ato de escrever, parece que desenvolve antenas muito pronunciadas."
"Quando me perguntam por que escrevo dessa forma que as pessoas não entendem eu digo que é o processo de vida que é tão complexo. Eu não saberia simplificar esse processo para ser mais compreensível, é o meu próprio processo dificultoso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais e que tudo seja misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida. De repente você vai encher um cálice e tudo se esparrama, cai em você e não dá para fazer um esquema bonito agradável, simpático."
"Normalmente com as pessoas eu falo coisas normais porque acredito que as minhas preocupações são de uma seriedade que me atinge tão profundamente que não convém ficar discutindo com as pessoas esses sentimentos. Muitas pessoas me dizem, você parece tão jovial e depois o seu livro é tão desesperado... Então é só através do livro e de personagens que você pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar, é uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós o que você faz tudo para se exprimir, para se irmanar e às vezes não consegue. Quantas vezes, pessoas que eu tinha tanta vontade que entendessem o meu trabalho dizem, Hilda infelizmente não consegui saber do que se trata. Então eu imagino que existam também gradações de emoções e talvez eu seja uma pessoa com uma intensidade meio desesperada, uma lucidez também desesperada."
Aliás, esse desespero de estar vivendo entre pessoas que não a compreendiam ela expressa em algumas obras particularmente. Por exemplo, o seu Qadós que agora na nova edição da Editora Globo ficou Kadosh- que significa Ungido em hebraico, ela vai dizer pela boca do personagem: " Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros debaixo do braço e se via alguém mais louco que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou: eis o recado para o outro:sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é o teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão: Não tenho não senhor. Só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune dos cidadãos."
Pode-se dizer que da mesma forma que os cidadãos expulsam Qadós por não entender suas palavras, seu modo de estar no mundo, muitos afastaram os escritos de Hilda Hilst por julgá-los incompreensíveis. Mais uma vez o "o novo" perturbando "o velho". A esta altura, quero dizer nesta época, ela se queixou dessa incompreensão, de ser pouco lida ao escritor português Vergílio Ferreira (autor de Aparição, Nítido Nulo, entre outros) e quando estive em Portugal, fui visitá-lo e ele me deu a resposta para esse lamento da Hilda numa carta onde reafirmava sua certeza de que os textos da Hilda pertenciam mais aos leitores de amanhã.
"Eles a lerão decerto, como já agora te lêm, evidentemente depois de terem refletido que o homem também é homem no intestino grosso". A propósito da ultima frase Vergílio Ferreira resume o sentido das obras da autora como uma "preocupação de trazer Deus até as fezes do homem, de envolver o mais baixo na sublimação pelo mais alto". "Hilda desarticula a língua, juntando na mesma convulsão os elementos mais díspares forçando a lógica habitual, o arrumo habitual das pessoas bem comportadas, ele diz ainda. É aí exatamente que ela afirma sua posição de artista e afinal, ser humano, mulher ".
Aliás, esta intensidade desesperada o leitor vai poder constatar em todos os seus textos, mas de modo especial em alguns poemas como este do livro Cantares de Perda e Predileção: "Que dor desses calendários / Sumidiços, fatos, datas / O tempo envolto em visgo / Minha cara buscando / Teu rosto reversivo / Que dor no branco e negro / Desses negativos / Lisura congelada no papel / Fatos roídos / E teus dedos buscando / A carnação da vida / Que dor de abraços / Que dor de transparência / E gestos nulos / Derretidos retratos / Fotos fitas / Que rolo sinistroso / Nas gavetas / Que gosto esse do Tempo / De estancar o jorro de umas vidas".
"Em grego agonofrenós é a agonia da alma e uma pessoa que tiver essa hiperlucidez de se compreender livre em um mundo esquizofrênico poderá sobreviver a esta iluminação interior ameaçadora? Até onde se pode ser realmente livre? Como seria um ser humano totalmente livre? Sem nenhuma repressão, sentindo, no entanto, que ele faz parte de um mundo caótico e que milita contra a sua liberdade? Se você sentir que o teu eu está sofrendo uma deterioração na sua parte mais funda e autêntica, no seu âmago álmico-que poderia acontecer depois? E ao fazer da tua linguagem uma extensão da tua própria atuação, aí sim, você começa a ser livre... No mundo de hoje, só um louco é que não pode pensar em utopias. Temos que desejar a utopia, sonhar com a utopia, querer a continuação do homem por meio de uma coisa inimaginável, mas que o ser humano vai conseguir, vai chegar lá."
