Modigliani escultor

Igor Bezerra


Modigliani foi o pintor trágico por excelência da Paris efervescente do início do século passado. E talvez essa tragicidade, ao mesmo tempo em que gera mais aproximação em relação ao artista, pode contribuir para obscurecer aspectos de sua obra: é o que se passa no filme estrelado por Andy Garcia. Deixe-se então de lado o mito, uma vez que ao se trata de ética, e parta-se para a sua obra. As primeiras pinturas de Modigliani pouco têm que ver com as quais o consagrará. Contudo, toda a sua produção, por mais que se divirja, cabe dentro do universo pictórico pós-impressionista. E fato é que o artista italiano não se enquadra em nenhum dos movimentos que esbanjavam naquela época; como ele, muitos outros, a exemplo de Soutine e Utrilo, amigos seus, bem como Chagall e Van Dogen, para citar alguns do que é conhecido como Escola de Paris: como esses artistas expatriados não aderiram a movimento algum, mas todos viviam em Paris, deu-se essa denominação. E, por lá viver, Modigliani acaba por sofrer algumas influências comuns entre os artistas da época, como é o caso da absorção da escultura africana recém-descoberta, a qual contribui necessariamente para o cubismo sintético. Contudo, como se verá, as demais influências do artista diferem das dos demais.
Modigliani carrega sempre consigo grande influência da arte italiana, uma vez que fora educado na Itália, e mais precisamente, na fruição das obras da antiga sede das belas artes. Entretanto, nas primeiras pinturas pouco se percebe isso, mas, antes, muito de pós-impressionismo, dado o ciclo no qual conviveu em seu país de origem. A guinada artística decisiva para o italiano se dá pelo conhecimento de Brancusi e sua escultura. Ao tomar contato com este, aquela abandona a pintura e passa a se dedicar à escultura, e aí se inserem os estudos das cariátides, as quais representam a primeira vinculação de Modigliani à tradição da antiguidade. Ademais, os seus desenhos de cariátides já revelam a dívida com Brancusi e com a escultura africana.
No entanto, devido a problemas de saúde, Modigliani consegue suportar o pó extraído das pedras que esculpia, e, assim, tem que abandonar a escultura. E, uma vez deixada de lado essa forma artística, ele irá se dedicar novamente à pintura. Pode-se estranhar tratar de um Modigliani escultor quando o artista tão pouco produziu nesta ceara; e mesmo se tratará mais aqui de pintura. Acontece que apenas pelo contato com a escultura é que se dará o futuro Modigliani e toda a sua contribuição para a pintura.
O contato do artista italiano com Brancusi e a escultura negra, o que direcionava o seu próprio esculpir, é fundamental no tratamento do rosto na pintura, o qual advirá de suas cabeças de pedra.
E, desta maneira, ter-se-ão os rostos alongados, os olhos em elipses, os narizes e bocas bem marcados. Contudo, isso é pouco para diferenciar Modigliani do cubismo ou do expressionismo, onde, por vezes, têm-se disposições faciais semelhantes; aqui entram em cena mais influências do artista as quais não foram aproveitadas pelos demais pintores na representação humana. Sim, pois, para “o nosso aristocrata” tratava-se quase que exclusivamente de pintar figuras humanas; e, neste sentido, ainda pode ser percebida outra diferença entre os “membros” da Escola de Paris em relação a seus contemporâneos.
Assim, ainda se tem outra marca do esculpir na pintura de Modigliani, qual seja a noção de volume, a qual será fundamental para os seus nus, os quais diferem bastante das representações de nus de seus contemporâneos justamente pelo volume que o artista italiano consegue imprimir a ele, sem mencionar na carnalidade que ele exala, do que se falará mais tarde.
No percurso de seus estudos e influências italianas, Botticelli se estabelece como marca fundamental na concepção e estilização das figuras humanas daquele artista trágico. 
