Sumi-ê de Nydia Bonetti
Os poemas de Sumi-ê, de Nydia Bonetti, inventam um jardim, que não é o zen japonês, mas tenta simulá-lo, com seu rigor de pedras. Surgem, aqui e acolá, uma...
Revista digital de Arte e Cultura
Para comemorar o centenário do paulista Flávio de Carvalho, arquiteto, engenheiro, cenógrafo, artista plástico, desenhista, antropólogo amador, dos mais criativos do cenário nacional (1899-1973) o Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” (CEDAE) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, apresentou de 10 de agosto a 10 de outubro de 1999, a exposição Dialética da Moda. A mostra teve como ponto de partida a primeira exposição do conjunto de desenhos do controvertido artista plástico, arquiteto e inventor realizada no mesmo local em 1996.
Na ocasião, em função da limitação de espaço foram expostos apenas 12 dos 102 desenhos da série, no original ou em reprodução, sendo que de cada sequencia foram selecionados aqueles cujo significado foi considerado de maior importância para a compreensão do trabalho. O CEDAE mostrou ainda nesta exposição livros da biblioteca do artista como referencia para facilitar o entendimento do publico para uma obra não tão fácil e mesmo inusitada. No catálogo, com 35 desenhos, elaborado pelo curador da mostra Luiz Carlos Dantas, diretor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, estavam também as legendas criadas por Flávio de Carvalho para a primeira publicação deste material em jornal.
A Moda e o
Novo Homem
Na verdade o arquiteto e artista plástico publicou, de março a outubro de 1956 uma coluna ilustrada com desenhos no Diário de São Paulo, sob o título A Moda e o Novo Homem. Mas o Centro de Documentação “Alexandre Eulálio” que dispõe dos originais desses artigos,assim como todo o arquivo do artista, optou por este título, que considerou mais preciso: Dialética da Moda.
Luiz Carlos Dantas explica a razão da escolha: este trabalho não é uma história da moda com catálogo cronológico e inteligível dos hábitos coletivos e transitórios das maneiras do homem ou a mulher se vestirem, mas uma forma de apontar as grandes linhas evolutivas lineares ou cíclicas dos modos que a trajetória da moda assumiu. “Às vezes respondendo às grandes transformações da história ou cumprindo magicamente um papel premonitório e outras vezes como manifestação onírica ou materialização de um arquétipo ou ainda, como válvula reguladora das grandes comoções ou elemento compensador de alguma insuficiência”.
Segundo Luiz Carlos a base do racicionio do artista “era que a roupa pertence ao domínio da fantasia, da grande imaginação criativa, sendo também um lugar de escândalo. Para ele a nudez acha-se despida de todo e qualquer prestigio sendo que neste ponto nenhuma tentação de modéstia, rousseainismo ou minimalismo manifesta-se. O nu é não linguagem, não sociabilidade, não proximidade dos seres, é silencio”. Neste sentido Dantas acredita não haver uma perspectiva funcionalista no conjunto de desenhos. Flávio de Carvalho, segundo ele, sequer concebe o vestuário enquanto conforto e proteção, ou abrigo contra as intempéries. “Em perpétua incursão pelo non sense justifica a sensação do frio no homem, pelo hábito já contraído de vestir roupas. Em estado natural, a humanidade não sentia frio”, diz Dantas citando o delirante Flávio de Carvalho.
“O século XVII transforma completamente a indumentária da mulher anti-fecundante e de luto com a cauda do século XV. Terminado o período revolucionário, a cintura da mulher que começara a abaixar no primeiro quarto do século XVI abaixa para os quadris no século XVII e a mulher adquire as formas fecundantes da crinolina. A cintura do homem se eleva permanecendo alta em todo o século XVII. O século XVII, com as lembranças da revolução comunista já bem apagadas, dá início a uma nova magia da História que conduziria em linha reta ao drama da guilhotina da Revolução Francesa: aparecem os primeiros colarinhos separando a cabeça do corpo. À esquerda: Carlos I da Inglaterra (desenho extraído de um quadro de Meytens). À direita: Isabel de Bourbon, esposa de Felipe IV (Museu do Prado).
Enfim para Flávio de Carvalho na análise de Luiz Carlos, os trajes na sua variedade prodigiosa seguem outras e inesperadas leis, havendo uma poética das formas: a predominância das linhas retas e paralelas nas roupas. Mudanças na linha da cintura exprimiriam o luto e a tristeza, seriam em suma antifecundantes na sua bizarra expressão. Já as formas curvilíneas traduziriam a fecundação prolixa e a euforia, enquanto o domínio das linhas retas em particular revelaria a indistinção entre formas do vestuário masculino e feminino, assinalando épocas históricas denominadas púberes. Ou seja, épocas de recomeço para a sociedade em geral guiada por um espírito iconoclasta.