Proposta de uma revolução interior
Hilda Hilst reconhece que sua proposta é a de uma revolução interior. "Comecei me desestruturando depois de vinte anos de poesia arrumada. E esta linguagem ordenada, de comportamento que quero desordenar reflete a época, o momento visceralmente conturbado. É preciso dominar uma desordem para que aconteça alguma novidade real dentro de você. Há uma reformulação da linguagem como deve haver uma reformulação de comportamento".
Na verdade considera que o escritor "está sempre se dizendo, se revelando de várias formas múltiplas através dos personagens. Cada personagem faz parte de você e você se conta através de cada um. Existem momentos em que você é o gelado, o distante, o passional, o infantil, o ingênuo, o bobo, o louco e tudo isso junto. E as formas de dizer também são diferentes. Eu tenho um amor muito grande pela minha própria linguagem eu acho muito bonita. Não sei pelo fato de minha mãe ser portuguesa, quando escrevo um poema, ou como foi também no texto de Matamoros em Tu Não Te Moves de Ti, não consigo escrever sem ser o sotaque português dentro de mim. Minha mãe tinha um sotaque português muito leve, muito doce, ela me chamava Hildinha, e o l era todo suspirado, enrolado, muito bonito. E quando dizem que precisamos sair desses laços coloniais realmente eu não saberia, a minha raiz é mesmo uma raiz da Península Ibérica. Na poesia é onde me vem com mais intensidade a volúpia do sotaque português. E agora nas minhas orações à noite, eu fico falando com Deus como se ele estivesse perto de mim, com esse sotaque português. Eu digo "Ai meu Deus, por favor, não me dê muitas mágoas, muitos martírios. Talvez com esse doce, esse melado na fala, ele possa prestar mais atenção".
Hilda Hilst desarrumava a linguagem para tentar traduzir as perguntas que se fazia e seus personagens-múltiplos, tripartidos, dia e noite. Às vezes, no entanto ela experimentava um profundo desânimo em relação a alguma futura transformação do homem. "As verdades mais importantes já foram escritas. Há um impressionante acumulo de informação que não foi ainda assimilado e apesar do indiscutível progresso tecnológico do nosso século não se pode dizer que o homem esteja crescendo em verticalidade".
Não acreditava também em soluções que os políticos propõem. Endossava Arthur Koestler quando este afirmava que para que o homem se transformasse no Homo Sapiens seria preciso uma modificação de "essência álmica. Apenas com uma mudança na alma humana, só assim Hilda Hilst acreditava no homem do próximo século. E ela disse isso claramente no seu Poemas aos homens do nosso tempo: "Que te devolvam a alma / Homem do nosso tempo / Pede isso a Deus / Ou as coisas que acreditas / A terra, as águas, à noite / Uiva se quiseres / Ao teu próprio ventre / Se é ele quem comanda / A tua vida, não importa / Pede a mulher / Aquela que foi noiva / A que se fez amiga / Abre a tua boca, ulula / Pede a chuva / Ruge / Como se tivesses no peito / Uma enorme ferida / Escancara a tua boca / Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA".
E o leitor vai concordar comigo que aqui nestes poemas é onde Hilda Hilst é mais aberta, menos hermética, mais clara: "Ao teu encontro, Homem do meu tempo / À espera de que tu prevaleças / À rosácea de fogo, de ódio, às guerras / Te cantarei infinitamente / À espera de que um dia te conheças / E convides o poeta e todos esses / Amantes da palavra, e os outros / Alquimistas, a se sentarem contigo / À tua mesa. As coisas serão simples / E redondas, justas. Te cantarei / Minha própria rudeza / E o difícil de antes / Aparências, o amor / Dilacerado dos homens / Meu próprio amor que é o teu / O mistério dos rios, da terra / Da semente. Te cantarei Aquele / Que me fez poeta e que me prometeu / Compaixão e ternura e paz na Terra / Se ainda encontrasse em ti, o que te deu".
Ou então neste poema: "Vou indo caudalosa / Recortando de mim / Inúmeras palavras. / Vou indo, recortando / Alguns textos antigos / Onde a faca finíssima / Sublinhava / As legendas políticas / E um punhal incisivo / Apunhalava / Um corpo amolecido / O olho aberto, uma bota / Pontiaguda / Entrando no teu peito. Os meus olhos te olhavam / Como de certo o Cristo / Te olhou, piedade / Compaixão infinita / Ah meu amigo / Que límpida paixão / Que divina vontade / Fervor feito de lava /Fogo sobre tua fronte/".
