Poemas

Nydia Bonetti


chão descoberto
onde me faço e me descubro
até que me cubras
e eu me desfaça - em chão

 

o não sonhado

queria ter sido - não foi 
já foi  já era - foi

de certa forma somos
também o que não fomos

pois sempre estamos
se estamos somos 

o que pudemos ter sido 
até além  do imaginado

- o não sonhado é  
o que chamamos  vida

 

muitos

um anjo
- agora são dois
com seus pés vermelhos
suas asas brancas
caminhando lendo
pelas ruas de pedra
da cidade que habito
colhendo sementes

um deles me olha 
como se dissesse
— agora crê?
e segue

colhendo sementes
pelas ruas de pedra
da cidade que habito
caminhando lento
com seus pés vermelhos
suas asas brancas
- agora são muitos
anjos

 

nenhuns

singelos ou loucos vamos
fazendo poesia
pois que somos todos 
uns ou outros
ambos talvez 
nenhuns

toada

o salmo
o sal
a mó
a mão
que move

que tudo
canta
e conta
no poema
que sinta
quem

 

leva-me

leva-me palavra
donde

meus pés e olhos 
não 

me levaram 

por não saber ou não
poder

querer quem sabe não
sonhar ou

por não haver
estrada
hera

 

olhos antigos
queimam

hipotética chama

dilatadas pupilas
branca-flor 

perdida

hera 
que não ousou

ir além 

- e o muro
nem era assim 

tão alto

 

trilha possível

 

queria sol
e um céu pequeno

sobre minha cabeça

trilha possível
e um chão sereno

sob meus pés descalços

flores à margem
nem precisava

eu as recriaria

chuva miúda
bastaria

 

tourada

olhos do touro
nos olhos do toureiro
a lâmina

o casco

vermelhas as areias
o sangue inocente

as meias

do homem que mata por prazer
animal

 

asas aflitas

fase silenciosa
antes do amanhecer

(como demora o sol
quando se espera por ele)

asas aflitas o pressentem

(sou do bando dos pássaros
acordadores do sol)

desde sempre assim
(antiga sina)

eu espero por ele
ele espera por mim

- e a noite perpetua

  

 

rebeladas penas

é tanto sol 
que uma pena da minha asa preguiçosa se soltou

voou leve lá fora

do meu ninho pude ver o vôo silencioso das penas
que flutuam

outras tantas se rebelam agora - mal posso contê-las
ansiosas asas se contorcem

e o vento e o sol e o vento - fui... ganhei o céu

 

preces quase

 

1.

meu coração é um redil
de ovelhas loucas

contidas
por contornos tão frágeis

apascenta meu coração

(se me amas)

2.

perdão senhor
não fui capaz de cumprir 
teu maior mandamento

(amei tão pouco)

  

 

o homem do farol

 

1.
amanhã
o dia vai ser bonito

o sol mais uma vez vai colorir
a multifacetada crosta
da terra

mesmo vazia - a casa
portas e janelas abertas
irão saudá-lo

2.
em algum lugar
um velho barco regressa
velas feridas tanto sal

olhos aflitos
braços abertos que se fecham
em

abraços

quantos faróis no caminho e o homem
do farol
como suporta

enquanto gira
o velho artefato a indicar por onde
ir

3.
de que lugar escuro a concha
que vai secar

de onde os pássaros que povoam
a ilha

o vento que sopra nuvens agora
e deixa
um pedaço de céu estrelado

posso ver

4.
quantos cabelos e varais mulheres
lavadeiras quantas

lençóis quarados sobre pedras quentes
quantos

amores sobre
lençóis

quantos nãos

camas vazias mãos
quantos olhos
homens e mulheres na sina

dos dias iguais

5.
ondas que se quebram areias quentes
o galo
prestes a cantar

um pio
é quase dia

vai ser bonito

pesam meus olhos na janela
renasce a vida

me entrego

à quase morte do sono
da lida
sem sonhar

cheiro de café com pão
em algum lugar
dizem

que o homem do farol é feliz

 

Nydia Bonetti, engenheira civil, nasceu em Piracaia, interior de São Paulo, onde reside. Mantém o blog L o n g i t u d e s (http://nydiabonetti.blogspot.com) Colaboradora na Revista Mallarmargens. Tem poemas publicados em revistas e sites literários e culturais: Revista Zunái, Portal Cronópios, Musa Rara, Eutomia, Germina Literatura, e outras. Faz parte da coletânea QASAÊD ILA FALASTIN (Poemas para a Palestina), Selo ZUNAI e da Antologia Digital Vinagre - Uma antologia dos poetas neobarrocos.Publicada em 2012, pela Coleção Poesia Viva, do Centro Cultural São Paulo, na antologia Desvio para o vermelho (Treze poetas brasileiros contemporâneos), organizada pela poeta Marceli Andresa Becker.Também em 2012, publicada pelo Projeto Instante Estante, de incentivo à leitura, curadoria de Sandra Santos, Castelinho Edições. Participou da Poemantologia da Revista Arraia PajéuBR, numa iniciativa conjunta com o Portal Cronópios. Lançou oficialmente o Sumi-ê em janeiro de 2014, à venda no catálogo da Editora Patuá.  

 

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