A moda do séc. XIV do ventre saltando (imitando por necessidade talvez, magicamente, a gravidez) aparece numa época de grandes distúrbios sociais. A cauda, as mangas compridas (iniciadas no séc. XI, aproximadamente) e o comprido véu do chapéu cônico indicam um período de luto. A cauda e a manga comprida são provenientes do povo e daqueles que, em Roma, eram taxados de infâmia. Na época de Luiz XIV, a cauda da rainha tinha comprimento de 13 metros. Durante o Terror em 1790, aparece a moda dos ventres postiços, imitando a gravidez, usada por casadas e solteiras. Esta moda logo tomou conta do mundo elegante e desapareceu logo após os efeitos do Terror. A moda sugere uma compensação pelos resultados do Terror. *
“E aqui Dantas lembra que o traje masculino imaginado por Flávio de Carvalho naquele mesmo ano de 1955: o saiote do escândalo nas ruas de São Paulo exemplificaria o fenômeno”.Segundo Flavio, explicado por Luis Carlos Dantas “o movimento da moda- mais um paradoxo - é ascendente, vem de baixo. Só posteriormente as classes altas tornam-se o foco de disseminação. “Ela nasce no sofrimento e na dor, e seus inventores-o homem em farrapos ou ainda a loucura vagando pela rua, são representantes da revolta e da anti-hierarquia”.
De tempos imemoráveis, o homem em farrapos é um desclassificado, um posto de lado pela sociedade. Ele é o totalmente sem classe e sem hierarquia, por ser o último, é o homem para o qual todas as portas se fecham. É ele um ser submetido, permanentemente, à dor, à miséria e ao desprezo. O homem em farrapos é o contrário do homem investido de autoridade, o contrário do homem uniformizado e o oposto do homem endurecido pela disciplina. A sua situação, de último dos últimos, lhe concede uma forma de libertação da disciplina hierárquica e, por ser o último, está ele em estado semelhante a um estado anti-hierárquico de começo. DSP, 20/05/1956.*
Memória dos primórdios
Para Flávio de Carvalho podemos encontrar nas formas do vestuário usadas pelo homem ao longo da história a memória dos primórdios. Assim, nas épocas em que as mulheres arrastam longas caudas em seus vestidos, ou as abas das casacas masculinas se alongam, são momentos em que se carece do sentimento de segurança. E as razões longínquas do fenômeno são o desaparecimento do rabo primitivo nos ancestrais pitecóides do homem.
“Toda vez que os abalos profundos dos acontecimentos produzem um desejo de regressão e apaziguamento, o apêndice extinto, conservado difusamente na memória coletiva, surge sob a forma dessa tendência particular da moda.” Sobre a questão veja o desenho representando a imperatriz Josefina durante a sagração de Napoleão, com seu vestido de aparato e longuíssima cauda, cercada de sáurios e antropoides. Mesmo em nossas vidas, os vestidos de soirée com uma ligeira cauda, traduziriam um idêntico desejo de resguardar-se numa ocasião em que a mulher está mais exposta ao assédio.
Os chapéus seriam outro elemento forte da mitologia onírica de Flávio de Carvalho, segundo Dantas. “A sua conformação derivaria, num primeiro tempo, dos animais marinhos arquetípicos: conchas, moluscos, assim como foi a marinha a origem da vida. A cabeça, a parte mais importante do corpo e sede dos sonhos, busca revestir-se com essas formas ancestrais.A seguir , tornando-se progressivamente mais complexos, os chapéus ganhariam abas, isto é, passariam então a assimilar as formas aéreas dos pássaros.”
Por tudo isso Luiz Carlos Dantas conclui que esta Dialética da Moda, na medida em que nos remete a “esses meandros de raciocínio puro nonsense em alguns casos”, é de fato mais poesia que história de moda. “Os dados precisos da história da moda estão subvertidos pelo devaneio, pelo humor persistente, pelo gozo da liberdade de fabular. Entretanto, para além da inteligência dessas páginas, há uma qualidade misteriosa no todo, um estranho rigor ou justeza que independe da estrita probidade com que uma matéria é articulada e desenvolvida”.
Essas e outras fotos da exposição estão disponíveis no site do Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” e podem ser visualizadas neste link
http://www3.iel.unicamp.br/cedae/Exposicoes/Expo_Moda/EXPO.HTM
Mais sobre o artista:
http://www.mercadoarte.com.br/artigos/artistas/flavio-de-carvalho/flavio-de-carvalho/
Sobre o autor:
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