Tanto amor/E não te deram nada. /Deram-te sim/Ferocidade, grito/.E sobre o corpo/ Chagas / E mãos enormes, garras / Te levantando o rosto / E inúmeras palavras / Tão inúteis na noite. / Diziam que adolescência / Moldou a tua idéia / Que eras como um menino / De encantada imprudência / Loucura caminhares. Na trilha da floresta / Sem luminosa armadura / Mas eu, poeta, vou indo / Caudalosa / Recortando as palavras / Tão inúteis / E os meus olhos de treva / Vão te olhando / E te guardo no peito / Intenso, aberto Colado a mim / Homem-amor / Inteiro permanência / No todo despedaçado / Do poeta". (Canto XII de Poemas aos Homens do Nosso Tempo).
Palavras inúteis
Mas parece que as palavras da escritora "foram inúteis", não tocaram o ouvido, não inflamaram o coração das pessoas como a escritora gostaria. Assim é que a partir de 1990 Hilda resolveu, desacreditada do futuro da sua literatura, sempre pouco lida pelos brasileiros, mais interessados talvez em textos menos problemáticos, mais superficiais e digeríveis, abdicar de ser uma escritora séria. Inicia a fase chamada "erótica" com o Caderno Rosa de Lory Lamb seguido de Contos d’escárnio Textos grotescos e Cartas de um sedutor. Ela justificava esta sua tomada de posição dizendo que ficara fascinada com a parte maldita dos ensaios do escritor francês George Bataille, de que, aliás, gostava mais do que da sua obra de ficção. "Eu tenho a impressão que ele tentou a salvação, por isso escreveu todos aqueles livros evidentemente pornôs. Quando li a parte maldita tive a compreensão do por que ele escrevia aqueles textos". E acrescentava que justamente ficara fascinada com todo o processo de Potlatch, através do qual ele foi se conhecendo que resumindo para ela significava o "poder de perder".
O Potlatch para quem não sabe, é um ritual dos índios norte-americanos, aparentemente uma grande festa que se celebra nos batismos, nos casamentos, nas datas mais marcantes. Os índios exibem as coisas mais bonitas que possuem, mais preciosas que possuem: mantos com plumas finíssimas, objetos que construíram artesanalmente, além de objetos que eles dão para outras tribos. "É uma grande demonstração também de poder, o que, aliás, toca naquilo que a gente aprende na escola que é a economia política que é a ciência das trocas". Hilda então, refletindo sobre tudo isso, o poder do dinheiro na nossa sociedade, a vontade de ter, concluiu através deste ritual do potlatch, que o verdadeiro poder estava na capacidade de perder, renunciar, se reduzir ao mínimo necessário para viver". E reconheceu "que todo seu esforço na busca da renovação da linguagem, havia sido excessiva. Quer dizer a minha busca, minha tentativa de transmitir a quem me lesse a sensação profunda da vida, da experiência da vida, - que seria você colocar o horizonte mais longínquo de si mesmo, a serviço da sobrevivência do outro. É que eu queria despertar um lado do ser humano que ele ainda se recusa a ver, como entre outras, essa experiência importante que o homem pode ter. Agora sim, eu sinto que posso que eu tenho o direito de fracassar. Eu passei 40 anos de reclusão dedicada a escrever e tudo de mim não teve eco, não fui compreendida, não fui consumida, não fui aceita".
Lembrava que à exceção de alguns editores e críticos: Nelly Novaes Coelho, Massao Ohno, Anatol Rosenfeld, Léo Gilson Ribeiro, a quem, aliás, ela concedeu a entrevista que estou citando (Cadernos de Sábado do Jornal da Tarde de 4-3-1989), o Brasil se mostrou absolutamente impermeável ao que ela tinha para dizer. "A futilidade é como o napalm: vai queimando, corroendo até chegar à medula, ao osso. O homem está sem nenhuma curiosidade a respeito de si mesmo, da incógnita X da sua personalidade. De que ele se esqueceu ou abafou em si".
Hilda acreditava que os homens deveriam pensar mais nos problemas fundamentais que os grandes cientistas como os Heisenberg levantam como a ciência dos limites, o caráter incognoscível, imprevisível dos átomos e seu comportamento. E conclui: "Então eu vi que minha única saída era parar, pois seria absurdo continuar. Eu acho que temos que refletir sobre os aspectos transcendentais da Terra, da Natureza vertendo sangue, destruída, violada, mutilada pela ignorância e pela ganância imediatista do homem, estudar o problema do ar que respiramos, enfim as guerras, os arsenais atômicos".