Notadamente “O nascimento da Vênus”, do pintor proto-renascentista é capital para a suavidade e sensualidade que Modigliani colocará em seus quadros. Não por acaso que ele era tratado como um “Botticelli moderno”. E o próprio Botticelli tem o seu que de modernidade ao alongar o pescoço e abaixar os ombros de sua Vênus para poder suavizá-la. E, assim, percebe-se de onde Modigliani extrai como seu estilo os pescoços longos e os ombros caídos, bem como o rosto ovalado e esticado, advindos tanto do pintor da Vênus como da escultura negra. 
Ademais, o diálogo de Modigliani com a tradição pictórica não pára aí, não se restringindo a arte italiana; têm-se ainda leituras de Goya, Ingres e Manet. Ou seja, a sua educação para o tratamento do corpo depende mais da tradição do que da efervescência das vanguardas. Por fim, a última e decisiva influência de Modigliani é a escultura greco-romana, ou pelo menos o que se ficou dela, mais precisamente no que se refere ao olho. Exatamente o tratamento dispensado aos olhos pela escultura clássica antiga, ou seja, a representação dos olhos sem pupila, mas como único contínuo, onde não se expressa nada, será decisivo utilizado pelo artista italiano. É bem verdade que, pelo menos na escultura grega tinha-se o uso de pedras coloridas para a representação do globo ocular. Conduto, essas peças se perderam e o que restou foram aquelas nas quais a superfície do olhar é tratada como uma única, contínua e vazia superfície, a qual não se sabe para onde olha. 
Excetuado-se a mudança da cor do rosto e do olho, é isso o que faz Modigliani ao pintar tudo aquilo que poderia ser considerado “olhar” com uma única cor, retomando aquela tradição escultórica na qual se dá o instante kierkegaardiano. Este, a saber, consiste na possibilidade de eternidade na temporalidade, e o filósofo dinamarquês encontra uma representação do instante naquele tipo de escultura, como se vê no “Conceito de angústia”.
Assim, Modigliani devolve à arte a noção de instante, quiçá não pregnante, como fala Aumont a respeito da pintura clássica, mas, quem sabe, um instante de vazio, como se pode perceber em Hopper de maneira diferente. A própria condição de eternidade é quase que inerente a arte; e aí, pode-se falar com Kierkegaard: é uma eternidade no temporal, ou, um efêmero eternizado.
A partir de tudo o que foi posto, Modigliani consegue resgatar duas noções para a arte de vanguarda as quais pareciam estarem perdidas. A primeira vem em negação a Ortega y Gasset e sua desumanização da arte: se cubistas e expressionistas contribuíram para o tratamento da figura humana de maneira não humana, Modigliani, assim como alguns dos “membros” da Escola de Paris, começam por reconstituir as características humanas na pintura, por mais que ainda façam uso de algumas mesmas influências que aqueles artistas. A segunda terá que ver com o volume, suavidade e sensualidade que o artista italiano imprime em suas peças: Modigliani resgata a carnalidade perdida na pintura, e, aqui, tem-se que ser extremamente camusiano na exigência de um “suporte de carne” para a criação artística ou filosófica. Assim sendo, não se tem mais aqueles “criadores de irrealidades” dos quais falava Ortega y Gasset a despeito do cubismo e do expressionismo. E, se esses para o filósofo espanhol são artistas intranscendentes, com Modigliani desce-se um nível a mais na escala da imanência e chega-se a própria carnalidade, mais das vezes sensual. Ora, toda essa guinada pictórica feita por Modigliani só é possível quando da guinada do Modigliani escultor.

Igor Bezerra natural da Paraíba era artista plástico e ensaísta. Formou-se em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba. Morreu no dia 16 de maio de 2009, aos 22 anos em Salamanca- Espanha onde estava estudando. Escrevia no seu blog:

 

http://estroinaesuperfluo.blogspot.com.br/

 

 

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