Pretendia ainda rever este conceito que nunca se questiona só se aceita sem discutir, que é o conceito da obscenidade. "É preciso pensar que a verdadeira obscenidade, criminosa é o comportamento do corpus político do Brasil e de outras nações inteiras dedicadas à devastação a qualquer preço, à fraude, à morte do outro em favor do conforto e da indiferença de quem polui o ambiente e as almas. De maneira intuitiva essas foram as perguntas que me obcecavam e para as quais eu buscava inutilmente uma resposta junto com o leitor" . Vejamos o poema em que a escritora se despede de seus "textos sérios:"
O escritor e seus múltiplos vêm vos dizer adeus.
Tentou na palavra o extremo-tudo
E esboçou-se santo, prostituto e corifeu. A infância
Foi velada: obscura teia da poesia e da loucura.
A juventude apenas uma lauda de lascívia, de frêmito
Tempo-Nada na página
Depois, transgressor metalescente de percursos
Colocou-se à compaixão, abismos e à sua própria sombra
Poupem-me os desperdícios de explicar o ato de brincar.
A dádiva de antes (a obra) excedeu-se no luxo.
O Caderno Rosa é apenas resíduo de um "Potlatch".
E hoje, repetindo Bataille:
"Sinto-me livre para fracassar".
Anote-se, no entanto que Hilda não fracassou: as três obras da referida trilogia erótica são pequenas obras primas de irreverência e na sequencia, ela continuou com sua prosa deslumbrante. E mais, fez essas afirmações ‘definitivas’, anunciando o que o critico literário Leo Gilson Ribeiro chamou de Luminosa Despedida em entrevista publicada no Jornal da Tarde (4-3-1989) exatamente no ano do lançamento de mais um livro de poesia: Amavisse (em latim Ter Um dia Amado), que, aliás, é um dos que o compositor de música erudita contemporânea José Antonio de Almeida Prado musicou- (os outros foram: Trovas de Muito Amor para um amado Senhor e Pequenos Funerais Cantantes) e continuou produzindo mais livros: Alcoólicas (1989);Bufólicas (1992); Cantares do sem nome e de partidas (1995); Cascos e Caricias (1998); Do desejo (Editora Pontes, Campinas-SP, 1990).
Em 1997 publica Estar sendo. Ter sido, (Nankin Editorial, SP e 2ª. Edição em 2000, com capa de Claudia Lammoglia, foto da capa de Catherine A. Krulik e ilustrações de Marcos Gabriel) e prefácio de Edson da Costa Duarte Clara Silveira Machado, prosa. Em 1998 reúne suas crônicas publicadas no Jornal Correio Popular de Campinas (SP) no livro Cascos e Carícias: crônicas reunidas (1992-1995, capa de Claudia Lammoglia e foto de J. Toledo, pela Nankin, SP, 1º. Edição e 2º. Edição em 2000) e em 1999 publica uma coletânea de poemas no livro intitulado Do amor (Massao Ohno, SP) com capa de Arcangelo Ianelli, prefaciada e organizada por Edson da Costa Duarte Clara Silveira Machado.
"A vida: uma aventura obscena de tão lúcida"
No prefácio de Estar Sendo. Ter sido, intitulado: "a vida: uma aventura obscena de tão lúcida", justamente uma frase de Hillé, personagem central de A obscena senhora D, Clara Silveira e Edson Duarte dão pistas ótimas para se entender a obra de Hilda. Eles iniciam dizendo que após meio século de intenso trabalho, Hilda Hilst reafirma neste texto, "sua condição de requintada artífice da linguagem. Seus leitores encontrarão em Estar Sendo. Ter sido, todo o universo ficcional da autora já que Vittorio, personagem-máscara de Hilda, faz parte de uma cadeia de duplos de narrativas anteriores. E como Hillé ele poderia ter dito: "Ai, Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás, mas quantas vezes pensado, todo espremido, humilde, mas demolidor de vaidades."
"Vittorio recorda (traz para o seu coração) momentos de vida com um olhar que é o caleidoscópio de sua alma. Desintegra-se e se reintegra em tantos outros possíveis eus: ele é ao mesmo tempo múltiplo e uno. É a consciência da infância (Vittorio-bambino) Matias, Júnior, Alessandro e Hermínia, Pedro Cyr (um poeta bossa ‘o escroto’) Luis Bruma-Apolonio-Hillé-pseudônimo usado pelo pai da escritora, o próprio pai-Apolonio e a máscara de Hilst (Hillé). As faces de Hilda formam ‘uma sómultiplamatéria" para usar uma expressão da própria autora. Seus personagens são um só, assim como podemos interpretar toda a sua ficção como um único livro."
Clara Silveira Machado e Edson Duarte continuam dizendo que Hilda neste livro "descasca os conceitos, sendo obcecada pelas mesmas indagações metafísicas, amalgamando os estilos alto e baixo do discurso num só diapasão da voz. Os personagens que cria são apartados da realidade estão afastados do centro-oco dos conceitos. São buscas, perdas, dilaceramento, incompreensão e agonia por se saberem ‘poeira-nada’. Querem ultrapassar a fronteira da carne, do corpo-porco nosso de cada dia".E ele mesmo Vittorio-na verdade Hilda vai dizer que gostaria de sentir ainda alguma coisa-"um certo brilho,uma certa cara, a descoberta de ter escrito esta frase: "Deus, uma superfície de gelo ancorada no riso", que inicia a novela Com meus olhos de cão.
Para os autores do prefácio de Estar Sendo. Ter sido o que mais choca no narrador do texto, Vitório, 65, escritor e bebedor contumaz, no limiar da velhice, buscando nos cantos, nas frestas da mente, o sem-tempo do corpo e do espírito aquele "ter sido" lúbrico e voluptuoso-é a crueldade do personagem que não poupa a si mesmo das situações mais ridículas. E eles citam o exemplo da cena em que ele se pensa a si mesmo numa cadeira de rodas com uma bengala de prata e madrepérola.
"É o requinte do riso que destrói o próprio lugar do discurso-sujeito de onde o riso emana". Assim, sob a máscara de Vittorio, Hilda está livre, segundo Clara e Edson, para exagerar propositadamente na cor das palavras. E eles dizem: "se em Beckett tudo é cinza-monótono, em Hilda tudo é rubro-vagotonia. Seus personagens não chegam a lugar algum porque procuram ‘La Obscura Cara’ de si mesmo e do ‘Sem Nome’. Por isso seu riso é exterminador, ‘um certo tipo de cômico, uma certa maneira de rir que pertence propriamente a perspectiva trágica".
Portanto Vittorio, este bêbado, escritor "entre receitas de drinques e suicídios, procura Deus, deus e suas outras tantas máscaras. E no intervalo entre uma busca e outra, mais ou menos desesperado, conta ao leitor" short stories" ora patéticas, ora escabrosas, enquanto espera a Dama Escura : " a sépia desgrenhada, a foiçuda deve estar rondar."
Confirmando as palavras de Hilda numa entrevista que me deu e que já citei aqui: para dar ao leitor um momento para respirar, para a corda não ficar tão esticada, Clara Silveira e Edson Duarte constatam que neste livro "as histórias picantes são um oásis necessário entre os textos de enorme intensidade lirico-trágica. Das histórias de fornicar, de dar pelos cantos, muito se sabe de Vittorio - são apenas" exercícios de lubricidade", como ele mesmo diz. "Mesmo no grotesco e no pornográfico, HH não fala apenas do despudor do desejo pervertido, mas também extrai do contar uma perspectiva metalingüística. Muitas vezes é nesse nível que os leitores fazem um desvio: ao se chocarem com imagens do desejo interdito, não percebem as sutilezas e a manipulação do signo".
Para eles o texto hilstiano é construído em vários níveis, e ignorar essa dimensão é permanecer na superfície. E advertem os leitores que é preciso pensar no papel do simulacro em sua ‘pornografia’ já que aqui as mesmas questões feitas no campo metafísico são retomadas pelo avesso. "Uma pluralidade de gêneros e linguagens se instaura entre os duplos focos: sublime/grotesco, sério, cômico. Sempre irreverente, polifônico, o texto de Hilda é múltiplo: teatro, poesia, prosa poética. Nele aparecem as diversas tonalidades do cômico, desde o burlesco, bufólico, grotesco, até a ironia o sarcasmo e a sátira".
Obra de síntese de todo seu trabalho, os prefaciadores dão valiosas pistas aos que querem entender o texto complexo de Hilda dizendo o que é visível para quem lê Estar Sendo. Ter sido, depois de ter lido toda a obra da autora. "No fluxo narrativo a escritora estabelece um diálogo circular com outros textos, numa relação inter e intratextual, revelando-nos inusitadas percepções do signo e das coisas. Quanto à referencias intertextuais, HH mistura em sua prosa uma multifacetada biblioteca, como se fosse impossível desencarnar seu texto dessas lembranças ficcionais.Neste livro encontramos, lado a lado, Ovídio, Petrarca, Shakespeare, Mishima, Joyce, Jorge de Lima, Oscar Wilde, Vieira, Goya, Francis Bacon, Kurosawa, Lupasco, e por fim o pai-poeta :Apolônio Hilst e o sempre amigo- Mora Fuentes."
"No campo intratextual-tanta coisa resplende-há também vários exemplos-eu-menino-cavalo-luz-tremente inteiro lembra Agda menina-planta; o tigre-menino faz ressoar o menino-porco de Hillé. O Cara mínima, o Sem-Forma, lembra a busca do Pai-Deus em Qadós." Espaços da novela O oco eles constatam , se confundem na sintaxe: " estou na cama ou nos juncos? Estou molhado de esperma ou de urina", atualizam: Queres (que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo? "A verticalidade se instaura: o poço e a clarabóia de Ruiska, o banco de cimento onde se sentava o pai de Agda, sou um novo nada ninguém, de Amós Keres".
Enfim neste livro vemos toda a singularidade do olhar de Vittorio-Apolonio-Hillé-HH que corresponde, segundo Clara Silveira Machado e Edson Duarte, a "complexidade sintático-semântica" da narrativa, onde o fluxo de consciência é pulsionado pela língua materna, traçado pelas marcas do corpo erógeno que se deslocam para o campo da linguagem. "Daí o cambalear de lúcidos delírios: ‘ Funâmbulo loquaz, burlantim do nojo indo e vindo no arame; se eu fosse ou tivesse sido ia ter mágoas, escoceios, corredeiras da alma, ia despencar num frenético bamboleio dentro de canoas estreitas, e logo ali a cachoeira BUUUUMMMM!, despenquei, morri, mas não, continuo aqui, velho e bêbado, vendo de novo o ‘Cara mínima’, o deus, dentro da folha de alecrim do jardim."
A esta altura sua obra começava a ser lida, discutida e os eventos se sucedem: poemas seus com musica de Almeida Prado são apresentados na Europa no quadro dos concertos do projeto Poesia& Musica da Fundação Apollon e ela ganha o Prêmio Moinho Santista pelo conjunto da sua obra, na sua 47º edição em agosto de 2002. Em setembro de 2002 o vídeo Hilda Hilst para virgens é premiado na 9º. Expocom, realizado em Salvador (Bahia) e seus livros vão sendo traduzidos com maior intensidade para o francês, inglês, alemão, italiano. As teses também se multiplicam e agora são dezenas, sendo que entre as primeiras estão as de Gabriel Albuquerque defendida em 2002 na Universidade de São Paulo (USP) sob orientação do professor Alcides Villaça e da alemã Mechtild Blumberg apresentada a Universidade de Bremen.
Só que agora, infelizmente era tarde demais: Hilda estava cansada, desgastada, não queria mais escrever: "Eu gostaria de escrever ainda, mas não tenho mais nada para falar. Eu já escrevi tudo. Quando a pessoa envelhece a gente já não tem mais vontade de falar. Parece uma seita.". E ainda, sobre se a idade afinal havia trazido para ela a serenidade tão almejada diz: "A idade para mim foi ao contrário, não me deixa serena não. Sou uma pessoa inquieta, eu tenho problemas existenciais".
Fiz aí uma amostra não tão mínima da obra desta poeta, ficcionista e dramaturga máxima. Você agora leitor, que não a conhece, ou que conhece, mas quer conhecer melhor, que tal mergulhar nela e descobrir fascinantes mundos desconhecidos? Segui-la na sua trajetória delirante, suas acentuações apaixonadas, caudalosas, recortando as palavras que penetram como lâminas nos corações dos leitores que ficam para sempre seduzidos pela sua maravilhosa capacidade de penetrar nos recônditos da alma, no fundo dos sentimentos?
Esta matéria foi publicada originalmente no Portal Cronopios em junho de 2006
http://cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=1569
Para saber mais sobre a escritora:
http://www.hildahilst.com.br/site/
Sobre o autor:
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